A ÉTICA E A CRISE INSTITUCIONAL - OPINIÃO

Walter Feldman*
28/06/2001 16:50

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"Um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que os conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade"(Spinoza, Tratado Político)

Talvez cause surpresa a muitos, mas as raízes mais profundas da Ética residem também em um momento de crise moral e política. A aparição de Sócrates na filosofia grega, pela primeira vez trazendo à tona a discussão sobre os princípios da Ética, não se deu em um momento de auge, mas de decadência da sociedade grega, tanto que apenas duas gerações - representadas por Platão e Aristóteles - o separam do fim da democracia grega com a conquista macedônica.

Por que a Ética se torna necessária aos gregos neste seu "canto do cisne", quando durante todo o seu apogeu jamais os olhos filosóficos se voltaram para o homem?

A resposta é simples, não era necessário, não havia distinção entre o que se devia fazer e o que era feito, não havia um descolamento entre a moral e a ação cotidiana, tão imbuídos estavam os gregos em produzir um sistema no qual a felicidade fosse obtida.

E, paradoxalmente, são a democracia e o desenvolvimento econômico que subvertem esta unidade, são eles que, ao substituir um filosófico governo da razão pela decisão emocionada das massas e acrescentando o poder econômico ao político, desunem estes laços e obrigam as reflexões sobre a moral e o estabelecimento de princípios éticos.

A primeira visão desse descolamento é a análise pessimista dos sofistas, a constatação de que os altos valores morais tornaram-se hipócritas, que as qualidades do espírito foram substituídas pelas quantidades materiais, que o governo tornou-se parte do butim dos mais fortes. É a este pessimismo que responde Sócrates - ao qual Atenas não dá ouvidos e por isto morre.

O filósofo percebe a necessidade de estabelecer padrões, de serem eles inculcados nas novas gerações e passarem a governar os destinos da cidade. Suas metas, ainda hoje não alcançadas, surgem contudo de uma crise bastante semelhante a esta que as instituições brasileiras atravessam neste momento.

Falar em ética na política tornou-se algo tão banal em tantos discursos que até mencionar a banalização já se tornou chavão. A grande falha nesta questão, contudo, é que, para trazer ética à política, não se tem pensado em um projeto objetivo. O conjunto das proposições sobre a questão tem se limitado, grosso modo, a duas medidas: votar em pessoas éticas e ampliar a transparência.

A primeira é por demais singela. Como se pode ter certeza que uma pessoa é ética, a não ser em poucos casos de pessoas provadas ao longo de uma trajetória política de anos e décadas? Como disse Raymond Aron, "pode-se prever a freqüência dos crimes e suicídios, mas não a sabedoria de uma autoridade eleita".

Evidentemente que não votar em picaretas consumados, cuja desonestidade é provada e comprovada, já é um grande passo, mas é uma visão por demais simplista do problema, além de não atender à necessidade de renovação periódica dos quadros.

Esta alternativa obriga os cidadãos a um constante processo de "tentativa-e-erro", cujos resultados muitas vezes são catastróficos, constrangendo a sociedade a anos de economia de guerra para reconstruir o que pode ser destruído em uma única dessas tentativas mal sucedidas, como a história recente do Estado e da cidade de São Paulo demonstra à exaustão.

Mas, além deste efeito colateral, esta compreensão da realidade traz outros problemas. Ela parte do princípio equivocado de que o problema se resume a colocar a pessoa certa no lugar certo. Na verdade, o problema é estrutural, não é apenas resultado de má escolha - embora uma boa escolha, como no caso do sempre governador Mário Covas, seja positiva. O problema não são as pessoas; é a estrutura das instituições que precisa ser mudada.

Uma estrutura política ideal seria aquela na qual estivesse sentado na cadeira da autoridade um gângster ou um santo e ainda assim estaria garantida certa estabilidade ao Estado. A construção disso, entretanto, não é possível sem que a sociedade, em especial os segmentos da sociedade civil organizada, tome parte ativa no processo decisório.

A crise institucional, cujo escândalo do Senado é apenas uma das facetas já visíveis, é em parte devida ao esgotamento do modelo de democracia representativa que temos. É necessário criar mecanismos eficientes que ampliem o controle social sobre os governantes, mas nenhuma instituição neste sentido poderá ser realmente eficiente sem a participação dos cidadãos.

O poeta e místico persa Farid Attar narra a longa jornada de um grupo de pássaros que atravessam terras inóspitas à procura do Simurg - pássaro enorme e poderoso - para coroá-lo seu rei. Ao final da jornada descobrem que o pássaro majestoso que procuram são eles próprios, fortalecidos e amadurecidos na difícil jornada.

O mesmo vale para cada cidadão. O bom governante que se espera não é nenhum salvador da pátria de elevados padrões éticos cuja ação e mérito pessoal irão renovar o país. É, antes de mais nada, o fruto da participação e pressão da sociedade sobre as instituições às quais foi delegada a autoridade sobre a coisa pública.

* Walter Feldman, 47, médico, é presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.

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