Shell não comparece à reunião sobre contaminação em Paulínia

Não foi possível fazer um embate técnico entre a empresa e os médicos que examinaram a população
05/09/2001 20:54

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DA REDAÇÃO

A empresa Shell não enviou representante à reunião da Comissão de Meio Ambiente realizada nesta quarta-feira, 5/9, na Assembléia Legislativa, com o objetivo de discutir a contaminação do solo e do aqüífero de Paulínia e seus reflexos sobre a saúde da população, principalmente do Recanto dos Pássaros. A comissão, presidida pelo deputado Rodolfo Costa e Silva (PSDB), pretendia fazer um embate técnico entre os representantes da empresa, que em 1994 se autodenunciou como responsável por contaminação na área, e os médicos do município e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Cláudia Guerreiro e Igor Vassilieff, professor aposentado do Instituto de Biociências da Unesp e, especificamente no Plano de Ação em Saúde da Prefeitura Municipal de Paulínia, referente à execução de exames laboratoriais em moradores residentes no bairro Recanto dos Pássaros com suspeita de contaminação por produtos derivados de DRIN, descartados pela Shell Brasil S/A, atua como assistente técnico contratado pela Prefeitura de Paulínia, ambos apresentaram relatório apontando a contaminação de 53% dos moradores, que têm um quadro de intoxicação crônica. A Shell não encaminhou ainda seu relatório à comissão.

Contestações. Durante a reunião, foram lidos folhetos, entrevistas e cartas de pessoas que contestam o relatório de Paulínia. Uma das correspondências foi encaminhada pela Shell, informando que a empresa não enviou representante por ter sido convidada muito tarde, informação contestada pelo presidente da comissão, que disse já ter promovido o adiamento da reunião, que seria na semana passada, à pedido da empresa. Outra carta lida foi enviada por Ana Maria Segal, coordenadora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, desautorizando o médico Flávio Zambroni, que tem se manifestado contra o relatório apresentado pelos médicos Cláudia e Igor, a falar em nome da Universidade, deixando claro que qualquer opinião emitida pelo médico é pessoal, fruto de um trabalho pessoal de consultoria feito para a Shell.

O médico Igor Vassilieff disse ficar admirado que colegas médicos, sem examinar ninguém, digam aos jornais e dêem pareceres afirmando que não há ninguém contaminado. Além de Zambroni, o médico Ângelo Trapé manifestou-se contra a possibilidade de os moradores estarem contaminados. O deputado Jorge Caruso (PMDB) leu correspondência anônima encaminhada ao seu gabinete com transcrição de entrevista em que o médico diz que a metodologia utilizada por Igor e Cláudia "tem furos". "Como podem dizer isso se 52% dos moradores estão com arsênico no organismo?", perguntou Vassilieff. Segundo o médico, ele e a médica sanitarista da prefeitura de Paulínia estão sendo acusados de fazer terrorismo junto à população. Os dois afirmaram que os casos apresentados pelos médicos Zambroni e Trapé não são, na sua grande maioria, de moradores do local, nem foram feitos da forma correta que, para eles, compreendem exames clínicos e complementares além do exame de sangue. "A população está correndo risco de vida. Estão doentes, e isto está caracterizado. Portanto, tinham de ter sido retirados de lá ontem", falou Igor Vassilieff, que explicou que os contaminantes entram no organismo e vão através do sangue para a gordura, fígado e cérebro. O médico apelou para que não se espere pela contaminação de 100% dos moradores para então se fazer a remoção.

Alguns moradores já se encontram em tratamento parcial, com atendimento feito por Vassilieff. "Se não achasse que há possibilidade de tratamento, não diria isso, não daria falsas esperanças", disse ele ressaltando, no entanto, que as pessoas têm de sair de lá, porque muitos estão piorando e continuam se contaminando.

Contaminação. A contaminação não se dá, de acordo com eles, apenas pelo consumo da água, de frutas e verduras colhidas na região, que já não vem sendo consumidas pela população há algum tempo. A Shell saberia da contaminação da população e não apenas da ambiental desde o início. Prova disso, para os representantes do município de Paulínia, é que a empresa, que se autodenunciou, passou a dar água para parte da população em 1996, serviço que foi ampliado gradualmente a todas as famílias de moradores.

O toxicologista Igor Vassilieff, que é médico aposentado do Centro de Assisência Toxicológica do Instituto de Biociência da Unesp, deixou claro que tomou conhecimento dos problemas em Paulínia através da própria Shell, que o chamou para atuar junto à promotoria pública. Segundo ele, ao perceber que a empresa não queria analisar a situação a fundo, avisou que "estava fora", tendo sido chamado depois de um mês pela Prefeitura para saber o que estava acontecendo no Recanto dos Pássaros.

A postura do médico foi elogiada pelo representante dos moradores, Vicente de Paula Souza, e pelo presidente da Comissão, deputado Rodolfo Costa e Silva: "É fácil achar quem defenda aquele que tem muito. Difícil é ter alguém, como o senhor, que tem o ônus de defender quem tem pouco ou nada". Parte desse ônus são as ameaças de processo que a Shell tem feito aos médicos Igor e Cláudia.

