Da Delegacia à felicidade

OPINIÃO - Maria Lúcia Amary*
12/04/2004 17:35

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As delegacias especializadas na defesa da mulher estão completando 17 anos de existência neste ano. Surgiram em São Paulo de forma pioneira no mundo em dezembro de 1986. Depois, avançaram para os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, no Brasil, se estendendo para Argentina e Uruguai. Hoje, são 125 unidades em São Paulo (nove na capital, 12 na grande São Paulo e 104 no interior). Minas tem outras 20, o Rio tem nove e a Bahia, duas. Argentina e Uruguai possuem uma delegacia, respectivamente.

Apesar disso, o número de ocorrências aumenta dia após dia. Só para se ter uma noção: as mulheres vítimas de maridos que procuravam as delegacias especializadas nos anos 80 eram de meia idade. Acreditava-se que essas delegacias não resistiriam ao tempo porque se achava que as filhas dessas mulheres não iriam querer passar pela mesma situação das mães. Mas hoje é comum nessas delegacias adolescentes que apanham de namorados. Pior que isto: homens com os quais elas têm relacionamentos recentes.

A pergunta que a maioria das pessoas faz é: por que isto ocorre? Não deveria ser o contrário? Será que as delegacias não funcionam corretamente? Na verdade, as delegacias especializadas não conseguem por si só reduzir a violência contra a mulher. Não que não haja trabalho duro dos funcionários. São aproximadamente 800 policiais femininas só nas unidades de São Paulo. Juntas, elas registraram 290.961 casos ao longo de 2003. O problema é que a atuação dessas delegacias não atinge a origem da violência.

A idéia ao se criar essas delegacias era prestar um atendimento diferenciado às vítimas de violência sexual. Até então se pensava ou se trabalhava mais em função da violência registrada na sociedade. Ou seja, a de quando o agressor é um estranho que estupra, agride ou mata e foge. Rotulava-se esse tipo de gente como marginais comuns de qualquer cidade. De fato, eles existem, mas não são maioria. As Delegacias da Mulher computaram ao longo da sua existência que 60% dos crimes contra mulheres ocorriam em casa mesmo.

Descobriu-se que a violência doméstica é muito mais grave que a violência de estranhos. De acordo com as estatísticas do setor técnico das delegacias da mulher, maridos, irmãos, tios e outros parentes são os que mais agridem. Mais grave ainda é que eles não praticam apenas a violência que resulta em lesões corporais. Colocam em ação um outro tipo mais destruidor: a moral. Trata-se de uma espécie de violência psicológica. É a tortura do marido que reprime a mulher, do irmão que castra a irmã, do tio que ameaça a sobrinha.

Apesar de identificado, esse tipo de violência ainda não conta com um aparato à altura nas Delegacias de Defesa da Mulher. Só muito recentemente, atendimentos sociais estão sendo mais incentivados. Nos últimos tempos, essas unidades firmaram parcerias com faculdades de psicologia, serviço social e direito no sentido de atender adequadamente quem as procura. Há alguns exemplos bem-sucedidos no Estado, como no município de Marília, onde, há quatro anos, a Delegacia da Mulher local conseguiu montar um Centro de Psicologia e de Atendimento Jurídico.

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) firmou convênio há três anos com a Procuradoria Geral do Estado para oferecer advogados de graça em três delegacias especializadas da capital (uma em Santo Amaro, na zona sul, e outras duas em São Miguel Paulista e São Mateus, ambas na zona leste). Na primeira Delegacia da Mulher instalada no Brasil foi criado ainda um serviço de terapia individual e de grupo. Da instalação em 2001 para cá, cerca de quatro mil pessoas passaram por essas terapias.

Há, por fim, mais uma iniciativa meritória, implantada em agosto de 2002, também na primeira delegacia especializada do País: o Centro de Terapia do Agressor. A diferença em relação às terapias tradicionais é que os homens agressores são convidados a participar. O tratamento não é obrigatório, mas a psicóloga, designada para o serviço, tenta sensibilizar o agressor. O trabalho tem dado resultados. Um dos agressores se recuperou a tal ponto que voltou à delegacia e se ofereceu como voluntário para trabalhar com outros agressores.

Essas iniciativas têm um papel fundamental na recuperação e também na reversão do quadro. É preciso sempre buscar a origem da violência e tratá-la como uma doença. A psicóloga que atendeu o agressor que se recuperou, por exemplo, descobriu que a carga negativa que ele carregava provinha do fato de ter sido rejeitado pela mãe desde a concepção. Para chegar a situações como essa, há que se fazer um trabalho muito intenso para aparelhar melhor essas delegacias especializadas com profissionais de apoio.

Além disso, é fundamental investir na educação. Todas as mulheres têm de ter consciência de que conseguirão mudar essa situação de violência se agirem no sentido da mudança. A começar pelo fato de que são as mulheres que educam os homens. O trabalho deve começar cedo e dentro de casa. Depois, precisa prosseguir nas escolas. Nenhuma violência resiste ao poder da informação. É isso que defendemos como prioridade na nossa atuação como parlamentar na Assembléia Legislativa.

É claro que não vamos nos descuidar também de outras ações igualmente necessárias. Um exemplo é a pressão que temos de fazer em relação às penas que os juízes têm preferido aplicar. Muitos agressores se vangloriam do fato de pagarem uma ou duas cestas básicas depois de agredirem. Mas essa pena não está na lei. Os magistrados precisam ter bom senso para julgar. Ainda em relação às penas, há necessidade de se aumentar a reclusão dos condenados. Hoje ela varia de um a três anos, mas deveria ser de oito, no mínimo.

Defendemos da mesma forma que se faça um combate mais efetivo às propagandas que fragilizam as mulheres, como as de cerveja, e lutamos para que os governos, em todas as instâncias, equipem melhor seus sistemas de saúde e de atendimento social para dar retaguarda às mulheres vítimas de violência. Até temos projeto na Assembléia que obriga a concentração do atendimento das vítimas em um mesmo local, ou seja, em hospital que comporte também o registro da ocorrência, os exames do IML e o apoio psicológico.

O trabalho no combate à violência contra a mulher é interminável porque o mundo em que vivemos está muito mais propício para ocorrências desse tipo que no passado. Se antes a violência perturbava, hoje ela assusta. Sobretudo em função do desemprego, é cada vez maior a violência doméstica. Pelos mesmos motivos, é crescente a violência na sociedade. Mas nada disso deve ser desestimulador. A mulher tem o direito de ser feliz e todas nós, com certeza, queremos que isto ocorra.



* Maria Lúcia Amary é deputada estadual pelo PSDB e presidente do Secretariado Estadual de Mulheres Tucanas de São Paulo.

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