VITÓRIA DE PIRRO - OPINIÃO

Renato Simões*
23/02/2001 15:55

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É impressionante o esforço do governo Covas/Alckmin, até certo ponto bem-sucedido pela complacência de certos órgãos de comunicação, de transformar em vitória política a extraordinária crise do sistema penitenciário paulista que se expressou nas rebeliões desta última semana. Governador em exercício e secretários ocuparam todos os espaços possíveis na mídia para falar grosso sobre o enfrentamento rigoroso ao crime organizado no interior dos presídios que teria sido implementado neste episódio. Todo o Brasil se pôs a procurar alternativas tecnológicas para impedir o uso de celulares pelos presos, e assim caminha a humanidade mais tranqüila pela "firmeza e competência" do governo de São Paulo na área da segurança pública.

Nessa estratégia de recomposição de sua imagem perante a opinião pública, o governo passou de perplexo com a dimensão das rebeliões sincronizadas a firme e decidido na repressão ao PCC e outras facções criminosas organizadas nas penitenciárias. O mesmo governo que, durante mais de quatro anos tratou como folclore e ficção romanceada a existência do PCC, apesar de denúncias públicas e consistentes, agora supervaloriza a força e a capacidade de organização dessa corrente. Tudo o que não se sabe explicar, agora sabe-se a quem imputar: ao PCC, novo inimigo público número 1 que pode estar sempre à mão para justificar de rebeliões a resgates.

Enquanto a população discute quem seriam os líderes do PCC, a limitação técnica para celulares e o número de visitantes que seriam autorizados a entrarem semanalmente nos presídios, o governo Covas/Alckmin deixa de ser cobrado pela falência de suas políticas penitenciária e de segurança pública. Esse é o debate fundamental.

Ao longo destes dois governos tucanos (1995-2001), não há dúvida de que se agregou uma nova quantidade ao sistema penitenciário. Mais de 20 mil novas vagas foram criadas, mas apenas cerca de mil novas vagas em regime semi-aberto. Ao mesmo tempo, nenhuma nova qualidade foi agregada ao sistema. A ênfase no regime fechado contraria toda intenção de cumprir a Lei de Execuções Penais no que diz respeito à progressão de regime, a ressocialização do preso e a renovação da população penitenciária. Nenhum aporte significativo foi feito ao precário sistema de assistência judiciária à população prisional, já que a Defensoria Pública nunca foi criada em São Paulo e a Procuradoria Geral do Estado destina um efetivo ínfimo de procuradores para serviço nas penitenciárias. O mesmo pode-se afirmar em relação ao atendimento à saúde do preso e às oportunidades de trabalho e educação nos presídios. Por fim, a superlotação do sistema continua alta, por um erro de planejamento estratégico da abertura das novas vagas, criando-se a falsa expectativa de que seria possível esvaziar distritos policiais, fechar o complexo penitenciário do Carandiru, expandir vagas para mulheres presas e outros objetivos que não foram compatíveis com a execução dada ao programa.

O crescimento da influência das facções criminosas como o PCC, o CDL, o CRBC e a Seita Satânica, entre outras menos cotadas, experiências que sempre existiram no sistema penitenciário paulista com outras roupagens de época, está diretamente ligado a dois fatores que o governo Covas/Alckmin busca negligenciar: de um lado, a leniência dos órgãos de inteligência policial em tomar como objeto de estudo e investigação sérios a existência e o alastramento destes agrupamentos; e, de outro lado, a sedução das esperanças suscitadas na população prisional por esses grupos que vendem como mercadorias a proteção e a assistência que o Estado é incapaz de fornecer como direitos. Apesar de alertado há tempos, só agora o governo se dispõe a enfrentar os grupos do crime organizado presentes nos presídios, depois de lhes ter dado tempo e meios para alastrarem-se pelo sistema, amealhando apoiadores pela corrupção de agentes públicos e privados nele presentes e estabelecendo relações externas com quadrilhas igualmente organizadas. Sem uma investigação competente, corre-se o risco desse enfrentamento ser inócuo e ainda alimentar o mito do PCC e congêneres entre a população prisional.

Mas sem a mudança da política penitenciária, sem a agregação de uma qualidade nova capaz de regenerar minimamente esse sistema falido, estará mantido o caldo de cultura em que navegam as facções criminosas para auferir lucro e poder nos presídios e fora deles. Um programa mínimo e de curto/médio prazos para essa nova política penitenciária incorpora necessariamente a retomada do projeto de desativação do complexo composto pela Casa de Detenção, Penitenciária do Estado e unidades menores do Carandiru; a abertura de novas vagas no sistema em regime fechado, condicionada ao fechamento destas mesmas vagas em outras unidades deterioradas; a prioridade máxima para a abertura de vagas no sistema semi-aberto e para sanar a aflitiva situação dos presídios femininos; a ampliação dos programas de apoio ao trabalho dos presos e aos egressos do sistema penitenciário; a criação da Defensoria Pública prevista pela Constituição Estadual; a incorporação ao SUS - Sistema Único de Saúde das demandas por atendimento médico e do controle das condições sanitárias dos presídios; a reestruturação do sistema de Execuções Criminais do Judiciário paulista, tornando mais ágeis as decisões sobre a progressão de regime; a aplicação pelo Judiciário da legislação já existente sobre as penas alternativas à de prisão; e a definição de uma política de recursos humanos que valorize a carreira do agente penitenciário, assegurando-lhe as condições mínimas para o exercício digno de suas funções com segurança e assistência do Estado.

Sem o cumprimento, mesmo que parcial, de um programa desta magnitude, qualquer comemoração de "vitória do Estado sobre o crime" será mera vitória de Pirro, à espera das novas batalhas que, com certeza, virão.

*Renato Simões é deputado estadual (PT) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo.

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