Maioridade penal: um problema de foco

OPINIÃO - Rosmary Corrêa*
03/12/2003 19:00

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Ao descrever o parlamento da sua Utopia Thomas Morus disse que os parlamentares estavam impedidos por alguns dias de se manifestar sobre um projeto em pauta ou mesmo de discutir o assunto privadamente. O objetivo deste prazo era impedir que as pessoas fizessem pronunciamentos sobre algum assunto antes de estudá-lo mais a fundo, enfim, o filósofo achava pouco produtivo que se decidisse sobre algum tema importante com base na emoção ou de forma subjetiva.

Já ocorreram inúmeros debates sobre a redução da maioridade penal, sempre na seqüência de fatos chocantes como o assassinato de Felipe Caffé e Liana Friedenbach. Certamente toda a sociedade, em especial parlamentares como eu que tem na segurança pública um de seus grandes compromissos de mandato, espera que desta vez o debate avance ao invés de se enfraquecer quando o assunto sair das manchetes.

A meu ver um dos obstáculos a uma discussão mais produtiva e objetiva sobre o tema está no erro de foco da questão. O problema não é a maioridade penal em si, mas o fato de elementos perigosos, independente da idade, serem capazes de cometer crimes hediondos não serem punidos.

A falta deste foco produz uma falsa questão que gera duas posições inconciliáveis, ambas fundamentadas em generalizações equivocadas. Um lado trata todo adolescente infrator como criminoso perigoso enquanto o outro imagina que todo assassino frio e cruel é apenas um adolescente problemático que merece ficar impune.

Enquanto se tenta consolidar uma regra geral que contemple duas opções extremas e generalizadas o debate não avança. Um dos motivos desta inércia deve-se a ser fácil à parte contrária encontrar argumentos para defender seu ponto de vista e dar um nó na opinião pública. Assim enquanto alguns tentam provar que nem todos os adolescentes transgressores devem ser punidos toda a severidade e outros que elementos perigosos não podem continuar sendo punidos de forma tão branda por crimes tão violentos, as vítimas continuam a surgir.

Não é admissível que indivíduos tão perigosos como o assassino de Felipe Caffé e Liana Friedenbach, como Batoré e tantos outros criminosos, convivam com outros adolescentes ou estejam submetidos a um sistema de segurança que não seja compatível com a sua periculosidade. Ignorar esta realidade óbvia é negar inclusive os direitos dos demais adolescentes internados na Febem.

Mas esta questão não será resolvida com a redução da maioridade penal. Se ela for fixada em 16 anos ainda assim não será capaz de conter os crimes hediondos cometidos pro adolescentes abaixo desta idade, se for baixado para 14 irá aumentar o número de criminosos perigosos com 12 e assim por diante.

O verdadeiro eixo da questão é a distinção entre os crimes hediondos, chocantes, aqueles que são cometidos com uma crueldade fria, a maior parte deles por motivos fúteis, pelo impulso de matar, como admitiu o assassino de Liana.

A própria questão da maioridade penal perde importância em si na medida em que existam mecanismos legais para punir com maior rigor os adolescentes que cometem crimes hediondos. A vontade da sociedade, de fato, não é de ampliar as punições, mas evitar a impunidade dos criminosos perigosos capazes de ações como as que provocam estes acirrados debates na mídia.

Uma vez estabelecidos critérios legais objetivos para separar o joio do trigo se impedirá que o ECA e a legislação penal e constitucional transformem-se em escudo para bandidos perigosos, ou, para o interesse dos que defendem a manutenção do Estatuto tal como ele está, permitirá que o ataque cerrado contra esta lei reduza-se, pois estarão excluídos da proteção os casos extremos.

Feitas as contas e será possível verificar que há na verdade um percentual muito pequeno de indivíduos, maiores ou menores, que tem tal desvio de sociopatia e ausência de escrúpulos e remorsos a ponto de serem capazes de ações tão violentas. A visão preconceituosa de fato não é aquela que deseja que esta ínfima minoria de psicopatas e sociopatas tenham uma punição, e até um tratamento, compatível com a gravidade das suas ações.

É preciso neste momento adotar a regra sugerida por Morus e discutir o assunto depois de um estudo mais aprofundado, sem as paixões de momento, sem os interesses políticos, não para que seja vitoriosa a posição A ou B, mas para que seja feito aquilo que é melhor para a sociedade, seguindo um caminho ponderado e moderado. Isto não será possível enquanto não se chegar ao verdadeiro núcleo da questão, que não está na maioridade penal em si, mas na impunidade aos atos bárbaros.

* Rosmary Corrêa (PSDB) ou Delegada Rose, como é conhecida, é deputada estadual e membro da Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa de São Paulo..

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