Vítimas de estupro depõem na CPI que apura violações de direitos humanos em universidades

Estudante da FMUSP acusa instituição de omissão por não ter aberto sindicância
08/01/2015 19:47 | Da Redação Foto: Vera Massaro

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Adriano Diogo ouve depoimento <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-01-2015/fg166893.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

A CPI que investiga as violações dos direitos humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das universidades paulistas, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT) ouviu, na tarde desta quinta-feira, 8/1, o depoimento de vítimas de estupro, ocorridos nos anos de 2004 e 2011 em festas promovidas pela Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina da USP. Nos casos ouvidos, o sonho de entrar nessa faculdade acabou se transformando em pesadelo.

Os depoimentos foram dados a uma audiência restrita no auditório Teotônio Vilela, em que se pediu sigilo dos nomes de depoentes e acusados a fim de não prejudicar posterior ação do Ministério Público, órgão para o qual serão enviadas cópias do relatório da CPI.

A primeira depoente expôs a situação vivenciada desde os primeiros dias na faculdade até os fatos que quase a levaram a desistir de se formar em medicina. Ela lembrou o quanto os calouros eram incentivados a treinar na Atlética. "Os veteranos dessa associação interrompiam aulas e levavam os alunos em ônibus, independente de ser atleta ou não. Havia grande incentivo para os treinos, mesmo por parte dos professores da FMUSP. Como ela não participava de nada disso, começou a ser excluída da turma. Não tinha amigos, não pertencia a grupo algum, o que dificultava seu desempenho na faculdade, porque os alunos que pertenciam a algum grupo estudavam por um caderno oficial, cujo conteúdo era copiado por todos. Nesse material havia dicas de questões que poderiam cair nas provas, mas tudo ficava restrito aos grupos. E ela não estava em nenhum.

Ao término do primeiro ano, ela apresentava quadro de depressão e recorreu a terapia. Melhorou e resolveu mudar de vida. Foi morar numa república de estudantes. Mas a depressão voltou. "Tinha medo de não conseguir terminar a faculdade", justificou.

Violência sexual

Quando cursava o terceiro ano, como a depressão persistia, consultou-se com um psiquiatra que lhe receitou o medicamento Sertralina (antidepressivo), cujas doses foram aumentando até chegar a 300 mg. Tomava esse medicamento associado a um para insônia.

No quarto ano começou a "ficar com alguns meninos, só por ficar, tanto que às vezes, nem me lembrava. Isso me envergonhava, mas a coisa foi se tornado natural". Foi nesse contexto que ocorreram duas situações de violência sexual contra a estudante: na primeira vez, após uma bebedeira num bar, seu grupo, formado por seis meninas e dez meninos, resolveu sair para uma balada. A estudante foi no carro com os meninos e, a dado momento, o rapaz com o qual costumava "ficar", abriu o zíper da calça e puxou sua cabeça para que fizesse sexo oral; na segunda vez, ela se encontrava no quarto de uma amiga quando o mesmo rapaz tentou convencê-la a fazer sexo com ele e com o namorado da amiga. Ante as negativas, o rapaz foi embora, mas a estudante permaneceu na casa. Ao acordar, estava nua, com uma camisinha presa no ânus. Confusa, sem saber o que estava acontecendo, procurou o namorado da amiga para ouvir sua explicação, mas o rapaz apenas dizia "tá bom, tá bom". "Não fiz boletim de ocorrência, porque achava que só ia me expor. Senti muita humilhação".

Ela guardou segredo dos fatos relatados à CPI até 2013, quando resolveu contar ao marido, pois "acordava chorando". Segundo ela, quando soube pela mídia das audiências públicas da Comissão de Direitos Humanos, onde alunos da FMUSP relataram violências sofridas pelos veteranos da Atlética, sentiu alívio. "Soube que o que aconteceu não foi só comigo; é verdadeiro".

Os relatos se repetem

"Fico impressionada ao ouvir os relatos, as histórias se repetem", destacou a segunda depoente da CPI sobre os dois casos de violência pelas quais passou.

"Na semana de recepção, um dos diretores da Atlética, conhecido por assediar sistematicamente as calouras, sob o pretexto de me acompanhar para um happy hour, me puxou para um depósito de materiais e tentou me estuprar, baixando minhas calças". Depois desse ocorrido, o veterano passou a espalhar o caso como se tivesse sido um sexo consensual. A estudante relatou que essas situações "misóginas, machistas e perversas são recorrentes".

Ela contou que os veteranos costumam chamar as calouras de putas e numa repetição sistemática, assediam as meninas como se fossem os donos delas.

A depoente ainda sofreu um segundo caso de violência em 2011, na festa dos Carecas, no Bosque da Cidade Universitária. Lembra-se de ter tomado duas tequilas na barraca do Judô e depois acordar no hospital, junto com os diretores da Atlética. Havia a suspeitava de que a estudante havia sofrido abuso sexual e a levaram a um infectologista para tomar um retroviral. Soube, depois, que havia sido carregada até o hospital, após terem encontrado a estudante desacordada, com um funcionário da USP em cima dela.

Ela apelou a um dos diretores para que fosse sua testemunha numa denúncia que fez à Delegacia de Defesa da Mulher e depois ao Ministério Público. A resposta foi negativa, sob a alegação de que não podiam ter certeza do estupro porque a estudante estava muito embriagada e a relação poderia ter sido consensual. O caso da estudante tornou-se conhecido na FMUSP como "a estudante que transou com um segurança", e ela virou alvo de preconceito e jacota.

A estudante disse que hoje tem certeza de que foi estuprada e que houve omissão por parte da instituição, pois, mesmo sabendo dos fatos, a direção não abriu sindicância. Retiraram, na época, os chamados cafofos (depósitos que serviam para estocar material e bebidas para as festas), "só que no outro ano, os cafofos voltaram".

Segundo ela, a DDM demorou três anos para indiciar um médico, ex-PM, envolvido em outros cinco casos de estupro. Esse mesmo veterano conseguiu colar grau e possui CRM.

"Hoje não tenho medo algum", afirmou. A estudante denunciou os casos de violência ao Ministério Público no meio do ano passado. Disse procurar justiça e reparação e se sentir mais protegida agora. "Tenho uma rede de apoio institucional. Sozinha não teria conseguido".

A terceira depoente fez seu relato à CPI sem a presença da imprensa por temer represálias. Todos os depoimentos serão enviados ao Ministério Público.

alesp