Relatório. A sanitarista lamentou a ausência do representante da Shell: "Pensei que hoje fôssemos sanar nossas dúvidas". Cláudia Guerreiro gostaria que a empresa apresentasse argumentos científicos para contestar o relatório, da qual ela é co-autora, e que tem sido acusado de fraco e sem embasamento. A médica disse que o relatório é auto-explicativo e deve ser lido com cuidado. Às acusações de que não foi feito um estudo epidemiológico, ela respondeu que não foi mesmo. "Esse é apenas o primeiro relatório, e ele é descritivo." Cláudia salientou que ela e Igor ainda não assinaram nenhum laudo. "A única coisa que assinamos e assinaremos várias vezes é o pedido de remoção da população. É vergonhoso se esperar por um relatório de saúde humana para que se faça a remoção." A médica destacou ainda dois pontos fundamentais: o primeiro é que não se vai encontrar macrodosagem, só microdosagem, já que não se trata de uma população de trabalhadores da fábrica, mas uma microdosagem numa população que está recebendo isso há anos "e os contaminantes não são excretados". O outro ponto, argumentou, é que DRINs não são encontrados na população em geral, só em população que esteja exposta.

Intoxicação crônica. A falta de realização de exames clínicos nos moradores por parte dos médicos que contestam o relatório foi tratada por Cláudia, que mostrou um exame de sangue "ótimo" (com a autorização prévia do paciente). "Mas os exames clínicos feitos nessa pessoa nos levam a um quadro de intoxicação crônica." A médica disse que o próximo passo será fazer uma biópsia da gordura ou do fígado do paciente. Segundo Igor, 60% dos contaminantes se alojam na gordura, 20% no fígado e 6% no cérebro dos contaminados.

"Que interesse eu teria de mentir?", desabafou Cláudia, lembrando que sua vida e seu registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) estão em jogo.

Igor também lamentou que seus colegas médicos que contestam o relatório não tenham feito exames clínicos até para que pudessem discutir nos mesmos termos, coisa que fez com a médica Cláudia.

Moradores, Cetesb e Shell. O representante dos moradores afirmou que a presença do médico Zambroni foi vetada por eles, devido ao currículo do médico que teria trabalhado para a Cutrale onde mandou pulverizar os trabalhadores. O médico também teria feito a defesa da empresa Souza Cruz, que teria sido investigada pelo alto índice de suicídio nas suas imediações. Vicente de Paula Souza disse ainda que Zambroni chegou a publicar artigos em 1984 falando sobre a contaminação por DRINS e clorados, "e agora dá entrevista para a Globo dizendo que a população tem de sair de lá, mas é por causa do pólo petroquímico". Souza perguntou ao representante da Companhia Estadual de Tratamento e Saneamento Ambiental (Cetesb) qual a posição da companhia, já que a Shell tem dito que só mandou analisar três contaminantes à pedido da Cetesb, e que a companhia está ao lado da empresa para provar que não há contaminação.

Luiz Eduardo Leão, representante da Cetesb, afirmou que constam dos autos do inquérito civil, aberto pela promotoria pública, que não foi indicado o número de contaminantes a serem analisados. Ele disse ainda que não é verdade que a Cetesb esteja do lado da Shell. "A Cetesb já aplicou penalidade à empresa pelo não cumprimento de determinações. "É bom que fique claro que a Cetesb não está do lado de empresa nenhuma, mas é a favor do cumprimento das determinações legais." Sobre a remoção dos moradores, Leão disse que está consignado no documento apresentado ao Ministério Público que a análise ambiental não indicava a necessidade de remoção. Ele aventou a possibilidade de novas avaliações serem feitas.

Paulínia. Para o presidente da Câmara de Paulínia, Emerson Santos, os médicos que não concordam com a avaliação de Igor e Cláudia esqueceram a ética da medicina e o que aprenderam na faculdade. Ele também questionou a posição da Unicamp em relação ao problema de Paulínia, já que o médico Zambroni trabalha lá. "É uma universidade pública, mantida com dinheiro público", afirmou Santos, que vai exigir uma manifestação da universidade contra o médico e a favor do pessoal da Unesp que está trabalhando no assunto, caso contrário vai colocar uma faixa na entrada da Unicamp acusando-a de estar do lado da Shell. Santos disse que uma CPI para tratar do problema evitaria a ausência da Shell, já que a empresa seria convocada e não convidada.

O secretário do Meio Ambiente de Paulínia, Washington Soares, promotor público, disse que a "Shell tem dinheiro para colocar seus profissionais onde quiser na hora que quiser". Sobre a alegação da empresa de não poder comparecer à reunião ele afirmou: "A Shell não é a empresa digna que quer fazer crer." O secretário relacionou vários problemas de saúde que vem sendo detectados na população. "Isso, infelizmente, nenhum relatório tira", concluiu.

Justiça. Para o representante da Ordem dos Advogados do Brasil, Luiz Carlos Navarrete, não há como escapar da realização de um novo exame, já que uma prova judicial, para ser aceita, precisa ser feita "sob o crivo do contraditório". O advogado disse que haverá uma audiência conciliatória para a qual estão convidados os representantes da Shell, da Cetesb, do sindicato dos trabalhadores, e os moradores, para discutir a validade dos exames. "A Shell confessou que promoveu uma determinada contaminação, mas não admite a contaminação dos moradores. Haverá uma discussão jurídica quer se queira ou não."

Próximos passos. Rodolfo Costa e Silva comunicou que enviará ofício ao ministro do Trabalho, porque está "absolutamente apavorado com a questão da morte prematura de trabalhadores da Shell". Outras providências que deverão ser tomadas pelo presidente da Comissão são a solicitação de audiências com o ministro da Saúde, José Serra, e com o governador Geraldo Alckmin para tratar do assunto. Na próxima quarta-feira, 12/9, ele deverá se encontrar com o ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, com o mesmo intuito.

Também participaram da reunião os deputados Wagner Lino e Donisete Braga, ambos do PT, e Luis Carlos Gondim (PV).

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