O Relógio da Sé e o Legislativo paulista


27/02/2004 19:42

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Nesta imagem de 1907 da antiga Catedral da Sé, pode-se ver o relógio instalado em 1842.<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/Relogio Se 1907-300.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Divisão de Acervo Histórico

A Constituição do Império do Brasil, reformada em 1834 - quando se criaram os Legislativos Provinciais -, determinou a subordinação das Câmaras Municipais às Assembléias Provinciais. Assim, pelo chamado "Ato Adicional" de 1834, competia às assembléias provinciais, entre outras atribuições, legislar sobre os casos e a forma por que podia ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial; sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das câmaras; sobre a fixação das despesas municipais e provinciais e os impostos para elas necessários; sobre a repartição da contribuição direta pelos municípios da província e sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais e das contas da sua receita e despesa; sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais e das contas da sua receita e despesa; sobre a criação, supressão e nomeação para os empregos municipais e provinciais e estabelecimento dos seus ordenados.

Este acúmulo de prerrogativas referentes aos municípios fazia com que as leis municipais, as chamadas "posturas", somente entrassem em vigor depois de aprovadas pela Assembléia. Do mesmo modo, os orçamentos de todos os municípios tinham de ser aprovados pelo Legislativo Provincial e, por isso, qualquer obra de maior monta também tinha de ser ali sancionada. Isto explica a razão pela qual há uma grande profusão de documentos referentes à história dos municípios na Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, que vale a pena ser consultada pelos pesquisadores e interessados no tema.

Além desse controle que tinha sobre a vida de todos os municípios, o fato de ser na Capital da Província fazia com que a Assembléia Legislativa Provincial também se ocupasse em atuar na melhoria das condições da Imperial Cidade de São Paulo, como sua própria Câmara Municipal fazia questão de salientar, em um ofício enviado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo em 4 de março de 1875: "Todas as províncias, mais ou menos, auxiliam as municipalidades de suas Capitais por motivos óbvios: é pelo estado de adiantamento, pelos melhoramentos que se observam na sede do governo provincial que se faz idéia do estado de prosperidade ou pobreza de uma província."

Reconstrução

Por vezes estas melhoras assumiam formas que podem hoje ser banais, mas que à sua época tinham relevância e tinham uma imagem positiva. Foi o caso do relógio da Catedral da Sé (não da atual, a terceira, mas da anterior).

Em 1588, os moradores reclamaram à sua Câmara Municipal a edificação de uma igreja matriz. Uma capela foi erguida e terminada em 1612, onde hoje localiza-se o prédio da Caixa Econômica Federal, na Praça da Sé.

Quando São Paulo se transformou em diocese, em 1745, teve de receber seu primeiro bispo, Dom Bernardo Rodrigues Nogueira, na antiga Igreja de São Pedro, em 8 de dezembro de 1746. Naquela época, a Sé, "arruinada e imprestável", fora demolida e uma segunda igreja foi edificada no mesmo lugar da primeira matriz. As obras foram iniciadas em 5 de abril de 1745 e a Sé foi reinstalada no templo reconstruído, mas inacabado, em junho de 1752. A matriz reconstruída tinha 34 metros da porta principal ao arco do cruzeiro, por 12 metros de largura, em taipa de pilão, com seis altares laterais mais o altar-mor, além da capela-mor também feita da mesma taipa. Reconstruída, a Sé resistiu por muito tempo.

Em 1913, definiu-se o terreno para a construção da atual catedral, em área mais extensa que a daquela antiga ermida, demolida em 1912., pois São Paulo havia sido elevada a sede de arquidiocese por decreto do papa Pio X e desejava uma catedral de grandes proporções. Em estilo gótico, projeto do arquiteto Maximiliano Hehl, sua construção foi iniciada em 1913 e terminada somente quatro décadas depois. Inaugurada em 1954, no marco zero de São Paulo, é a maior igreja do Estado, com 111 metros de comprimento, 46 de largura, torres com 92 metros de altura, cúpula de 30 metros e capacidade para 8 mil pessoas. Em sua construção, foram utilizadas cerca de 800 toneladas de mármores raros.

