Nessa incorporação do "prosaísmo", que em sua forma extrema pode degenerar no que se chamou a "poesia-piada", o autor de Claro enigma destacou-se nitidamente de uma boa parte dos poetas da geração mais recente, quando pretendeu chegar a uma expressão genuína e exclusivamente poética. Nos melhores casos, esses autores, que por outros aspectos tanto devem a Carlos Drummond de Andrade, não parecem seriamente prejudicados pela adesão a esse ideal crítico da pura poesia, uma vez que as próprias noções do "poético" e do "prosaico" dependem largamente de critérios subjetivos, e não há como chegar-se sobre elas a um acordo duradouro.No mais, inclusive na exigência de um maior apuro técnico (e ainda no reiterado recurso às formas brevilíneas), cabe dizer que se antecipou muito a essas tendências de nossa poesia mais recente. Quando ainda estavam longe de manifestar-se tais tendências, ele chegou mesmo a escrever, no fragmento autobiográfico inserto nas Confissões de Minas, estas palavras características:"Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente exige-se pouco de nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista."E no prefácio às Confissões já se denunciavam os escritores que vivem esmagados pelo "peso da aceitação e da facilidade".Palavras sobretudo características, por virem de um autor surgido do modernismo, desse mesmo modernismo tantas vezes acusado de estimular a sedução da facilidade e do desleixo.*Sérgio Buarque de Holanda. "Rebelião e convenção - I" in Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 abr. 1952. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, p. XLI.CAMPO DE FLORESDeus me deu um amor no tempo de madureza,quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritose outros acrescento aos que amor já criou.Eis que eu mesmo me torno o mito mais radiosoe talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.Mas sou cada vez mais, eu que não me sabiae cansado de mim julgava que era o mundoum vácuo atormentado, um sistema de erros.Amanhecem de novo as antigas manhãsque não vivi jamais, pois jamais me sorriram.Mas me sorriam sempre atrás de tua sombraimensa e contraída como letra no muroe só hoje presente.Deus me deu um amor porque o mereci.De tantos que já tive ou tiveram em mim,o sumo se espremeu para fazer um vinhoou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.E o tempo que levou uma rosa indecisaa tirar sua cor dessas chamas extintasera o tempo mais justo. Era o tempo de terra.Onde não há jardim, as flores nascem de umsecreto investimento em formas improváveis.Hoje eu tenho um amor e me faço espaçosopara arrecadar as alfaias de muitos amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,e ao vê-los amorosos e transidos em torno, o sagrado terror converte em jubilação.Seu grão de angústia amor já me oferecena mão esquerda. Enquanto a outra acariciaos cabelos e a voz e o passo e a arquiteturae o mistério que além faz os seres preciososà visão extasiada.Mas, porque me tocou um amor crepuscular,há que amar diferente. De uma grave paciêncialadrilhar minhas mãos. E talvez a ironiatenha dilacerado a melhor doação.Há que amar e calar.Para fora do tempo arrasto meus despojose estou vivo na luz que baixa e me confunde.Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 218-219.CARTAHá muito tempo, sim, que não te escrevo.Ficaram velhas todas as notícias.Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,estes sinais em mim, não das carícias(tão leves) que fazias no meu rosto:são golpes, são espinhos, são lembrançasda vida a teu menino, que ao sol-postoperde a sabedoria das crianças.A falta que me fazes não é tantoà hora de dormir, quando dizias"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.É quando, ao despertar, revejo a um cantoa noite acumulada de meus dias,e sinto que estou vivo, e que não sonho.Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 332.SUBREPTÍCIOmersoconscienteliminarmarginaldesenvolvidodivididoalternoservientevencionadodelegadoversivolunartegmine fagiCarlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 355-356.