Opinião - O Mercado do Desespero e o Silêncio dos Não Inocentes


04/09/2015 18:00 | Carlos Bezerra Jr*

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É difícil mensurar se são mais chocantes os últimos ataques contra haitianos em São Paulo ou se é a cumplicidade silenciosa que uma sociedade de filhos de imigrantes desenvolveu.

Em parte, justiça seja feita. Houve farta cobertura da imprensa. Veículos, das mais diversas matizes ideológicas, publicaram a notícia, os relatos das testemunhas e as vozes das vítimas; cobraram autoridades, reportaram os resultados das investigações. Mas isso não causou reação social.

Os protestos pingados aqui e acolá nas redes sociais são uma reação tímida e morna diante do fato de seis cidadãos terem sido baleados em pleno centro da maior cidade do Brasil, três deles na porta de uma igreja. É como se por serem haitianos, fugindo da impossibilidade de uma vida digna em seu país natal, a indignação não batesse à porta das pessoas. Aqui está melhor do que lá, ponto final.

Este mês vi pela primeira vez na vida, uma suástica do meu tamanho. Estava pintada num muro na cidade de Nova Odessa, a 124 km da capital paulista. Ao lado, uma inscrição: "Back to Haiti"- em inglês "voltem para o Haiti" -que expunha uma tentativa de intimidar haitianos, cujos idiomas oficiais são o francês e o crioulo. Havia também o "fora macacos", acompanhado da mesma suástica.

A situação é ainda mais bizarra, porque a cidade é um exemplo emblemático da imigração no Brasil. O assentamento foi feito em 1905 à imagem e semelhança da cidade ucraniana de Odessa, pela qual havia se encantado Carlos José de Arruda Botelho, então Secretário de Agricultura do estado de São Paulo. Primeiro foi habitada por judeus russos e depois por protestantes da Letônia. Hoje, pintam suástica no muro.

O absurdo parece não chocar. Aliás, a sequência de absurdos que envolve a migração de milhares de haitianos para o Brasil encontra no silêncio um aliado para empurrar com a barriga uma solução definitiva.

A história da humanidade é costurada por episódios em que as pessoas vencem as fronteiras do jeito que podem para fugir da xenofobia, do genocídio, da perseguição, da vida sem dignidade. A Bíblia, de capa à capa, é uma coleção desses relatos.

Abraão inaugura a narrativa do povo de Deus como um nômade migrante. Moisés guiou todo seu povo em busca da Terra Prometida, fugindo da escravidão no Egito. José foi vítima do tráfico de pessoas. Jesus nasceu num estábulo porque seus pais, migrantes sem teto, não foram acolhidos e tiveram de ficar junto com os animais.

É assustador que a "gambiarra" seja nossa única resposta para lidar com os mais recentes envolvidos num processo que a humanidade conhece de cor há milênios. Em janeiro de 2012, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), criou, por meio da Resolução 97, o "visto humanitário", que só pode ser concedido a cidadãos do Haiti.

Ao aumentar o período de vigência da resolução e revogar o limite de emissão de 1200 vistos ao ano, o próprio CNIg corrigiu problemas gerados por tornar definitivo o provisório. A vida encarregou-se de contornar outro: as dificuldades em obter o visto na Embaixada brasileira em Porto Príncipe. A partir desse obstáculo, foi inaugurado no Haiti um mercado ilegal lucrativo.

Segundo a Polícia Federal, 35 mil haitianos chegaram ao Brasil entre 2010 e setembro de 2014. Segundo o governo do Acre, somente pela fronteira do Estado, foram 39 mil até maio deste ano. Denominador comum: quase todos indocumentados.

A dificuldade em obter a documentação para fazer uma viagem legalizada criou um mercado de coiotes, que cobram de US$ 2 mil a US$ 5 mil por viagem. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) estima que essas operações já tenham gerado US$ 60 milhões.

As rotas utilizadas foram mapeadas. O Haiti é uma ilha, ou seja, para deixar o país, os imigrantes saem de barco ou avião para Panamá ou Equador e vão por terra até o Peru, chegando ao Brasil pelo Acre ou Amazonas.

Em solo brasileiro, o cidadão haitiano vai para um abrigo improvisado pelo governo local e tenta arrumar um emprego. Há vídeos de pessoas sendo escolhidas para vagas de trabalho no Acre pela medida do diâmetro da canela como se fossem gado.

Quando a situação se torna insustentável, encontra-se a "solução" de enfiar essas pessoas num ônibus como se fossem objetos e para depois desembarcá-las em outro lugar, onde elas terão que se virar. Milhares chegaram assim do Acre a São Paulo e ficam à mercê das soluções locais e emergenciais.

O fato de todos esses dados já terem sido coletados, consolidados e apresentados oficialmente na audiência que convoquei na Assembleia Legislativa de São Paulo em junho passado é a demonstração mais cabal da inércia no enfrentamento do problema. O mais difícil de entender, no entanto, é a política atabalhoada de acolhimento.

Não bastasse todo o imbróglio burocrático, ainda surgem os grupos xenófobos e outros criminosos que tentam escravizar esses imigrantes. A apatia diante desse teatro do absurdo faz com que nenhuma medida seja tomada. Até agora, não foi construída uma única solução definitiva para integrar essas pessoas na sociedade. Aliás, não se tem notícia de um coiote preso nessas rotas conhecidas.

Precisamos urgentemente de uma política nacional e transparente, mas sequer discutimos o tema abertamente com a população ainda. Vamos integrar os haitianos? Quantos virão? Como chegarão? Qual será o protocolo de acolhimento e integração? Quais serão as medidas adotadas para aqueles que tiveram que deixar suas famílias para trás? Quais as especializações profissionais dessas pessoas que estão chegando? Em que elas podem contribuir com a nossa sociedade? Quais os setores da sociedade que se dispõem a ajudar?

As únicas respostas possíveis para essas perguntas são ações efetivas. As palavras bonitas, as boas intenções, a demagogia e as bravatas podem até ter debelado crises com a imprensa, mas fazem com que saiam perdendo os imigrantes haitianos, suas famílias, a nossa sociedade, ou seja, todos nós.

Até agora, os que realmente estão ganhando são os que exploram a tragédia e a miséria, os que vivem de navegar ilegalmente o mar de burocracia que o Brasil criou para trazer à nossa fronteira, em viagens arriscadas, pessoas que precisam de um visto para tentar reconstruir a vida.

Não fomos capazes até agora de criar uma solução para quem precisa, mas estamos alimentando diariamente o mercado do desespero.

*Carlos Bezerra Jr, médico, deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo

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