O relógio

Os arquivos do Legislativo Paulista conservam uma carta do bispo diocesano de São Paulo, Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, ao presidente da Província de São Paulo, Raphael Tobias de Aguiar, solicitando a instalação de um relógio na torre da Catedral da Sé. Aqui vale ressaltar um detalhe: além de ocupar o posto de bispo diocesano de São Paulo de 11 de novembro de 1827 até seu falecimento, em 17 de junho de 1842, Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade foi também deputado provincial paulista nas três primeiras legislaturas, de 1835 a 1841.

Nesta carta, datada de 8 de fevereiro de 1841, Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade justificava a solicitação como obra de grande necessidade para a Imperial Cidade de São Paulo, que vinha sendo tentada desde 1821, quando à frente da então capitania de São Paulo estava o capitão general João Carlos Augusto de Oyenhausen Gravenburg (Visconde e Marquês de Aracati), o último governador paulista antes da independência do Brasil. Escrita em dois enormes parágrafos, vale a pena transcrever a carta do bispo diocesano:

"Parecendo-me de suma necessidade para a Sé Catedral desta Cidade o colocar-se na torre da mesma um relógio grande, que marque as horas e quartos, no sino maior, do que resultará tão bem vantagem para toda a população da Cidade, pois que pela elevação da torre, e mais forte som de sino, facilmente se ouvirão as horas, em toda ela, tanto de dia como de noite, e poderá cada um regular melhor o seu tempo, tanto mais que haverá todo o cuidado em que o relógio ande certo, como a experiência tem mostrado há longos anos, como o relógio de parede, que tem sido sempre o regulador geral, por estar a cargo de um empregado responsável, e amovível, e ter tantos fiscais, quantos são os Empregados da Catedral, sujeitos a pontos e multas; tendo sido a dita necessidade já reconhecida pelos Governos Provinciais, tanto assim que algumas diligências se fizeram, e algumas quantias se despenderam para montar um no tempo do Capitão General João Carlos Augusto d'Oyenhausen, julgo do meu dever aproveitar a ocasião de achar-se V. Exa. à testa da Administração Provincial, para solicitar de V. Exa. mais uma prova da piedade e zelo religioso, de que tantas tem dado, instituindo-se V. Exa. o interceptor, perante a Assembléia Provincial, para que esta vote quantias necessárias para a compra, condução e colocação dum relógio que dê as horas e quartos, cuja importância no Rio de Janeiro se me afirma ser de dois contos de réis, e talvez se obtenha por menos, de maneira que com a condução e mais arranjos, talvez se não despenda mais de dois contos e quatrocentos mil réis.

V. Exa. me escusará a importunação, atendendo a que minha requisição tende em benefício comum a toda a Cidade, e do qual gozam muitas Catedrais menos importantes do que a desta Cidade."

Três dias depois, o Presidente da Província enviou o documento à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo e neste mesmo dia o pedido foi encaminhado à Comissão de Fazenda para que desse seu parecer. Esta, por meio de emendas ao Orçamento, mostrou-se favorável ao pleito de Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade e concedeu os recursos para o relógio da Catedral da Sé.

No ano seguinte, o relojoeiro Henrique Fox, que tinha seu comércio de relógios, jóias e instrumentos de música na Rua da Imperatriz (atual Rua Quinze de Novembro), construiu o relógio do torre da Catedral da Sé e foi seu zelador durante quarenta e nove anos, até 1891, quando faleceu. Durante todos estes anos, segundo um cronista da vida paulistana, ereto, envergando suas conhecidas suíças, dobrava a esquina da praça da Sé, pelo lado da rua Capitão Salomão, e entrava na Catedral para inspecionar sua obra. Esta metódica jornada fez com que o relógio da Sé nunca atrasasse.

acervo@al.sp.gov.br

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