UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL - OPINIÃO

Renato Simões*
09/02/2001 16:53

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Não foi José Bové; não foram as ações do Movimento dos Sem-Terra contra as plantações de transgênicos da Monsanto; não foram as manifestações de carinho aos líderes mais destacados da oposição no Brasil, como Lula e Olívio Dutra que irritaram as elites econômicas no Brasil e no exterior, durante os seis dias em que Porto Alegre despertou a atenção de todo o mundo. O que mais irritou os setores dominantes e adeptos do neoliberalismo entre os dias 25 e 30 do último mês, durante a realização do Fórum Social Mundial, foi o grito de que um outro mundo é necessário, é urgente, é possível.

Sob esse lema, foram a Porto Alegre milhares de pessoas de mais de cem países do mundo: entre elas estavam intelectuais, sindicalistas, ambientalistas, mulheres, representantes de povos indígenas, negros e negras, militantes de movimentos populares, parlamentares, governantes de cidades, Estados e Nações. No início, sem grandes pretensões a não ser realizar um grande encontro que representasse a oposição ao pensamento elaborado e divulgado, há mais de trinta anos, pelo Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, na Suíça.

A primeira descrença a vencer era a de que era possível dar uma nova roupagem, mais sistematizada e propositiva, às manifestações que abalaram encontros das instituições privadas e multilaterais do capital, normalmente pintadas pela mídia mundial como atos de barbárie e anárquica rebeldia de ONGs que não têm mais o que fazer do que perseguir os bem comportados representantes dos bancos internacionais e governos com eles alinhados. Veja-se a este respeito, por exemplo, a cobertura da imprensa conservadora às manifestações de Seattle, EUA, contra a rodada do milênio do comércio transnacional, e aquela dedicada à manifestação antitransgênicos em Não-Me-Toques, RS, aliás, sugestivo nome para um local onde uma multinacional instala um centro de desenvolvimento de pesquisa potencialmente perigoso para a saúde pública e o meio ambiente.

Em seguida, constatado desde a abertura que o encontro foi um sucesso de público e representatividade transcontinental, veio o descrédito quanto à capacidade de elaboração de alternativas ao neoliberalismo para além do discurso crítico. Novamente se surpreenderam os céticos e os neoliberais. Os debates matutinos foram organizados a partir de quatro temas: a produção de riquezas e a reprodução social, o acesso à riqueza e a sustentabilidade, a afirmação da sociedade civil e dos espaços públicos e poder político e ética na nova sociedade. Reuniram pensadores e militantes das causas sociais de grande densidade, cujos textos eram imediatamente postos à disposição de todo o planeta através da Internet. À tarde, durante os cinco dias de trabalho, mais de quatrocentas oficinas realizaram um rico mosaico de reflexões, propostas e articulações nas mais variadas áreas do conhecimento. O início da noite foi tomado por depoimentos pessoais de personalidades que emocionaram a toda a assistência com vidas colocadas a serviço da humanidade.

A terceira barreira transposta foi a confrontação direta entre os organizadores do Fórum de Davos e do Fórum de Porto Alegre, promovida através de uma teleconferência histórica. Aos patéticos apelos de Davos por uma parceria que permitisse a incorporação dos atores sociais reunidos em Porto Alegre, a indignação ética e política do Fórum Social Mundial contra o pensamento único aspirado pelos ideólogos neoliberais respondeu com a continuidade da edição anual, na mesma data, dos dois encontros. E a razão é cristalina: o Fórum Social Mundial não veio para dar uma roupagem social ao neoliberalismo e à ditadura do capital financeiro, mas para apontar a necessidade de novos paradigmas para a ordem econômica internacional, para a soberana relação entre as Nações, para a construção da justiça social em escalas local, nacional e planetária. A falsa expectativa de Davos em contar com a unificação dos dois Fóruns nada mais é que a reprodução cansativa da tese do pensamento único, que até admite fazer concessões sociais desde que o todo-poderoso mercado (e as forças que o dominam) continuem a reinar sem contestação.

Veio, então, o último e definitivo teste: teria valido a pena? Alguns setores politicamente interessados em diminuir os efeitos do Fórum de Porto Alegre destacaram a ausência de uma carta ou plataforma divulgadas ao final dos trabalhos. A riqueza dos textos apresentados nas mesas-redondas, as propostas oriundas das oficinas vespertinas, os compromissos assumidos pelo Fórum Parlamentar Mundial e pelo Fórum dos Prefeitos alinhavam elementos que fundamentam as futuras edições do Fórum Social Mundial, a próxima das quais a reunir-se em janeiro de 2002 novamente em Porto Alegre. Os que esperavam um novo pensamento único com o sinal trocado se decepcionaram, à medida em que múltiplas perspectivas políticas e econômicas se irmanaram na defesa de uma elaboração plural e democrática, em construção e desenvolvimento permanente.

Sim, um outro mundo é possível, afirmaram simbolicamente no encerramento do Fórum representantes de todos os continentes presentes. Em cada momento da resistência contra o desemprego, a desnacionalização da nossa economia, a destruição de nosso ambiente, as várias formas de discriminação e de violação dos direitos humanos, ficará em nós a memória deste Fórum Social Mundial e a expectativa de que, nos próximos, avançaremos ainda mais na construção desses novos tempos que queremos viver.

*Renato Simões é deputado estadual pelo PT e integrou a Comissão de Representação da Assembléia Legislativa de São Paulo ao Fórum Social Mundial.

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