Uma muralha na soleira

OPINIÃO - Rosmary Corrêa
25/11/2003 19:32

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Na música Mulheres de Atenas os autores, Chico Buarque e Augusto Boal, destacam a dubiedade de uma sociedade que se pretende grande e nobre mas submete as suas mulheres a uma vida sujeita à crueldade e descaso doméstico. A criação das Delegacias da Mulher foi um importante passo dado pelo Brasil, pioneiro nesta instituição no mundo, ao reconhecer a violência contra a mulher como um assunto público. Este caráter dúbio da sociedade, mencionado na música, só é possível quando predomina uma visão herdada do passado patriarcal em que as questões domésticas são sempre assuntos privados nos quais o Estado não pode e não deve interferir. A grande barreira para a eliminação da mácula da violência contra a mulher é justamente esta questão cultural que transforma a soleira das casas numa muralha entre o público e o privado, muralha esta que o Estado não deveria ultrapassar. Durante séculos as mulheres viveram confinadas, sob a autoridade absoluta dos patriarcas, não só não tinham nenhum tipo de proteção, viviam como as mulheres de Atenas da música, como sequer se reconhecia algum tipo de autoridade estatal que preservasse seus direitos. As Delegacias da Mulher e uma crescente preocupação com a produção de uma legislação destinada a proteger os indivíduos contra a violência de gênero atenuaram esta situação, não apenas na ação concreta visando eliminar a violência, mas também como um símbolo de que a mulher estava sujeita à tutela da autoridade do companheiro mais do que a do Estado. Hoje esta luta precisa ser travada em dois pontos para avançar. O primeiro fórum desta luta é rever a legislação que considera a violência de gênero como um crime de menor potencial ofensivo e portanto passível de ser tratado pelos juizados especiais e punido de forma leve. Esta concepção certamente ainda herda muito daquela visão que considera a questão como assunto privado, na qual o Estado pode apenas intervir de forma leve e em casos extremos. Tal postura atinge profundamente a mulher em seus direitos e auto-estima, a coloca como cidadão de segunda classe a quem se pode agredir sem maiores conseqüências. A convivência sob um mesmo teto e os laços afetivos entre agredido e agressor, que deveria servir como agravante na punição da violência, torna-se então um atenuante. O segundo ponto que precisa ser desenvolvido guarda relação direta com o anterior: a conscientização da sociedade que a mulher tem direitos e que a preservação destes direitos não se encerra no limiar das casas nem pode ser revogado pelo relacionamento. Em outras palavras, reconhecer que a idade do poder patriarcal sobre as relações domésticas encerrou-se em definitivo.

Enquanto a violência contra a mulher não for estigmatizada como ação covarde e criminosa ao invés de comportamento socialmente tolerável, enquanto não forem extirpadas as visões antiquadas que permitam que, tal como os homens da música, os homens que agridem as mulheres sejam vistos como heróis, não se conseguirá eliminar de todo esta mácula. Esta conscientização permitirá que se avance inclusive na produção de uma legislação mais adequada com penas mais severas. Permitirá também que a mulher sinta-se segura para reivindicar seus direitos e prerrogativas e, sobretudo, colocará a sociedade como salvaguarda destes direitos. Isto porque não se pensará, como ainda hoje se encontra quem pense assim, que em briga de marido e mulher não se mete a colher ou até mesmo que espancar a mulher é sinal de virilidade ao invés de crime covarde.

* Rosmary Corrêa (PSDB) ou Delegada Rose, como é conhecida, é deputada estadual e membro da Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa de São Paulo, foi, em 1985, instalou da primeira Delegacia de Defesa da Mulher.

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