UM PROTÓTIPO DO HOMEM MODERNO*A melhor poesia é sempre uma súmula cultural. A poesia de Drummond articula um protótipo do mundo moderno - o gauche. Aí está o sentimento de uma região, de um país e o sentimento do mundo. Aí o problema central é o tempo: o crescimento e o desgaste do personagem, e a obra que resta ao final. A obra como resíduo vital que permanece, uma construção entre ruínas. Como creator o poeta empreende a redução de sua época, reflete a realidade que vive, deglute o mundo que o deglute, ajunta aquilo que o tempo espalha. Os homens, diz Heráclito, "são tais que não ajuntam", "só aqueles que podem fazê-lo", complementa Heidegger, "dominam a palavra", "os poetas e os pensadores. Os demais cambaleiam apenas no círculo do próprio e da incompreensão".O poeta é aquele que "articula" os fragmentos e reintegra a essência na aparência.Orfeu, dividido, anda à procura / dessa unidade áurea que perdemos ["Canto Órfico", OC.288], mas Orfeu é sempre aquele que enfrenta a morte na procura de sua própria identidade. É sua missão descer aos infernos do tempo para reachar-se pelo amor. Não importa que seu corpo seja destruído pelas bacantes do tempo. Ele deixa seu canto, concreto e vivo testemunho de que deteve a corrente do tempo e transformou o que seria derrota numa vida que sobreexiste além da morte.*Affonso Romano de Sant´Anna. Drummond - O gauche no tempo. Rio de Janeiro, Editor, 1972 [p. 37]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.SÍNTESE CONSCIENTE E DIDÁTICA DA OBRA*Assim, a conclusão a que se pode chegar, ao situarmos Lição de coisas em relação aos livros precedentes, é que ele representa, estilística e tematicamente falando, uma síntese consciente e didática de toda a obra drummondiana, síntese que se enriquece de conotações novas na fase (ainda em processo) de Boitempo. Mais ainda, revela-nos a "lição" atual de um escritor que, preservando a sua integridade individual e a sua originalidade criadora, irmanou-se à arte do nosso prosaico tempo com o fito de descobrir, na vida e sobretudo nos homens, um resto de esperança e alguma poesia.*José Guilherme Merquior. Verso Universo em Drummond. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975 [pp. 243-244]. Apud op. citada, pp.XLVI-XLVII.RESÍDUO De tudo ficou um pouco.Do meu medo. Do teu asco.Dos gritos gagos, da rosaficou um pouco.Ficou um pouco de luzcaptada no chapéu.Nos olhos do rufiãode ternura ficou um pouco(muito pouco).Pouco ficou deste póde que teu branco sapatose cobriu. Ficaram poucasroupas, poucos véus rotospouco, pouco, muito pouco.Mas de tudo fica um pouco.Da ponte bombardeada,de duas folhas de grama,do maço- vazio - de cigarros, ficou um pouco.Pois de tudo fica um pouco.Fica um pouco de teu queixono queixo de tua filha.De teu áspero silêncioum pouco ficou, um pouconos muros zangados,nas folhas, mudas, que sobem.Ficou um pouco de tudono pires de porcelana,dragão partido, flor branca,ficou um poucode ruga na vossa testa,retrato.Se de tudo fica um poucomas por que não ficariaum pouco de mim? no tremque leva ao norte, no barco,nos anúncios de jornal,um pouco de mim em Londres,um pouco de mim algures?na consoante?no poço?Um pouco fica oscilandona embocadura dos riose os peixes não o evitam,um pouco: não está nos livros.De tudo fica um pouco.Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda,meio sal e meio álcool,salta esta perna de rã,este vidro de relógiopartido em mil esperanças,este pescoço de cisne,este segredo infantil...De tudo ficou um pouco:de mim; de ti; de Abelardo.Cabelo na minha manga,de tudo ficou um pouco;vento nas orelhas minhas,simplório arroto, gemidode víscera inconformada,e minúsculos artefatos:campânula, alvéolo, cápsulade revólver ... de aspirina.De tudo ficou um pouco.E de tudo fica um pouco.Oh abre os vidros de loçãoe abafao insuportável mau cheiro da memória.Mas de tudo, terrível, fica um pouco,e sob as ondas ritmadase sob as nuvens e os ventose sob as pontes e sob os túneise sob as labaredas e sob o sarcasmoe sob a gosma e sob o vômitoe sob o soluço, o cárcere, o esquecidoe sob os espetáculos e sob a morte de escarlatee sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantese sob tu mesmo e sob teus pés já durose sob os gonzos da família e da classe,fica sempre um pouco de tudo.Às vezes um botão. Às vezes um rato.Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp.125-127.IGUAL-DESIGUAL Eu desconfiava:Todas as histórias em quadrinhos são iguais.Todos os filmes norte-americanos são iguais.Todos os filmes de todos os países são iguais.Todos os best-sellers são iguais.Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.Todos os partidos políticossão iguaisTodas as mulheres que andam na moda são iguaisTodas as experiências de sexosão iguaisTodos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguaise todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.Todas as guerras do mundo são iguais.Todas as fomes são iguais.Todos os amores, iguais iguais iguais.Iguais todos os rompimentos.A morte é igualíssima.Todas as criações da natureza são iguais.Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.Não é igual a nada.Todo ser humano é um estranhoÍmpar.Idem, p. 760LETRA AMARGA PARA MODINHA Gosto de ti com desgosto.Quando contemplo teu rostonele vejo um rosto outrocom o qual maduras teu gosto.Por um mandamento impostosofro de ti em meu corpoquanto contemplo teu rosto.Quando contemplo teu rostoeste amor a contragostofermenta de ácido mostoe no meu rosto de couro,no meu cavername roucoum dó de mim, um a-gostoque punge, queima de agosto.Se te contemplo, em teu rostonão me contemplo a meu gostopois teu semblante está postonuma linha de sol-postoem que por dentro me morro.Morro de ver em teu rostoo fel de teu anti-rosto.Quando contemplo teu rostomeu gosto é puro desgosto.Idem, p. 992