A Semana de 22: moderna, mesmo aos 81 anos


13/02/2003 18:49

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Perdidos entre as páginas dos jornais de fevereiro de 1922, pequenos "reclames" anunciavam o Festival de Arte Moderna, abrihantado pela participação de Guiomar Novais e Heitor Villa-Lobos. Mas quem se dispôs a desembolsar os 186 mil réis que davam direito às três récitas levou um susto. Ao transpor os degraus de acesso ao Teatro Municipal, os cavalheiros de fraque e cartola, acompanhados de damas elegantemente vestidas, paravam estarrecidos.E não era para menos: convertido em museu improvisado, o suntuoso hall apresentava pinturas e esculturas que, com raras exceções, desdenhavam de todos os cânones artísticos ensinados nas melhores academias daqui e de além mar.

E pouco adiantava buscar coerência ou rima nos versos declamados no palco. Ali, uma enxurrada de desatinos literários feria sensibilidades refratárias a experimentalismos lingüísticos. Delírios poéticos sobre aeroplanos, sombrinhas e capas de chuva, sapos e guerra provocavam os espectadores, que revidaram numa bem orquestrada vaia regida pelos estudantes do alto das galerias.

Uma profusão de estudos, ensaios e hipóteses surgiu desde então para tentar explicar o fenômeno iniciado naquela Semana de 22. Considerada uma fronteira definitiva no panorama artístico e literário do país, a Semana de Arte Moderna e seus principais artífices, em especial Mário de Andrade, ocupam um lugar privilegiado na historiografia contemporânea. Assim , ao completar o movimento 81 anos, o Diário Oficial do Poder Legislativo presta sua homenagem aos vanguardistas, publicando algumas das obras (versos e pinturas) daqueles que, com raro talento e criatividade, colocaram o Brasil em pé de igualdade com o que de mais moderno acontecia na arte européia e de todo o mundo ocidental, criando e mantendo viva e pulsante uma nova maneira de expressão cultural da brasilidade.



ODE AO BURGUÊS

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!

que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o èxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!

"Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

Um colar... Conto e quinhentos!!!

Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burgês!...

(Mário de Andrade. Paulicéia Desvairada.1922)



PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO

A gramática apareceu depois de organizadas as

línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe

da existência da gramática, nem de línguas

organizadas. E como Dom Lirismo é

contrabandista...

Você perceberá com facilidade que si na minha

poesia a gramática às vezes é desprezada, graves

insultos não sofre neste prefácio

interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu

superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.

Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia

portuguesa é porque, não alterando o resultado,

dá-me uma ortografia.

Escrever arte moderna não significa jamais

para mim representar a vida atual no que tem

de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si

estas palavras freqüentam-me o livro

não é porque pense com

elas escrever moderno, mas

porque sendo este livro moderno, elas têm nele

sua razão de ser.

(Mário de Andrade - Prefácio Interessantíssimo - trechos)

alesp