DA REDAÇÃO No conjunto da obra de Carlos Drummond de Andrade, já o dissemos e vamos repeti-lo, predominam largamente as composições não rimadas. Claro enigma, Fazendeiro do ar (este, sobretudo) e A vida passada a limpo são os livros em que o poeta fez mais extenso uso delas, mas ainda no conjunto deles não se altera a predominância dos não rimados; já no último livro citado esse uso era menos extenso que nos dois outros e, em Lição de coisas, que veio depois, menos ainda. Some-se a tudo isto que muitos poemas rimados só o são parcialmente.Estamos notando estes fatos porque pretendemos insistir na afirmação de que a importância da rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade, e consequentemente a importância de seu estudo, não vem, de nenhum modo, de que seu uso seja extenso ou imoderado, mas do emprego seletivo desse elemento na composição dos poemas. Não se tendo deixado de comprometer com a utilização sistemática da rima, e mais do que isso praticando-a sempre com parcimônia e sem qualquer espécie de submissão aos seus rigores ou às suas fascinações, principalmente não se deixando conduzir pela inércia de seu uso, Carlos Drummond de Andrade é, entretanto, sem possível confrontação na poesia de expressão portuguesa, o poeta que mais partidos soube tirar ao emprego da rima, o que mais espertamente soube investir nela, extraindo-lhe em expressividade, insuspeitados e até insustentáveis proveitos. Nele, mais do que em nenhum outro, a rima está a serviço do poema e, como os demais fatores de expressividade, sob o claro domínio do poeta.*Hélcio Martins. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968 [pp. 79-80]. Apud Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992.TEUS OMBROS SUPORTAM O MUNDOOs Ombros Suportam o MundoChega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.Tempo de absoluta depuração.Tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.E as mãos tecem apenas o rude trabalho.E o coração está seco.Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.És todo certeza, já não sabes sofrer.E nada esperas de teus amigos.Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?Teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prosseguee nem todos se libertaram ainda.Alguns, achando bárbaro o espetáculo,prefeririam (os delicados) morrer.Chegou um tempo em que não adianta morrer.Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.A vida apenas, sem mistificação.Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992., pp. 67/68CANÇÃO AMIGAEu preparo uma cançãoem que minha mãe se reconheça,todas as mães se reconheçam,e que fale como dois olhos.Caminho por uma ruaque passa em muitos países.Se não me vêem, eu vejoe saúdo velhos amigos.Eu distribuo um segredocomo quem ama ou sorri.No jeito mais naturaldois carinhos se procuram.Minha vida, nossas vidasformam um só diamante.Aprendi novas palavrase tornei outras mais belas.Eu preparo uma cançãoque faça acordar os homense adormecer as crianças.Idem, p. 186AMARQue pode uma criatura senão,entre crianças, amar?amar e esquecer,amar e malmamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos virados, amar?Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotação universal, senãorodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia,o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?Amar solenemente as palmas do deserto,o que é entrega ou adoração expectante,e amar o inóspito, o áspero,um vaso sem flor, um chão de ferro,e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.Este o nosso destino: amor sem conta,distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,doação ilimitada a uma completa ingratidão,e na concha vazia do amor a procura medrosa,paciente, de mais e mais amor.Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossaamar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.Idem, pp. 214-215AMAR-AMAROPor que amou por que almouse sabiap r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o sternos ou despesperadosnesse museu do pardo indiferenteme diga: mas por quêamar sofrer talvez como se morrede varíola voluntária vágula evidente?ah PORQUE AMOUe se queimoutodo por dentro por fora nos cantos nos ecoslúgubres de você mes(o,a)irm(ã,o) retrato espéculo por que amou?se era paraou era porcomo se entretanto todaviatoda vida mas toda vidaé indagação do achado e aguda espostejaçãoda carne do conhecimento, ora vejapermita cavalheir(o,a)amig(o,a) me releveeste malestarcantarino escarninho piedosoeste querer consolar sem muita convicçãoo que é inconsolável de ofícioa morte é esconsolável consolatrix consoadíssimaa vida tambémtudo tambémmas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncarasIdem, pp 318-319