Um caminho para democratizar as cidades

OPINIÃO - Mário Reali*
13/11/2003 19:21

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O movimento social pela reforma urbana e pelo direito de todos à cidade teve mais um importante avanço com a realização da Conferência Nacional das Cidades, realizada em Brasília entre 23 e 26 de outubro, e a constituição do Conselho Nacional das Cidades. Nas etapas preparatórias ocorreram conferências municipais e estaduais em todo o país, abrangendo 3.457 municípios, e que reuniram mais de 300 mil participantes, entre representantes de movimentos populares, ONGs, sindicatos, entidades de ensino e pesquisa, entidades profissionais, empresários e poder público.

Esse processo ofereceu espaços democráticos de participação e construção coletiva das políticas nacionais para as cidades. A integração das políticas de habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana no Ministério das Cidades e sua discussão na Conferência das Cidades parte do conceito de que habitação não se restringe a casa, mas exige, especialmente no meio urbano, serviços e obras complementares, indispensáveis à qualidade de vida.

O caminho percorrido, do município ao plano nacional, traz também um aspecto interessante, que abre a possibilidade de articulação das diferentes esferas de governo, articulando as várias políticas dos municípios com o Estado e com o governo federal. Essa integração é fundamental para que as soluções para os complexos problemas de habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana possam ser otimizados e potencializados, através de programas e ações complementares.

A coordenação das políticas também tem sido buscada em outras áreas, com a realização das Conferências da Saúde, da Segurança Alimentar e do Meio Ambiente, que ocorrerão nos próximos meses. Essas conferências - assim como a dos Direitos Humanos, já realizada - mostram que o governo Lula está propondo um novo modelo de democracia, envolvendo todos os atores na resolução dos problemas nacionais. As conferências consolidam um dos princípios do governo federal, de busca pela transparência e controle social das políticas públicas. E a criação dos diversos conselhos nacionais pode estimular a criação dos respectivos conselhos nos Estados e municípios, levando a um avanço da democracia no país como um todo.

A importância da criação do Conselho das Cidades também pode ser medida pelo seu processo de formação. Houve uma mobilização muito grande e uma disputa saudável para eleger os conselheiros. A dificuldade por contemplar todas as instâncias, segmentos e níveis de governo era esperada, mas conseguiu-se que todos os Estados do país tivessem um observador. Esse critério, assim como a amplitude do conselho, com representantes de entidades de caráter nacional, foram muito importantes e só ocorreram graças às negociações realizadas durante a Conferência Nacional. Outro fator a se destacar na composição é que a sociedade civil conta com número maior de representantes que o Poder Público, o que denota seu caráter democrático e avançado.

De todo modo, é fundamental se observar que as conferências e a criação do conselho não esgotam o processo. São, na realidade, passos de uma caminhada mais longa pela democratização das cidades, que vem desde a década de 60, com a luta pela Reforma Urbana. O número de municípios e participantes das conferências das cidades foi enorme, e agora é preciso retornar ao ponto de partida - multiplicando, em cada município, os debates, as ações e atores envolvidos. O desafio do direito à cidade, através da garantia da população à habitação digna, ao saneamento ambiental, e à mobilidade urbana deve ser promovido em todos os níveis de governo, através de uma gestão democrática e inclusiva.

Se, por um lado, existem problemas financeiros para que todos esses objetivos sejam alcançados, é preciso reconhecer que o grande entrave a eles ainda é uma necessária mudança política e cultural dos direitos no Brasil, dos direitos em relação às cidades, e do cumprimento da função social da cidade e da propriedade, previsto no Estatuto das Cidades. A realização das conferências e a criação do Conselho Nacional das Cidades reforçam esses instrumentos, e pode-se pensar inclusive em vincular a transferência de alguns recursos federais e estaduais aos municípios à adoção desses instrumentos e construção de políticas nessa direção.

A população que ganha menos de 3 salários mínimos representa hoje 85% daqueles que integram as estatísticas do déficit habitacional - cerca de 6,5 milhões de moradias. Democratizar o acesso à moradia, buscar a universalização do saneamento ambiental, garantindo o financiamento do setor e acesso ao serviço, garantir a mobilidade das pessoas - especialmente aquelas que têm se tornado excluídas em função do valor das tarifas - são alguns dos desafios à nossa frente. Bom saber que agora temos um caminho para democratizar as cidades.Para que sejam inclusivas. Para todos.

*Mário Reali é arquiteto, mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU-USP e deputado estadual pelo PT-SP

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