O poeta social e a realidade social*


22/10/2002 18:11

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DA REDAÇÃO

Que a poesia de Carlos Drummond de Andrade tem um sentido social, um sentido "político" na significação mais alta da palavra, todos o reconhecem. Mas nem todos se dão conta desta significação: de dois lados opostos, a sua poesia sofre a interpretação como poesia tendenciosa, o que seria uma significação muito mais baixa, provocando acusações e elogios igualmente equívocos. Quanto às primeiras, não vale a pena ocupar-se com elas; provêm daqueles espiritozinhos, invidiosi d´ogni altra sorte [invejosos de todos os outros fados], que Dante encontrou no vestíbulo do Inferno, aconselhando Virgílio, a voz da Razão, ao poeta.

Non ragioniam di lor, uma guarda e passa

[neles não nos detenhamos, um olhar e basta].

Quanto àqueles elogios, porém, não basta objetar-lhes a índole essencialmente adeclamatória, isto é, atendenciosa, da poesia de Carlos Drummond de Andrade, nem o seu verso profundamente realista, em "Mãos dadas":

O tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Realmente, o problema não é tão fácil. O equívoco está na confusão entre o movimento poético e os movimentos da realidade social. Mas, não estarei caindo no mesmo equívoco? É lícito confrontar a poesia com uma realidade qualquer? É lícito confrontar a poesia lírica, expressão da experiência mais individual, com a realidade social, coletiva? O problema complica-se cada vez mais. A nossa época coletiva produz uma poesia, às vezes, hermética, mas que, em todo caso, não é e não pode ser poesia para todos. E a poesia antiga, que pretendeu ser para todos, estava e está rigorosamente separada da realidade. Devemos, porém, justamente ao conceito "Realidade" uma compreensão mais séria da poesia.

A realidade social faz parte da realidade geral, do mundo das sociedades, homens, bichos, coisas, objetos de toda espécie, daquele mundo que nos rodeia e limita, dando ao indivíduo a medida de sua solidão e a medida de sua capacidade de criar novas realidades. Fazer poesias, isto significaria transformar em luz própria a sombra que o mundo exterior deita na alma do poeta. Eis a definição, dada pelo poeta espanhol Pedro Salinas, na primeira de suas conferências Reality and the Poet in Spanish Poetry (Baltimore, 1940). O mundo, sempre "realista", mais realista do que o rei, não admite essa função real da poesia, não admite função nenhuma dela.

Assistiu, porém, a nossa época, ao desmoronamento de muitas realidades muito firmes, enquanto a poesia - diz Salinas - dá vida às sombras dos mortos e esperanças aos ainda não nascidos; "that is the ultimate miracle of poetry: that matter dies, perish, while the shadows remain and endure forever." [é este o mais último milagre da poesia: que a matéria morre, perece, enquanto as sombras permanecem e duram eternamente].

Recuperamos - após um século de subjetivismo romântico, que terminou em brincadeira, decoração, decadência e desespero - o papel objetivo da poesia. A poesia de Carlos Drummond de Andrade, expressão duma alma muito pessoal, é poesia objetiva. Não precisa de elogios subjetivos. Precisa duma interpretação objetiva.

Com isso, está eliminada a possibilidade duma interpretação personalista, psicológica, já inviável quando se trata dum poeta vivo, e particularmente de Carlos Drummond de Andrade, separando ele tão rigorosamente a sua vida particular e a sua poesia. Aliás, tal "dissociação da personalidade", estado de alma sempre fecundo para a poesia, não deixa de parecer estranha aos homens "normais". Provém daí a "estranheza" de toda a poesia de Carlos Drummond de Andrade, reflexo duma grande angústia e índice duma tensão dramática, dum conflito não resolvido, e que continua. O aspecto formal desse conflito, que exclui a harmonia, a da alma e das esferas, é a falta da rima:

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

A poesia de Carlos Drummond de Andrade, poesia de precisão máxima, está sem música. Isto seria uma falta para o pobre Banville, definitivamente enterrado, e os seus sequazes maníacos. Mas o tempo já mudou. Não descobrimos uma nova poesia, propriamente; antes, redescobrindo poesias antigas de índole diferente, reconhecemos que há poesias diferentes. Hoje, é preciso um catholic taste, como dizem os ingleses, para apreciar, ao lado dos diferentes verbos líricos do passado, o novo verbo lírico do tempo presente. Carlos Drummond de Andrade, representante de um novo verbo lírico, é um poeta muito diferente, e o "bom-gosto" mal-educado não basta para interpretar devidamente essa poesia, feita com a maior precisão duma inteligência superior. Não é poesia em imagens, à qual muitos estão acostumados; é poesia em conceitos, comprável, um tanto, à poesia conceptualista do barroco. Como esta e como toda poesia conceptualista moderna, está ameaçada de dois perigos: tornar-se livresca, bookish, como a de T. S. Eliot, ou cair em indisciplina formal, como a de Edward E. Cummings e Wallace Stevens. Carlos Drummond de Andrade está preservado disso pelo acordo raro de certa ingenuidade rústica com a mais rigorosa disciplina intelectual. Nunca será sentimental, em qualquer sentido. Assim, deu o passo decisivo da melancolia da sua época "pré-histórica" à angústia, com a qual o verdadeiro poeta Carlos Drummond de Andrade nasceu tarde. Desde então, defende a posição, que lhe custou, com a arma suprema da autodefesa do indivíduo: com o humor satírico, que, na sua poesia, não passa nunca dum incidente, mas é também índice significativo do seu dramatismo interior.

*Otto Maria Carpeaux. Origens e fins. Rio de Janeiro, CEB, 1943 [pp. 329-333]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, p. 57.

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

Idem, p. 68

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

Ib., p. 67/68

alesp