Ame-o ou deixe-o

OPINIÃO - *Maria Lúcia Amary
23/10/2003 16:00

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Basta abrir os jornais e verificar, ainda em pequenas notas, em colunas específicas, articulações do governo federal para o controle de algumas das ações desenvolvidas por ele próprio. No primeiro momento, como é óbvio, deveria se ver nestas ações uma capacidade de administração, como a necessária nos negócios da vida privada, calcada nas relações de mercado. Mas, e quando não está em questão os produtos de uma linha de montagem, mas a sociedade, este controle é válido?

É este o ponto para o qual quero chamar a atenção de cada um dos leitores. Quando o governo é conivente com a articulação de pequenas frentes de fiscais, segundo os jornais, já montadas em 21 estados brasileiros pelo PT, com a finalidade de acompanhar "in loco" como cidadãos brasileiros estão cumprindo determinações federais dos seus programas de assistência, sob a justificativa de que somente busca levar a "educação cidadã" aos menos favorecidos, econômica e socialmente, nos deparamos com uma tutela, chancelada pelo Estado, sobre os direitos individuais garantidos em nossa Constituição.

Chamada "Talher do PT", a fiscalização é dividida em núcleos, cada um deles com quatro militantes, encarregados de montar as equipes que farão o trabalho de campo junto aos beneficiados pelo Programa Fome Zero. O partido justifica esta ação dizendo que ela é social e transparente e sugere que os outros partidos façam o mesmo serviço de fiscalização. Todo este parágrafo, quase que literalmente, é uma transcrição de uma das notas da coluna Painel, da Folha de S. Paulo, da terça-feira, dia 23 de setembro. Portanto, não é o que eu penso deste assunto, mas o que já é fato noticiado.

Volto a chamar a atenção dos leitores, uma vez que não se trata do PSDB, PFL, PL, PDT, PSB ou de qualquer outra das siglas partidárias do nosso País vir a fazer o mesmo sobre as ações governamentais. Trata-se, isto sim, de respeitar a individualidade de cada um dos nossos cidadãos no sentido de abrir chances para que eles, pelas próprias pernas, tenham acesso à educação que lhe garantirão, sem sombra de dúvida, uma inserção na vida em comunidade. Ninguém, aqui, deixa de reconhecer a existência de brasileiros que necessitam de ajuda, mas não há como reparar erros de um processo histórico - como é o caso do Brasil e os que estão fora do mercado de trabalho - num passe de mágica, nem mesmo em alguns meses de governo, nem em quatro anos, nem em oito. A vida humana é sistêmica, a República é um processo. A chegada de Lula e sua turma ao poder é, apenas, mais um degrau a ser subido neste processo histórico. Não é o degrau definitivo!

A preocupação central, porém, é o controle que o PT, partido do governo federal, deseja impor à sociedade com a conivência do próprio governo, pelo menos até agora. Em primeiro lugar, ao senso comum, é possível que os fiscais do PT venham a ser confundidos com o governo, o que numa democracia são bem diferentes. Um partido é a reunião de pessoas aglutinadas por uma mesma ideologia sem poderes executivos dentro da República. O governo, por sua vez, é um grupo de pessoas, oriundas de partido, escolhidas democraticamente para conduzir, por um período de tempo delimitado, os interesses de uma nação.

Não podemos deixar de nos preocupar com esta confusão, ainda mais quando o governo tem nomeado, para os principais cargos dos chamados primeiro, segundo e terceiro escalões do serviço público pessoas ligadas ao PT. E aqui não se trata, como sugeriu o presidente Lula, nesta semana, em entrevista exibida pelo Jornal da Globo, da Rede Globo, de choradeira de quem perdeu sua vaga no governo federal. É óbvio, como disse o presidente Lula, que quando alguém chega ao poder coloque pessoas de sua confiança nos cargos próximos a ele e, nos escalões inferiores ocorra situação semelhante. Mas, não se pode deixar de lado que governo não é partido e deve ser formado pela pluralidade de pessoas escolhidas por sua absoluta capacidade e habilidade, independente do "lado" em que estejam, como, absurdamente, chegou a dizer o ministro da Saúde ao justificar as substituições de pessoal nas diretrizes de um hospital público. Ou seja, se é do PT é bom. Se não for, é ruim!

Nesta semana, fechando o cerco aos cargos de segundo e terceiro escalão do governo federal, que intuitivamente afirmo dizer que já era detido por militantes petistas desde a abertura política vivida pelo Brasil no início dos anos 80, portanto independente de qual partido era o governante, o presidente Lula nomeou os titulares de bancos estatais, centrais energéticas, agências de controle do serviço público. Tudo, é óbvio, dentro da legalidade.

A verdade é que o governo federal e o PT, que são instituições distintas, estão fundindo-se numa só. Nunca, na história do Brasil, chegamos a viver uma situação sequer parecida com esta, de tanta afinidade entre o governo e um partido, portanto uma ideologia. No mundo, quando países, como a Alemanha por exemplo, viveram situação parecida com esta sabemos no que deu. Por enquanto, como somos testemunhas, tudo está dentro de uma normalidade e a vida republicana brasileira segue os seus passos. Estamos atentos e esperamos ter força, com nossa dedicação à vida pública, de colaborar para que a democracia continue predominante e os respeitos à individualidade, garantidos em nossa Constituição, não sejam violados.

Para finalizar, gostaria de saber, daqui a algumas décadas, quando algum pesquisador abrir este periódico e ler este artigo, qual será sua reação: nossa, que ridículo, olha com o que a deputada estava preocupada em 2003? Muito pior será: nossa, uma deputada já vislumbrava o que estava para acontecer?

Que nunca mais voltemos a viver o período onde predominava o slogan: Brasil, ame-o, ou deixe-o.

*Maria Lúcia Amary é deputada estadual pelo PSDB e presidente do secretariado de Mulheres do PSDB do Estado de São Paulo.

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