Carlos Drummond de Andrade


24/10/2002 18:56

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UM PROTÓTIPO DO HOMEM MODERNO*

A melhor poesia é sempre uma súmula cultural. A poesia de Drummond articula um protótipo do mundo moderno - o gauche. Aí está o sentimento de uma região, de um país e o sentimento do mundo. Aí o problema central é o tempo: o crescimento e o desgaste do personagem, e a obra que resta ao final. A obra como resíduo vital que permanece, uma construção entre ruínas. Como creator o poeta empreende a redução de sua época, reflete a realidade que vive, deglute o mundo que o deglute, ajunta aquilo que o tempo espalha. Os homens, diz Heráclito, "são tais que não ajuntam", "só aqueles que podem fazê-lo", complementa Heidegger, "dominam a palavra", "os poetas e os pensadores. Os demais cambaleiam apenas no círculo do próprio e da incompreensão".

O poeta é aquele que "articula" os fragmentos e reintegra a essência na aparência.

Orfeu, dividido, anda à procura / dessa unidade áurea que perdemos ["Canto Órfico", OC.288], mas Orfeu é sempre aquele que enfrenta a morte na procura de sua própria identidade. É sua missão descer aos infernos do tempo para reachar-se pelo amor. Não importa que seu corpo seja destruído pelas bacantes do tempo. Ele deixa seu canto, concreto e vivo testemunho de que deteve a corrente do tempo e transformou o que seria derrota numa vida que sobreexiste além da morte.

*Affonso Romano de Sant´Anna. Drummond - O gauche no tempo. Rio de Janeiro, Editor, 1972 [p. 37]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.



SÍNTESE CONSCIENTE E DIDÁTICA DA OBRA*



Assim, a conclusão a que se pode chegar, ao situarmos Lição de coisas em relação aos livros precedentes, é que ele representa, estilística e tematicamente falando, uma síntese consciente e didática de toda a obra drummondiana, síntese que se enriquece de conotações novas na fase (ainda em processo) de Boitempo. Mais ainda, revela-nos a "lição" atual de um escritor que, preservando a sua integridade individual e a sua originalidade criadora, irmanou-se à arte do nosso prosaico tempo com o fito de descobrir, na vida e sobretudo nos homens, um resto de esperança e alguma poesia.



*José Guilherme Merquior. Verso Universo em Drummond. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975 [pp. 243-244]. Apud op. citada, pp.XLVI-XLVII.

RESÍDUO

De tudo ficou um pouco.

Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos, da rosa

ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz

captada no chapéu.

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco

(muito pouco).

Pouco ficou deste pó

de que teu branco sapato

se cobriu. Ficaram poucas

roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada,

de duas folhas de grama,

do maço

- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca,

ficou um pouco

de ruga na vossa testa,

retrato.

Se de tudo fica um pouco

mas por que não ficaria

um pouco de mim? no trem

que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?

na consoante?

no poço?

Um pouco fica oscilando

na embocadura dos rios

e os peixes não o evitam,

um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneira

pinga esta gota absurda,

meio sal e meio álcool,

salta esta perna de rã,

este vidro de relógio

partido em mil esperanças,

este pescoço de cisne,

este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:

de mim; de ti; de Abelardo.

Cabelo na minha manga,

de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas,

simplório arroto, gemido

de víscera inconformada,

e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsula

de revólver ... de aspirina.

De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos

e sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmo

e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob tu mesmo e sob teus pés já duros

e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp.125-127.

IGUAL-DESIGUAL

Eu desconfiava:

Todas as histórias em quadrinhos são iguais.

Todos os filmes norte-americanos são iguais.

Todos os filmes de todos os países são iguais.

Todos os best-sellers são iguais.

Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.

Todos os partidos políticos

são iguais

Todas as mulheres que andam na moda

são iguais

Todas as experiências de sexo

são iguais

Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais

e todos, todos

os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.

Todas as fomes são iguais.

Todos os amores, iguais iguais iguais.

Iguais todos os rompimentos.

A morte é igualíssima.

Todas as criações da natureza são iguais.

Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.

Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.

Não é igual a nada.

Todo ser humano é um estranho

Ímpar.

Idem, p. 760

LETRA AMARGA PARA MODINHA

Gosto de ti com desgosto.

Quando contemplo teu rosto

nele vejo um rosto outro

com o qual maduras teu gosto.

Por um mandamento imposto

sofro de ti em meu corpo

quanto contemplo teu rosto.

Quando contemplo teu rosto

este amor a contragosto

fermenta de ácido mosto

e no meu rosto de couro,

no meu cavername rouco

um dó de mim, um a-gosto

que punge, queima de agosto.

Se te contemplo, em teu rosto

não me contemplo a meu gosto

pois teu semblante está posto

numa linha de sol-posto

em que por dentro me morro.

Morro de ver em teu rosto

o fel de teu anti-rosto.

Quando contemplo teu rosto

meu gosto é puro desgosto.

Idem, p. 992

alesp