Em um trecho de 1984, o escritor George Orwell descreve uma conversa entre o protagonista da história, Winston, e o líder do partido encarregado de torturá-lo e dobrá-lo à sua vontade. O líder do partido pergunta ao preso se ele sabe por que o partido procura o poder. Intimidado, Winston tenta dar alguma resposta, mas é interrompido com uma declaração sem rodeios: - O partido procura o poder apenas pelo poder. Não estamos interessados no bem dos outros, estamos interessados somente no poder. Nem riqueza nem luxo ou felicidade, apenas poder, o poder puro. (...) Todos os outros, inclusive aqueles nos quais nos baseamos foram covardes ou hipócritas, eles fingiam, talvez até eles próprios acreditassem que tinham tomado o poder por motivos nobres e por um período limitado de tempo, prometendo um paraíso no qual os homens seriam felizes e iguais. Nós não somos como eles, nós sabemos que não se toma de assalto o poder com a intenção de largá-lo. Poder não é um meio é um fim". A raiz de toda esta crise política que há meses abala o país e a cada semana revela novas facetas, agravando-se e minando esperanças, não deve ser buscada somente na ganância, na ambição, na desonestidade. Mesmo as análises que colocam o projeto de uma "república sindicalista" bancada por esquemas de corrupção explícita ou implícita nem sempre levam em conta a questão essencial: o PT não tinha projeto de país nem projeto de poder, apenas projetos para chegar ao poder e manter-se nele. Assim, não parece exata a avaliação de que no meio do processo os meios tornaram-se mais importantes que os fins. Na verdade parece nítido que os fins já haviam sido esquecidos há tempos e que as ações desenvolvidas não tinham a desculpa de alguma finalidade, mas apenas se desejava o poder pelo poder. Tal como na novela de Orwell, nem mesmo estava havendo mais a preocupação de disfarçar estas intenções.Foi somente a precipitação da crise que fez renascer os discursos messiânicos tão fora da realidade objetiva que nem mesmo o público menos informado e mais carente aos quais eles se dirigiam têm "engolido". É um sério agravante desta situação o fato de que o PT sempre tentou dizer que tinha um projeto novo para o país, prometendo que todas as soluções eram fáceis e dependiam apenas da vontade. Esta foi, por sinal, a tônica da última campanha eleitoral, que agora revela-se uma farsa, uma montagem na qual os grupos de trabalho reunindo "cérebros" a serviço de Lula eram peças de campanha criadas pelo marqueteiro, como têm afirmado diversas pessoas que hoje se arrependem de ter participado da encenação. As pesadas responsabilidades de administrar um país, um Estado ou uma cidade não podem ser exercidas sem o diagnóstico adequado da situação, sem a reflexão buscando soluções para este diagnóstico e sem um parâmetro ético que estabeleça as estratégias para que o que é administrado fique colocado nos trilhos que deseja. A perspectiva de poder pelo poder não é só danosa pelas suas implicações éticas, é também ineficiente do ponto de vista administrativo porque a não existência de qualquer princípio superior ou meta regendo as decisões faz com que se ande em círculos como um cachorro que morde o rabo. É em grande parte em função desta ineficiência crônica das gestões na qual o projeto de poder está desvinculado de qualquer objetivo maior que o governo do PT jamais conseguiu ir além dos balões de ensaio e projetos mirabolantes que não conseguiam sair do papel senão para figurar em propagandas " algumas das quais custavam mais do que a aplicação do próprio projeto, o que é bem sintomático. Mas toda crise traz em si algumas cosias boas. A melhor que talvez tenha ocorrido com esta é a superação da era dos marqueteiros, na qual a imagem era tudo e o conteúdo nada. Alertas pelas dimensões do desastre, os cidadãos estão mais atentos às questões de fundo, à história efetiva dos candidatos, não à mitologia criada pelos publicitários, às realizações concretas, não aos projetos bonitinhos mas inviáveis. Em outras palavras, o passado concreto voltou a ter espaço em um mundo que antes era dominado pelas imagens fugidias do futuro construídas em laboratórios. Se esta situação se confirmar nas próximas eleições, com eleitores mais alertas e votando com a razão, não por impulso, todo este terremoto e os desastres dele decorrentes não terão sido em vão, mas apenas um passo no caminho da maturidade da nossa cultura política. É esta esperança que deve nos nortear neste momento.*Ricardo Tripoli, advogado, é líder da bancada do PSDB na Assembléia Legislativa. Foi presidente da Assembléia Legislativa, Secretário de Estado do Meio Ambiente e Presidente da Comissão de Justiça e Redação da Alesp.