PARLAMENTO E PARLAMUITO - OPINIÃO

Walter Feldman*
26/06/2001 16:42

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Salman Rushdie descreve em um de seus livros - Harun e o Mar de Histórias - uma guerra entre uma democracia e um governo totalitário. O primeiro, conta ele, era governado pelo Parlamuito e seus exércitos viviam discutindo cada ordem, a hierarquia parecia estar sempre rompida e a batalha prestes a ser suspendida pela necessidade de alguma assembléia. Enquanto isto, do outro lado, as forças das trevas tinham o mais centralizado dos comandos e cada soldado do inimigo estava pronto a seguir qualquer ordem que lhes fosse dada.

Mas o autor se surpreende ao ver que na hora decisiva acontece justamente o contrário do esperado. Quando necessário as fileiras da democracia se cerram e todos lutam com empenho por terem a exata noção de sua missão, enquanto as forças das trevas eram meros escravos, sem vontade nem iniciativa e acabam derrotados.

Muitos não são capazes de compreender a importância do Legislativo. Julgam que os parlamentos são lugares onde não se produz nada além de conversa ociosa. Em especial os parlamentos irritam aqueles que não tem argumentos para justificar suas ações, aqueles que, sendo fracos demais para convencer, não têm outra alternativa senão a de tentar esmagar.

O excelente artigo do professor e filósofo Roberto Romano, publicado na sessão Tendências e Debates do dia 22/5, da Folha de São Paulo, sobre o qual, é importante frisar, nada tenho a discordar quanto à questão central, nem à análise, parece padecer, contudo, deste tipo de incompreensão. Como o professor professo o amor pela palavra e também me dói vê-la sendo usada de forma que não seja nobre, em especial nos parlamentos onde à necessidade de conhecimento sobre o que se fala deve se somar a necessidade desta palavra buscar o bem comum, objetivo essencial do Estado e dos homens públicos. Assim até compreendo o que julgo como alguns excessos do filósofo, justamente indignado contra o mau uso de ferramenta tão nobre.

Mas esta mesma paixão me impede de calar-me em relação a alguns tópicos que considero injustos. Em primeiro lugar o texto comete a falácia da generalização, ao estender a crítica a todos os parlamentares e parlamentos, não aos que praticaram a ação condenada por ele. Sem dúvida é este tipo de visão depreciativa dos políticos um dos grandes obstáculos à existência de parlamentos melhores, pois estigmatiza a função política. afastando dela muitas pessoas que teriam importantes contribuições a dar.

Outro filósofo, Sócrates, pensava ser melhor agir no sentido contrário. Ao mesmo tempo em que criticava duramente aqueles que postulavam cargos públicos sem estar preparados, admoestava - para usar um termo da moda - aqueles que sendo preparados para a função se omitiam de pleitear estas funções. Assim, é chamando-o de covarde - ou seja, com uma crítica muito mais dura do que a dirigida aos que pleiteavam o governo sem serem capazes - que Sócrates conclama Cármides a cumprir seu papel no Estado, porque o sabe capaz.

O aspecto seguinte que julgo necessário destacar no artigo mencionado é talvez mais sério, ainda mais vindo de um filósofo. Diz ele que "o fim da política é assegurado pela ciência, independentemente dos embustes parlamentares ou demagógicos".

Certamente o conhecimento é instrumento essencial para a boa gestão da coisa pública. Por compreender a importância disto é um dos projetos da Assembléia a criação de uma grande Academia parlamentar que treine, instrua e recicle deputados e suas assessorias para que desempenhem com maior eficiência sua função. Mas a idéia de que a "ciência" ou mesmo a razão possa dar resposta a todas as necessidades do Estado é uma distorção deste papel do conhecimento. É uma visão que ignora os conflitos internos da sociedade, a pluralidade de interesses, verdades e razões que impera em qualquer sociedade sadia.

Fosse tão fácil administrar uma sociedade e não seria necessário nem parlamentares nem filósofos, bastaria uma máquina de governar como já imaginaram os piores pesadelos dos escritores de ficção científica antes dele o padre Dubarle. Não basta a ciência, é preciso também a sabedoria, como já advertia Roger Garaudy: "O divórcio entre ciência e sabedoria, entre o domínio dos meios e a reflexão sobre os fins, nos ameaça de morte" (Roger Garaudy, Apelo aos Vivos). Outro filósofo, Marcuse, mesmo adversário de Garaudy, também chama a atenção para a Razão Instrumental que serve para encobrir outros desígnios e sufocar a busca da razão negociada.

Há, assim, uma perigosa armadilha neste raciocínio que diz que a ciência é necessária e o parlamento não. O tecnocratismo - braço político do cientificismo - por sinal, é talvez o maior adversário ideológico das democracias modernas. Aceitar a afirmação do professor Romano seria abrir uma brecha grande demais para se logo se justificasse uma máquina que nos governasse.

Espera-se que o parlamento continue sendo um estorvo para quem não está preparado para lidar com a democracia. Que o eco das palavras pronunciadas nos parlamentos continue a reverberar nos sonhos e pesadelos de todos que não têm estrutura psicológica para lidar com a democracia de fato e para os quais a palavra é um estorvo.

Não é à toa que as ditaduras sempre incluem entre suas primeiras vítimas os parlamentos. Neles, afinal, todo aquele que não está preparado para a democracia é fustigado pelas palavras. A discussão pode ser a argamassa do consenso, o meio de melhorar as boas idéias, como podem as palavras transformarem-se em punhais que ferem os egos, justa ou injustamente.

Amar a democracia é fácil em discursos, mas lidar diariamente com forças contraditórias e avalanches de argumentos requer uma outra fibra que só a mais sincera afinidade com a liberdade é capaz de dar. Mas a recompensa deste esforço é mais do que suficiente para gratificar quem se dispor a trilhar este caminho mais difícil.

Só a democracia - e não há democracia sem parlamentos fortes, mesmo quando às vezes eles não pareçam mais do que Parlamuitos - é capaz de unir a sociedade e mobilizar suas forças não como uma multidão de seres amorfos e hipnotizados, mas como um conjunto de indivíduos livres. E o potencial de um exército de homens livres tem sido demonstrado ao longo da história, a despeito da teimosia de tantos ditadores cujo saldo final não é outro senão o de entrarem no rol da Infâmia.

*Walter Feldman, 47, médico, é presidente da Assembléia Legislativa

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