Carlos Drummond de Andrade, dum individualismo também exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dele, inaferrável, disfarçadadora. Daí uma riqueza de ritmos muito grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante porém. As suas sutilezas atingem, às vezes, a arte filigranada de Guilherme de Almeida. Assim, por exemplo, naquele caso curioso de "Fuga", em que, além da primeira quadra parecer toda em versos de nove sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:E todo mundo anda - como eu - de luto.Verso habilíssimo, que apesar das suas dez sílabas e possível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um octossílabo, pois que o parêntese reflexivo "como eu" funciona também como um, por assim dizer, parêntese rítmico - preservando a unidade métrica da quadra.Tem mesmo em Carlos Drummond de Andrade um compromisso claro entre o verso livre e a metrificação. Os seus versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma tendência para socializar-se, como em Augusto Frederico Schmidt, ou para se generalizar mais, como em Manuel Bandeira. Salvo, talvez, o caso da "Cantiga de viúvo", o emprego da metrificação provém de movimentos ostensivamente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre ainda o "vou-me embora pra Pasárgada...") contra a sua inenarrável incapacidade para viver. É o que ele mesmo resume naquele dar de ombros com que termina a "Toada do amor":Mariquita, dá cá o pitoNo teu pito está o infinito.A análise de Alguma poesia dá bem a medida psicológica do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drummond de Andrade para melhor achar pelo livro o tímido que ele é. Para ele se acomodar, carecia que não tivesse nem a sensibilidade nem a inteligência que possui. Então dava um desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem saber que o são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os felizes! Mas Carlos Drummond de Andrade, timidíssimo, é ao mesmo tempo inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda a poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de explosões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes, às vezes os versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inteligência, as quedas de timidez se interseccionam aos pinchos.*Mário de Andrade. Aspectos da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Amér.-Edit., 1943 [pp. 48-49]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.ETERNOE como ficou chato ser moderno.Agora serei eterno.Eterno! Eterno!O Padre Eterno,a vida eterna,o fogo eterno. (Le silence éternel de ces espaces infinis m´effraie.)- O que é eterno, Yayá Lindinha?- Ingrato! é o amor que te tenho.Eternalidade eternite eternaltivamente eternuávamos eterníssimoA cada instante se criam novas categorias do eterno.Eterna é a flor que se fanase soube floriré o mesmo recém-nascidoantes que lhe dêem nomee lhe comuniquem o sentimento do efêmeroé o gesto do enlaçar e beijarna visita do amor às almaseterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundomas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o [resgataé minha mãe em mim que a estou pensandode tanto que a perdi de não pensá-laé o que se pensa em nós se estamos loucosé tudo que passou, porque passoué tudo que não passa, pois não houveeternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras.Eterno, mas até quando? é esse o marulho em nós de um mar profundo.Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos.É tentação e vertigem; e também a pirueta dos ébrios.Eternos! Eternos, miseravelmente.O relógio no pulso é nosso confidente.Mas eu não quero ser senão eterno.Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essênciaou nem isso.E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma [sombrae que não fique o chão nem fique a sombramas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no [caose entre oceanos de nadagere um ritmo.Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992. Pp. 256/257.A SANTASem nariz e fazia milagres.Levávamos alimentos esmolasdeixávamos tudo na portamirávamospetrificados.Por que Deus é horrendo em seu amor?Idem, p. 305.ÚNICOO único assunto é Deuso único problema é Deuso único enigma é Deuso único possível é Deuso único impossível é Deuso único absurdo é Deuso único culpado é Deuse o resto é alucinação.Idem, p. 404.DEUS TRISTEDeus é triste.Domingo descobri que Deus é tristepela semana afora e além do tempo.A solidão de Deus é incomparável.Deus não está diante de Deus.Está sempre em si mesmo e cobre tudotristinfinitamente.A tristeza de Deus é como Deus: eterna.Deus criou triste.Outra fonte não tem a tristeza do homem.Idem, p. 405.O EXCOMUNGADOMinha mãe que é tão fraca, ela sabe porémo poder que a palavra imprevista contém.Hoje me excomungou porque fiz um mal-feito.Não vou crescer feliz, agora não tem jeito.Excomungado estou por decreto materno.Pior que amaldiçoado - escreve no caderno.Já não sei que fazer, busco dentro de mim.Desmereço de todo o prato de pudim.Sinto que atolei na mais negra peçonha.Passei a ser um réu coberto de vergonha.Mas no triste do quarto acende-se um luzeiro.Copio e botarei sob o seu travesseiroo já tradicional pedido de perdão:"Minha mãe, me arrependo. Eu não faço mais não."