Debate: projeto de lei institui cotas nas universidades federais

OPINIÃO - José Dílson de Carvalho*
18/05/2004 18:33

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A simplicidade com que alguns formuladores de política pública enxergam o mundo, por vezes, leva a situações inusitadas. A partir da discussão gerada em torno da questão da instituição do sistema de cotas nas universidades federais, podemos notar que em um ponto o consenso é unânime: a urgência de se democratizar o acesso à educação.

A questão é: de que forma?

Há algum tempo, entrar em uma universidade pública tinha um significado glorioso, era um prêmio merecido por um esforço incomum, para poucos privilegiados. A verdade é que os alunos de escolas públicas nunca foram preparados para competir igualmente nos exames vestibulares dessas universidades, mesmo quando se podia dizer que o ensino público era tão bom, senão melhor que o ensino particular. Salvo poucas exceções, é raro o aluno de escola pública que não é obrigado a pagar um cursinho para suprir a formação quase sempre insuficiente do ensino secundário. Isso é fácil de se observar mediante a rápida disseminação de cursinhos pré-vestibulares particulares.

Vale lembrar também que entre as poucas iniciativas de se compensar a "desvantagem" competitiva dos alunos de escola pública, destaca-se o caso do cursinho público, destinado a alunos carentes. Um exemplo é o curso promovido pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, o "Cursinho da Poli". Esse tipo de iniciativa revela-se um instrumento importante de inclusão, sem a necessidade da criação de "guetos", mas que nunca teve o respaldo do governo.

Resultado: para se conseguir uma vaga no Cursinho da Poli, é necessário enfrentar um vestibular tão acirrado quanto o de ingresso em uma universidade pública.

Hoje, o governo Lula, através do Ministério da Educação, propõe a reserva de 50% das vagas das universidades federais a alunos de escola pública, incluindo negros e índios, como forma de democratizar o ingresso às universidades federais. Como podemos ver, a intenção é nobre e necessária.

No entanto, para se buscar uma ação resolutiva quanto à questão da democratização do ensino falta a essa proposta uma discussão mais ampla; falta ouvir a experiência das pessoas que travam no dia-a-dia a luta pela sustentação do ensino nas diferentes esferas: reitores de universidades públicas, professores, representantes do ensino particular e principalmente, a opinião pública. Do contrário, ela não passará de mais um resultado fracassado de uma política pública para inclusão social cerceada no impacto da mídia ao invés do trabalho de base.

Em entrevista à Rádio CBN (dia 14 de maio), a professora Ana Lúcia Almeida Galau, reitora da Universidade Federal de Minas Gerais fez uma colocação bem lúcida a respeito do alcance que deve ter toda e qualquer ação que se proponha a tal objetivo, ou seja, tão importante quanto garantir o acesso desse aluno a uma instituição pública é garantir sua manutenção lá.

Sim, como a medida não é preventiva, ou seja, não mexe na estrutura do ensino público em termos de adequação para melhor preparação dos alunos, abrindo apenas um elemento "facilitador", e mesmo assim, falho, já que a demanda por vagas continuará sendo muito superior, será preciso criar mecanismos de assistência a esses alunos, já que mesmo ingressando na universidade pública, levarão consigo a deficiência da formação anterior.

Concluindo: cotas não vão sanar o déficit de formação acumulado pelo aluno. Tampouco garantirão a permanência do estudante pobre durante anos em cursos que não raro exigem dedicação integral. É como se o problema de consciência dos legisladores estivesse resolvido com a presença de alunos pobres na lista de aprovados do vestibular.

Caso prático é o da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que implantou um sistema de cotas para a admissão de candidatos que provieram de escola pública ou que se declararam negros/pardos. Não demorou muito para que a Uerj verificasse que, sem estrutura de apoio aos estudantes mais carentes, o sistema de cotas correria o risco de se tornar mais um factóide que alimenta os fenômenos de evasão escolar e deficiência de aprendizado.

Segundo a professora, o governo tem à sua disposição inúmeros instrumentos de viabilização da democratização do ensino, sem que seja preciso ferir o princípio constitucional da autonomia das instituições de ensino. Há tempos, as instituições federais de ensino têm verificado um aumento do número de alunos provenientes das escolas públicas graças a ações relativamente simples e viáveis como a expansão dos cursos noturnos, por exemplo. E ela vai ainda mais adiante, ao concluir que uma das formas de se promover realmente a inclusão dos alunos de escolas públicas, é através da expansão do ensino público.

É preciso também ouvir a opinião pública: enquête realizada por uma rádio de São Paulo mostrou que 42% dos entrevistados não concordam com a proposta do governo; apenas 19% apóia totalmente. O restante, 39%, está em dúvida e sugere modificações para melhoria do sistema público de ensino e nesse ponto, o consenso é unânime.

Uma política efetiva para o ingresso de jovens carentes nas boas universidades deve começar no ensino médio, com a melhoria de sua qualidade e a disseminação de cursos pré-vestibulares para essa faixa de renda. E vai além: ao jovem cuja família não tivesse condições de sustentá-lo durante o curso deveria ser garantido um subsídio mínimo, que poderia ser a contrapartida de um serviço acadêmico ou comunitário.

É preciso enfim agregar mais racionalidade ao debate sobre cotas antes de se tachar de racista qualquer crítica ao sistema. Do contrário, construindo a casa pelo telhado, com uma política de cotas mal ajambrada e retrógrada, corre-se o risco de liquidar de vez, o princípio do mérito, que, ao contrário, deveria sempre nortear a vida acadêmica, a exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos ou dos que buscam o desenvolvimento.

*José Dílson de Carvalho é médico, deputado estadual e pré-candidato à Prefeitura de Santo André pelo PDT.

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