DEMOCRACIA COMO MEIO, NÃO COMO FIM - OPINIÃO

Walter Feldman*
02/07/2001 18:04

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Há pensadores de imensa importância na história do pensamento. Alguns têm sido tão fortemente rotulados, que são julgados sem serem conhecidos. Um desses autores, que se situa entre aqueles muito pouco lidos com atenção, mas bastante comentados - e justamente por isto, às vezes, injustiçados - é Maquiavel.

Por detrás daquele Maquiavel, autor de O Príncipe, há um outro, não só republicano mas extremamente democrático, a ponto de ainda hoje poder ser considerado avançado. Enquanto outros planejaram utopias autoritárias, nas quais não existe espaço para a privacidade ou para a individualidade, todas elas condenadas, na melhor das hipóteses à estagnação, Maquiavel já compreendia a importância daquilo que hoje chamamos de pluralismo, já compreendia que a sociedade estava dividida em segmentos e que o produto final seria a soma das vontades.

Partidário apaixonado da Democracia e do domínio da lei, este outro Maquiavel diz: "O Príncipe que se pode conceder todos os caprichos é um insensato e o povo que pode fazer tudo o que quer comete erros imprudentes. Mas caso se trate de um príncipe ou de um povo submetido às leis, o povo demonstrará virtudes superiores às do príncipe".

Certamente, é de se admirar que as palavras a seguir tenham sido proferidas por Maquiavel. Trata-se de outra importante defesa feita por ele da democracia, que merece menção por sua atualidade e exatidão ímpares: "A crueldade da multidão se dirige contra aqueles que, suspeitam, querem usurpar o bem geral; a crueldade do príncipe persegue aqueles todos que considera inimigos de seu bem particular" e complementa fazendo uma defesa ainda mais atual e de muita visão: "A opinião desfavorável que se faz do povo tem sua raiz na liberdade com a qual se fala quando é o povo que governa. Sobre o príncipe, ao contrário, só se pode falar correndo mil perigos e tomando mil cuidados."

Peço desculpas por estas citações excessivas, mas esses trechos de Maquiavel fornecem alguns conceitos básicos para a cidadania que, penso, podem ser úteis para este trabalho que se inicia.

O primeiro deles é o Império da Lei. Sem o Império da Lei não há freio algum que modere as paixões e caprichos, tanto da sociedade como ainda mais do governante. As leis devem ser sagradas e respeitadas, as leis injustas ou impróprias devem ser mudadas e a sociedade tem o dever de lutar para mudá-las, mas deve-se respeitá-las até serem mudadas porque, sem elas, não há bússola alguma para guiar a conduta de governantes e governados. Este é um ponto sobre o qual se deve prestar a máxima atenção, ainda mais nesta época, em que tanto se enfoca o aspecto dos direitos da cidadania, e tão pouco os deveres da cidadania.

O segundo é a defesa intransigente que a sociedade deve fazer do bem geral: sem uma pressão ativa da sociedade na defesa de suas prerrogativas, é impossível haver cidadania. Cito sempre o exemplo da insatisfação geral que a sociedade tem em relação aos políticos - pois bem, só a pressão da sociedade, a criação de mecanismos duros de controle e a participação social podem alterar este quadro.

Em terceiro lugar, há a necessidade da liberdade de expressão absoluta. A democracia e a cidadania não podem existir e se desenvolver a não ser que exista uma arena na qual as idéias possam lutar entre si, batalha que sempre produz o progresso e afasta os riscos da estagnação. O constante aprimoramento não existe sem este debate permanente e livre. Um dos sintomas de uma sociedade doente é a presença daquele clima, descrito por Maquiavel, no qual as críticas feitas ao príncipe devem ser feitas com muitos cuidados e cercadas de riscos.

Por fim gostaria de comentar a que talvez seja uma das mais famosas frases de Maquiavel. Embora ele nunca a tenha dito nestes termos, seu conceito certamente explica porque um democrata como ele produz um tratado sobre a tirania: "os meios justificam os fins".

O poder, a cidadania, a democracia não são fins em si mesmos, como normalmente são tratados: são apenas meios para que se atinja um fim maior: o bem-estar coletivo. Cidadania é um termo que está se tornando tão gasto, que até falar de sua banalização já virou chavão, em grande parte porque se esquece desta lição simples: ela é meio e não um fim em si mesma!

* Walter Feldman, 47, médico, é presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

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