Farra fiscal e crise federativa

OPINIÃO - Vaz de Lima*
03/10/2003 15:33

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Um personagem de Guimarães Rosa, tentando conter uma interminável e improdutiva conversa, interrompe o interlocutor com uma frase: "minha parte do discurso eu prefiro em dinheiro". É necessário dizer o mesmo em relação a tantos discursos oficiais e oficiosos em relação a assim chamada "Reforma Tributária" produzida pelo Governo Federal e aprovada, sabe-se lá por quais meios, pelo Congresso.

Os empregos que serão gerados com a reforma, o fim da guerra fiscal, o fortalecimento dos estados e municípios, a redução da carga tributária, o "espetáculo do desenvolvimento", enfim, todos os efeitos prometidos pelo governo petista com a aprovação da reforma parecem estar presentes apenas na versão oficial.

Ninguém além do PT parece ser capaz de enxergar qualquer aspecto benéfico na reforma tributária, não há outros que vejam as vantagens anunciadas nos discursos, pelo contrário, há praticamente um consenso no país, PT à parte, de que os efeitos da reforma irão justamente no sentido contrário ao apresentado. Há de se admitir que uma das duas hipóteses apenas é verdadeira, porque são excludentes, ou o PT está correto e ninguém mais entende absolutamente nada sobre economia no país ou o governo perdeu por completo o rumo.

A segunda possibilidade parece ser a mais adequada, porque o governo já assinala desde o início que lhe falta um rumo claro. Basta qualquer crítica ou contestação para que os próceres petistas se irritem, e isto demonstra claramente a incapacidade de justificar racionalmente as posições e decisões tomadas pelo governo.

A incapacidade de lidar com a realidade, a sistemática negação das coisas concretas em favor de um cenário que só existe nos discursos petistas, seria apenas um caso para terapia, não fosse o partido o responsável pela condução do país. No início do governo a dissonância cognitiva do PT apenas apontava para o desastre. Já os últimos acontecimentos, em especial a reforma tributária, colocam em risco o país.

Muitas são as falhas desta reforma, mas destaco o acirramento da guerra fiscal provocado pelas brechas e imperfeições da proposta, dada a gravidade e emergência da crise que ela está gerando. Em poucas semanas o Brasil, segundo o noticiário, perdeu bilhões na farra fiscal desencadeada pelo chamado "estopim da guerra fiscal". Parodiando Santo Agostinho, o PT proclamou: "dai-me a responsabilidade fiscal, mas não agora" e atirou os entes federativos em uma luta fratricida na qual todos perdem, em especial o Estado de São Paulo.

A culpa deste conflito intestino, porém, não pode ser atribuído aos estados, explicação bastante conveniente para encobrir, mais uma vez através do discurso irreal ou surreal, as trapalhadas do governo petista, tanto ao propor a reforma quanto em relação a sua condução. Os estados vivem em uma situação de penúria, causada em grande parte justamente às políticas praticadas pelo Governo Federal.

Os estados e municípios estão sofrendo com as quedas de arrecadação provocadas pela pesada recessão que se abate sobre o país. Esta crise, ao mesmo tempo em que reduz os recursos, aumenta a demanda pelos serviços, em especial na área social, enfraquecendo as outras unidades da federação.

Ao mesmo tempo, o governo tem sistematicamente aumentado a carga tributária através da criação, ampliação, transformação e outros processos de "fazer caixa", ampliando tributos e contribuições não repartidos com estados e municípios. Com isto, agrava ainda mais a crise recessiva, até porque tem reduzido os investimentos, preferindo dar outros destinos a estes recursos, enriquecendo os bancos.

Em tal situação, associada à brecha evidente na lei, o estabelecimento da guerra fiscal deixou de ser algo "opcional" tornou-se uma atitude até de defesa de todos os estados que não tinham muita clareza e compromisso com a responsabilidade fiscal, como São Paulo. O Governo Federal é o verdadeiro responsável pelo conflito, porque cerceou o acesso aos recursos - que devem diminuir ainda mais quando a reforma entrar em vigor - e ainda abriu brechas que colocariam quem não se aproveitasse delas em situação desfavorável.

Ainda que se admita, por generosidade de argumento, que o PT não havia sido capaz de imaginar os efeitos que teria esta dupla pressão estimulando a guerra fiscal, esta incompetência não teria causado tantos danos se ao menos o governo tivesse agido rápido. Logo que as medidas propostas foram anunciadas, as mentes lúcidas do país apontaram o efeito devastador que elas teriam sobre as relações federativas, mas o PT preferiu contra-atacar com discursos.

Quando os estados passaram a concretamente se preparar para a reforma, dando início à orgia dos benefícios, igualmente o governo nada fez além de falar e mostrar-se intransigente. Agora, mesmo que a situação se mostre insustentável, que um clamor público demonstre os deletérios efeitos das decisões tresloucadas do governo sobre o assunto, ainda assim os petistas nada fazem para, ao menos, iniciar uma contenção ao conflito generalizado.

A reforma tributária proposta continua sendo louvada nos discursos, apesar de já estar encaminhando a nação para o desastre antes mesmo de ser colocada em prática. Certamente, cada brasileiro que luta com dificuldades para manter seu negócio operando, apesar do aumento da carga tributária, que batalha para obter um emprego em uma economia ainda mais combalida pela má reforma, que precisa dos equipamentos públicos financiados pelos recursos que ficarão mais escassos ainda, precisa dizer ao presidente o que disse o personagem de Guimarães Rosa. Deve dizer em alto e bom som que, ao invés de tantos discursos e conceitos, prefere a necessária reforma justa, que coloque dinheiro em seu bolso, ao invés de tirá-lo, enquanto nos distrai com palavras vãs.

*Vaz de Lima é líder da bancada do PSDB na Assembléia Legislativa de São Paulo e presidente da Comissão Parlamentar de Acompanhamento da Reforma Tributária do legislativo paulista.

alesp