O Centenário Drummond

Incorporação do prosaísmo e apuro técnico*
28/10/2002 18:18

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Nessa incorporação do "prosaísmo", que em sua forma extrema pode degenerar no que se chamou a "poesia-piada", o autor de Claro enigma destacou-se nitidamente de uma boa parte dos poetas da geração mais recente, quando pretendeu chegar a uma expressão genuína e exclusivamente poética. Nos melhores casos, esses autores, que por outros aspectos tanto devem a Carlos Drummond de Andrade, não parecem seriamente prejudicados pela adesão a esse ideal crítico da pura poesia, uma vez que as próprias noções do "poético" e do "prosaico" dependem largamente de critérios subjetivos, e não há como chegar-se sobre elas a um acordo duradouro.

No mais, inclusive na exigência de um maior apuro técnico (e ainda no reiterado recurso às formas brevilíneas), cabe dizer que se antecipou muito a essas tendências de nossa poesia mais recente. Quando ainda estavam longe de manifestar-se tais tendências, ele chegou mesmo a escrever, no fragmento autobiográfico inserto nas Confissões de Minas, estas palavras características:

"Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente exige-se pouco de nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista."

E no prefácio às Confissões já se denunciavam os escritores que vivem esmagados pelo "peso da aceitação e da facilidade".

Palavras sobretudo características, por virem de um autor surgido do modernismo, desse mesmo modernismo tantas vezes acusado de estimular a sedução da facilidade e do desleixo.

*Sérgio Buarque de Holanda. "Rebelião e convenção - I" in Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 abr. 1952. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, p. XLI.

CAMPO DE FLORES

Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e outros acrescento aos que amor já criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

e cansado de mim julgava que era o mundo

um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Amanhecem de novo as antigas manhãs

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra

imensa e contraída como letra no muro

e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que já tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer um vinho

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa

a tirar sua cor dessas chamas extintas

era o tempo mais justo. Era o tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.

Hoje eu tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converte em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar e calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 218-219.

CARTA

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.

Ficaram velhas todas as notícias.

Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,

estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:

são golpes, são espinhos, são lembranças

da vida a teu menino, que ao sol-posto

perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto

à hora de dormir, quando dizias

"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto

a noite acumulada de meus dias,

e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 332.

SUB

REPTÍCIO

merso

consciente

liminar

marginal

desenvolvido

dividido

alterno

serviente

vencionado

delegado

versivo

lunar

tegmine fagi

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. 355-356.

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