Carlos Drummond de Andrade - Medida psicológica do poeta*


24/10/2002 16:03

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Carlos Drummond de Andrade, dum individualismo também exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dele, inaferrável, disfarçadadora. Daí uma riqueza de ritmos muito grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante porém. As suas sutilezas atingem, às vezes, a arte filigranada de Guilherme de Almeida. Assim, por exemplo, naquele caso curioso de "Fuga", em que, além da primeira quadra parecer toda em versos de nove sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:

E todo mundo anda - como eu - de luto.

Verso habilíssimo, que apesar das suas dez sílabas e possível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um octossílabo, pois que o parêntese reflexivo "como eu" funciona também como um, por assim dizer, parêntese rítmico - preservando a unidade métrica da quadra.

Tem mesmo em Carlos Drummond de Andrade um compromisso claro entre o verso livre e a metrificação. Os seus versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma tendência para socializar-se, como em Augusto Frederico Schmidt, ou para se generalizar mais, como em Manuel Bandeira. Salvo, talvez, o caso da "Cantiga de viúvo", o emprego da metrificação provém de movimentos ostensivamente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre ainda o "vou-me embora pra Pasárgada...") contra a sua inenarrável incapacidade para viver. É o que ele mesmo resume naquele dar de ombros com que termina a "Toada do amor":

Mariquita, dá cá o pito

No teu pito está o infinito.

A análise de Alguma poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade para melhor achar pelo livro o tímido que ele é. Para ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem a inteligência que possui. Então dava um desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem saber que o são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes! Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda a poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de explosões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes, às vezes os versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se interseccionam aos pinchos.

*Mário de Andrade. Aspectos da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Amér.-Edit., 1943 [pp. 48-49]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.

ETERNO

E como ficou chato ser moderno.

Agora serei eterno.

Eterno! Eterno!

O Padre Eterno,

a vida eterna,

o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m´effraie.)

- O que é eterno, Yayá Lindinha?

- Ingrato! é o amor que te tenho.



Eternalidade eternite eternaltivamente

eternuávamos

eterníssimo

A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana

se soube florir

é o mesmo recém-nascido

antes que lhe dêem nome

e lhe comuniquem o sentimento do efêmero

é o gesto do enlaçar e beijar

na visita do amor às almas

eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo

mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o [resgata

é minha mãe em mim que a estou pensando

de tanto que a perdi de não pensá-la

é o que se pensa em nós se estamos loucos

é tudo que passou, porque passou

é tudo que não passa, pois não houve

eternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras.

Eterno, mas até quando? é esse o marulho em nós de um mar profundo.

Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos.

É tentação e vertigem; e também a pirueta dos ébrios.

Eternos! Eternos, miseravelmente.

O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.

Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência

ou nem isso.

E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma [sombra

e que não fique o chão nem fique a sombra

mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no [caos

e entre oceanos de nada

gere um ritmo.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992. Pp. 256/257.

A SANTA

Sem nariz e fazia milagres.

Levávamos alimentos esmolas

deixávamos tudo na porta

mirávamos

petrificados.

Por que Deus é horrendo em seu amor?

Idem, p. 305.

ÚNICO

O único assunto é Deus

o único problema é Deus

o único enigma é Deus

o único possível é Deus

o único impossível é Deus

o único absurdo é Deus

o único culpado é Deus

e o resto é alucinação.

Idem, p. 404.

DEUS TRISTE

Deus é triste.

Domingo descobri que Deus é triste

pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incomparável.

Deus não está diante de Deus.

Está sempre em si mesmo e cobre tudo

tristinfinitamente.

A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.

Outra fonte não tem a tristeza do homem.

Idem, p. 405.



O EXCOMUNGADO

Minha mãe que é tão fraca, ela sabe porém

o poder que a palavra imprevista contém.

Hoje me excomungou porque fiz um mal-feito.

Não vou crescer feliz, agora não tem jeito.

Excomungado estou por decreto materno.

Pior que amaldiçoado - escreve no caderno.

Já não sei que fazer, busco dentro de mim.

Desmereço de todo o prato de pudim.

Sinto que atolei na mais negra peçonha.

Passei a ser um réu coberto de vergonha.

Mas no triste do quarto acende-se um luzeiro.

Copio e botarei sob o seu travesseiro

o já tradicional pedido de perdão:

"Minha mãe, me arrependo. Eu não faço mais não."

alesp