O Supremo e o federalismo

Opinião
13/06/2008 21:30

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Em quase 120 anos de República, vivemos alternadamente períodos de democracia e autoritarismo, de maior ou menor autonomia dos Estados no modelo federativo. Com a Constituição de 1988, o País completou o amplo e vigoroso movimento pelo fim da ditadura militar e pela redemocratização, alavancado pela campanha das diretas-já e vitorioso na memorável eleição de Tancredo Neves.

Desde então, temos assistido a um permanente processo de consolidação das instituições, numa clara demonstração de que superamos de vez alguns fantasmas do passado e ingressamos definitivamente no campo das nações politicamente desenvolvidas e civilizadas. Vencida essa etapa, impõe-se agora um período de ajustes em nossa Lei Maior, no sentido de adequar sua letra e seu espírito às novas realidades colocadas pelas aceleradas mudanças no panorama econômico e social em que nos movemos.

Penso na urgente necessidade de melhor contemplar as especificidades de cada unidade federativa, possibilitando que as disparidades regionais não quedem sufocadas pelas amarras de uma legislação nacional unitária e, em alguns casos, insensível aos legítimos anseios dos Estados e do Distrito Federal.

Desenvolve-se, e caminha a passos largos, uma ação conjunta das Assembléias Legislativas, por meio do colegiado que reúne seus presidentes. Na última reunião, realizada em maio na cidade de Curitiba, tomou forma final proposta de emenda à Constituição federal (PEC), a ser apresentada ao Congresso Nacional assim que seja referendada pela maioria dos Legislativos estaduais.

Na justificação da proposta, assinalam os presidentes de Assembléias que hoje os Estados se vêem como que "comprimidos" entre a União e os municípios. Pela sistemática vigente de repartição de competências, aos Estados compete legislar sobre tudo quanto não lhes for expressamente vedado pela Lei Maior. Nessa interdição se enquadram as matérias de exclusiva responsabilidade da União, bem como os assuntos de interesse local, a cargo dos municípios.

Com a PEC elaborada pelas Assembléias se busca estender aos Estados a competência de legislar, concorrentemente com a União, sobre alguns temas que, injustificadamente, hoje permanecem restritos à esfera federal. Refiro-me, por exemplo, a questões relativas ao trânsito e ao transporte e à propaganda comercial. A lei federal trataria de fixar normas gerais, assim entendidos os princípios e diretrizes, reservando-se a cada Estado a prerrogativa de estabelecer as normas detalhadas, respeitadas as peculiaridades de cada região.

Seria a primeira vez, desde 1891, que a maioria das Assembléias Legislativas apresentaria uma proposta de mudança à Constituição federal. Mas, além de alterar o que está escrito, há outro caminho, eficaz também, de os estados alcançarem um território legislativo mais abrangente. Trata-se de buscar na interpretação da Lei Maior espaços a serem ocupados. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal (STF).

É o que acaba de ocorrer com lei aprovada na Assembléia Legislativa de São Paulo, em 2007, proibindo o uso, no Estado, de qualquer produto que utilize amianto, matéria-prima de caixas d"água e telhas onduladas, principalmente. De autoria do deputado Marcos Martins, do PT, e sancionada pelo governador José Serra, a lei demonstra profunda preocupação com a saúde pública e com o meio ambiente.

Em dezembro, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, concedeu liminar numa ação direta de inconstitucionalidade movida contra a referida lei por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI). Alegou a CNTI que havia sido usurpada competência da União, com afronta a uma lei federal de 1995 que permite o uso controlado de amianto no País. No último dia 4, o Plenário do Supremo, por 7 votos a 3, derrubou a liminar e manteve a vigência da lei.

Algumas manifestações de ministros do STF merecem registro. O ministro Eros Grau, por exemplo, tachou de inconstitucional não a lei estadual, mas sim a lei federal. O ministro Joaquim Barbosa destacou que a lei paulista encontra respaldo na Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, que prega o banimento do uso do amianto pelos riscos a que expõe o trabalhador. A propósito, observou ele: "Não acredito que a União possa ter duas caras, uma comprometida com outros Estados e organizações internacionais e outra descompromissada para as legislações com os Estados-membros." E o ministro Ricardo Lewandowski, que reviu voto anterior em favor da liminar, assinalou que o princípio federativo, ao lado do princípio democrático e do princípio republicano, constituem uma das vigas-mestras da Constituição federal. Segundo ele, em matérias que envolvam a defesa da saúde pública e questões ambientais, nada impede que a legislação estadual e a municipal sejam mais protetivas do que a legislação federal.

Haverá ainda o julgamento de mérito, mas os irrefutáveis argumentos expostos pelos sete ministros que derrubaram a liminar deixam antever futura repetição do resultado.

Esta decisão do STF se alinha a uma visão que valoriza a atuação do Estado-membro em sua competência constitucional para dispor, juntamente com a União, sobre saúde.

No modelo federativo brasileiro, devem ser prestigiadas as soluções distintas para um mesmo problema. Isso enriquece a experiência federativa e possibilita a todos os entes federativos outros parâmetros para opções diversas sobre uma mesma questão, tendo em vista a heterogeneidade do nosso país.

Foi, enfim, uma decisão verdadeiramente histórica, pelas perspectivas que abre para o aprimoramento da democracia e o fortalecimento do federalismo no Brasil.

alesp