OLHOS NOS OLHOS - OPINIÃO

Milton Flávio*
08/06/2001 13:00

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Prefeito de São Paulo, Jânio Quadros tinha uma maioria precária e fisiológica na Câmara Municipal. De tempos em tempos, perdia um aliado, mas logo conquistava outro, graças ao poder de persuasão que a caneta confere aos governantes e à gula insaciável daqueles que se dispõem a apoiar sempre o chefe de Executivo, seja ele quem for.

O fato é que, à época, a bancada governista tinha dezessete, no máximo dezoito votos, contra quinze, dezesseis da oposição. Quando alguém resolvia deixar de ser vidraça para brincar de estilingue, era só abrir o Diário Oficial do Município (DOM) no dia seguinte e conferir o festival de demissões e nomeações patrocinado pelo prefeito. Aliás, apesar de seus defeitos, que não eram poucos nem desconhecidos, não há como negar que ele conseguia a façanha de tornar o DOM um jornal interessante, polêmico, bem-humorado, disputado quase a tapas nas redações.

Como não era bobo - ele podia ser louco, mas bobo nunca foi -, além da caneta, tinha no decurso de prazo e no poder de veto outros dois poderosos aliados. O decurso de prazo, uma herança da ditadura militar, lhe permitia aprovar projetos de lei sem que fossem votados pelos vereadores. Para tanto, contava com a omissão dos governistas. Eles abandonavam o plenário e as sessões eram encerradas por falta de quórum. Depois de um tempo - quarenta dias, mais dez sessões consecutivas -, a matéria estava automaticamente aprovada.

Quando ocorria, por assim dizer, um acidente de percurso, ou melhor, quando era aprovado um projeto que não lhe interessava, Jânio Quadros se valia de sua última arma: o veto. Para derrubá-lo em plenário, era necessária a concordância de dois terços dos vereadores - um contingente com o qual a oposição nunca contou. Entre tragos e bilhetes, o ex-presidente da República governou por três anos a maior cidade do país. Naquele tempo, não restava à oposição nada além de exercer o seu inviolável direito de espernear.

Se tratava a oposição a pão, água e chicote, Jânio também dava a seus representantes uma chance extraordinária de ocupar espaços na mídia. Afinal, era raro o dia em que ele não apresentava propostas polêmicas, muitas delas com o único intuito de chamar a atenção. Ele pintava e bordava de um lado; os opositores pintavam e bordavam de outro. Para alegria dos jornalistas de política e de cidades.

Certa vez, Jânio Quadros convidou os líderes da oposição para uma conversa na Prefeitura. Queria discutir projetos para a cidade e buscar caminhos para melhorar o relacionamento entre os poderes. Havia motivos para duvidar de suas reais intenções. De qualquer forma, essa foi a versão que apresentou. Um de seus adversários mais ferrenhos recusou, de pronto, o convite. Inventou uma desculpa para a imprensa, mas contou aos colegas o motivo verdadeiro da recusa: "Aceitar esse convite é um suicídio político. O velho é muito vivo. É capaz de nos convencer de que ele é que está certo. E depois, o que faremos? Depois que se olha nos olhos, é mais difícil xingar."

Essa historinha, contada por um antigo repórter, me leva a fazer as seguintes reflexões: "Será que aquela senadora, mais arrogante que afirmativa, olhando nos olhos de seu interlocutor, seria capaz de lhe cobrar coerência e ética, após ter votado a favor de quem votou? E aquele deputado de oposição, sempre feroz na crítica às fusões de grandes empresas, seria capaz de manter sua retórica afiada diante de um repórter que também soubesse a favor de quem ele trabalhou por debaixo do pano? E a prefeita de São Paulo, então? Cobrar o quê de Pitta e Maluf, se ela, tanto quanto eles, joga na conta da Educação as despesas com professores aposentados, fazendo exatamente o que neles condenava?"

Às vezes, é melhor ficar quieto. Ou, então, não olhar nos olhos.

*Milton Flávio é deputado estadual pelo PSDB, vice-líder do governo na Assembléia Legislativa e coordenador da Frente Parlamentar do Cooperativismo Paulista.

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