Opinião - Escola de Devassos


18/07/2013 17:25 | Vitor Sapienza *

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Em que pese a pressão americana de não aceitar Santos Dumont como o inventor do avião, ninguém consegue negar o seu descontentamento quando, tempos depois, a invenção foi usada como arma de guerra, bombardeando cidades e matando pessoas. Muitos dizem que o Pai da Aviação morreu frustrado, diante desse absurdo.

Usei o argumento para fazer uma simples comparação, constatada em uma tarde dessas, em que cresce o número de turistas que visitam o Ibirapuera. Ali, como num cartão de visitas, o Monumento das Bandeiras ilustra a luta de homens que se embrenharam nas florestas, em busca de ouro, e que involuntariamente conseguiram expandir o território brasileiro. Não vamos, aqui, usar o exercício da imaginação e apontar erros praticados, nem a violência praticada contra os índios, nem os riscos a que estiveram expostos.

A comparação é simples: o autor da obra, Victor Brecheret, sentiria o mesmo sintoma de frustração de Santos Dumont, quando passasse ao lado de sua obra mais importante. Não bastasse o esdrúxulo apelido que o identifica, o monumento vai, aos poucos, se transformando em palanque, mirante, ou andaime: é comum ver dezenas de turistas andando sobre a obra, como se ali fosse uma passarela de estupidez.

O desrespeito para com a cultura é antigo, nesta cidade. Caetano Veloso foi muito feliz quando cantou Sampa, e falou "da força da grana que ergue e destrói coisas belas". Apesar da

profundidade do verso, creio que ele jamais imaginaria esse tipo de destruição, típico de uma escola de devassos, praticado por pessoas que não sabem o significado nem a importância da arte para a preservação da memória de um povo.

O conceito de cultura passa por religião, sistema político, música, folclore, arte, artesanato. A soma desses fatores ganha, também, algo implícito, e nem sempre citado: berço. Acho que é isso que está faltando, berço! Sei que muitos estarão fazendo a pergunta corriqueira sobre a ausência da Guarda Civil Metropolitana, criada para zelar pelo patrimônio da cidade. Não vamos responder à pergunta simplesmente porque preferimos fazer outros questionamentos.

Será necessária a presença de policiamento para que uma pessoa dotada do mínimo grau de inteligência perceba o absurdo que está praticando? O comportamento de pessoas ditas civilizadas depende da presença policial para direcionar as suas atitudes? Quaisquer que sejam as respostas, ela deixarão claras as falhas que se acumulam na nossa formação cultural. Somado a isso, perdeu-se o respeito aos pais, aos idosos, aos preceitos religiosos, à pátria. No contexto, desrespeitar a cultura, a memória, é apenas um apêndice.

A maior prova do desrespeito está no repetido roubo da espada de um soldado no monumento da Independência, no desaparecimento de placas de bronze e parte de nossas estátuas e também no mais rústico dos roubos, a tampa de bueiros nas ruas e avenidas. Como se vê, a diversidade é ampla, irrestrita, vergonhosa. Assim, Santos Dumont, Brecheret,

Pedro Américo, Caetano Veloso e tantos outros podem, perfeitamente, ocupar o mesmo palco, o palco dos indignados.

A eles acrescente-se a presença dos que vão aos poucos perdendo a esperança de que algo ainda pode ser feito. Sim, por que o processo de degradação é contínuo. Basta recordarmos, com tristeza, que durante o regime militar, o cronista Lourenço Diaféria foi preso, depois de cobrar uma homenagem a um bombeiro que, na tentativa de salvar uma

criança, foi morto por uma ariranha, num zoológico de Brasília. Naquele período de triste memória, ele usou a ironia para exigir que o militar fosse homenageado por um país que virava as costas para o seu povo, que retrucava urinando nos pés da estatua de seus heróis. Estamos sem heróis e mantida a degradação, ficaremos também sem as estátuas.

* Vitor Sapienza é deputado estadual (PPS), ex-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, economista e agente fiscal de rendas aposentado.

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