DA REDAÇÃO Quando a revista Veja publicou uma pesquisa realizada entre poetas, romancistas e críticos literários, "A Máquina do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade, foi considerado o mais belo poema do mundo, ao lado de "The Waste Land", de T. S. Eliot. Na data do centenário de nascimento do fazedor de poesias mineiro, nada mais justo que reproduzir os versos da obra-prima do itabirano gauche que , seguindo as palavras de um anjo torto, tornou-se o maior poeta brasileiroA MÁQUINA DO MUNDOE como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa,e no fecho da tarde um sino roucose misturasse ao som de meus sapatosque era pausado e seco; e as aves pairassemno céu de chumbo, e suas formas pretaslentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerávelpelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentartoda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perderae nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora deteu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivose revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo."As mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atingedistância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,as paixões e os impulsos e os tormentose tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeberno sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfarna estranha ordem geométrica de tudo,e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades mais altas mais que tantosmonumentos erguidos à verdade;e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,a esperança mais mínima - esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra faceque vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentesem si mesma abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.