Opinião - Lei da Mordaça: inconstitucionalidade


12/04/2010 17:14

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Com o intuito de tornar expressa a responsabilidade de membros do Ministério Público que ingressam com "ações temerárias", ou com "manifesta intenção de promoção pessoal" ou "visando perseguição política", o Projeto de Lei 265/2007, apelidado de "Lei da Mordaça", de autoria do deputado Paulo Maluf, propôs algumas modificações nas leis 4.717/1965; 7347/1985 e 8.429/1992.

Chama-nos especial a atenção a alteração sugerida no art. 19 da Lei de Improbidade, ao prever a configuração de crime no oferecimento de representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária, cuja pena é de detenção de seis a dez meses e multa.

Muito embora a Lei 8.429/1992 já contemplasse aludida penalidade, houve ampliação do dispositivo legal, de molde a considerar também criminosa a propositura de ação ou representação, pelo promotor ou procurador, quando reputada temerária. Indubitavelmente, estamos diante de uma estarrecedora violação ao princípio da reserva legal, uma vez que este impõe que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com típicos genéricos, demasiadamente abrangentes.

Trata-se, assim, de verdadeira carta branca conferida aos processados por ato de improbidade visando à punição dos promotores e procuradores, sob o vago argumento da temeridade da ação, quando, na realidade, sabemos que o Parquet está autorizado a propô-la, mesmo não havendo um juízo de certeza, em decorrência do velho brocardo jurídico in dubio pro societate.

Por força dessa vagueza conceitual, que abarca uma série infindável de condutas, sem nenhum limite material, o preceito legal deve ser considerado inconstitucional.

A situação gera, ainda, um maior estarrecimento quando se constata que o alvo da lei é atingir e engessar a atuação de uma instituição que tem como missão constitucional precípua zelar pela ordem democrática.

Com efeito. O Ministério Público surge como "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (CF, art. 127). O caráter permanente e a natureza de suas funções levam à conclusão de que se trata de um dos pilares da democracia, em cuja atuação independente repousam as esperanças de uma sociedade justa e igualitária.

Desse modo, toda e qualquer interpretação relacionada ao exercício da atividade ministerial deve ter como premissa a necessidade de que tal instituição possa cumprir seu papel da maneira mais abrangente possível.

Não é por outra razão que seus membros podem ser classificados como agentes políticos e têm plena liberdade funcional para atuar, desempenhando suas funções com prerrogativas e responsabilidades próprias.

Nesse contexto, punir criminalmente aquilo que se considera genérica e subjetivamente como a propositura de ações temerárias constitui grave inibição ao dever constitucional do Ministério Público de zelar pela ordem democrática. Sendo os olhos e o longa manus da sociedade, suas ações não podem ser arbitrariamente engessadas, sob pena de se estar cerceando e cegando a própria coletividade, situação esta só compactuada pelos regimes ditatoriais.

Um Ministério Público acuado e constrangido, em sua atuação, representa a ruptura de uma das vigas mestras na qual se escora o Estado democrático de direito, pois somente instituições independentes podem validamente cumprir a sua missão constitucional de zelar pelo bem comum.





*Fernando Capez é procurador de Justiça licenciado e deputado estadual, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP, é professor da Escola Superior do Ministério Público e de cursos preparatórios para carreiras jurídicas, além de ser autor de várias obras jurídicas.

alesp