O fim da era dos marqueteiros

Opinião
26/09/2005 19:11

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Ricardo Tripoli<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/03-2008/Ricardo Tripoli02.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Em um trecho de 1984, o escritor George Orwell descreve uma conversa entre o

protagonista da história, Winston, e o líder do partido encarregado de

torturá-lo e dobrá-lo à sua vontade. O líder do partido pergunta ao preso se

ele sabe por que o partido procura o poder. Intimidado, Winston tenta dar

alguma resposta, mas é interrompido com uma declaração sem rodeios:

- O partido procura o poder apenas pelo poder. Não estamos interessados no

bem dos outros, estamos interessados somente no poder. Nem riqueza nem luxo

ou felicidade, apenas poder, o poder puro. (...) Todos os outros, inclusive

aqueles nos quais nos baseamos foram covardes ou hipócritas, eles fingiam,

talvez até eles próprios acreditassem que tinham tomado o poder por motivos

nobres e por um período limitado de tempo, prometendo um paraíso no qual os

homens seriam felizes e iguais. Nós não somos como eles, nós sabemos que não

se toma de assalto o poder com a intenção de largá-lo. Poder não é um meio é

um fim".

A raiz de toda esta crise política que há meses abala o país e a cada semana

revela novas facetas, agravando-se e minando esperanças, não deve ser buscada

somente na ganância, na ambição, na desonestidade. Mesmo as análises que

colocam o projeto de uma "república sindicalista" bancada por esquemas de

corrupção explícita ou implícita nem sempre levam em conta a questão

essencial: o PT não tinha projeto de país nem projeto de poder, apenas

projetos para chegar ao poder e manter-se nele.

Assim, não parece exata a avaliação de que no meio do processo os meios

tornaram-se mais importantes que os fins. Na verdade parece nítido que os

fins já haviam sido esquecidos há tempos e que as ações desenvolvidas não

tinham a desculpa de alguma finalidade, mas apenas se desejava o poder pelo

poder. Tal como na novela de Orwell, nem mesmo estava havendo mais a

preocupação de disfarçar estas intenções.Foi somente a precipitação da crise

que fez renascer os discursos messiânicos tão fora da realidade objetiva que

nem mesmo o público menos informado e mais carente aos quais eles se dirigiam

têm "engolido".

É um sério agravante desta situação o fato de que o PT sempre tentou dizer

que tinha um projeto novo para o país, prometendo que todas as soluções eram

fáceis e dependiam apenas da vontade. Esta foi, por sinal, a tônica da última

campanha eleitoral, que agora revela-se uma farsa, uma montagem na qual os

grupos de trabalho reunindo "cérebros" a serviço de Lula eram

peças de campanha criadas pelo marqueteiro, como têm afirmado diversas

pessoas que hoje se arrependem de ter participado da encenação.

As pesadas responsabilidades de administrar um país, um Estado ou uma cidade

não podem ser exercidas sem o diagnóstico adequado da situação, sem a

reflexão buscando soluções para este diagnóstico e sem um parâmetro ético que

estabeleça as estratégias para que o que é administrado fique colocado nos

trilhos que deseja. A perspectiva de poder pelo poder não é só danosa pelas

suas implicações éticas, é também ineficiente do ponto de vista

administrativo porque a não existência de qualquer princípio superior ou meta

regendo as decisões faz com que se ande em círculos como um cachorro que

morde o rabo.

É em grande parte em função desta ineficiência crônica das gestões na qual o

projeto de poder está desvinculado de qualquer objetivo maior que o governo

do PT jamais conseguiu ir além dos balões de ensaio e projetos mirabolantes

que não conseguiam sair do papel senão para figurar em propagandas " algumas

das quais custavam mais do que a aplicação do próprio projeto, o que é bem

sintomático.

Mas toda crise traz em si algumas cosias boas. A melhor que talvez tenha

ocorrido com esta é a superação da era dos marqueteiros, na qual a imagem era

tudo e o conteúdo nada. Alertas pelas dimensões do desastre, os cidadãos estão

mais atentos às questões de fundo, à história efetiva dos candidatos, não à

mitologia criada pelos publicitários, às realizações concretas, não aos

projetos bonitinhos mas inviáveis. Em outras palavras, o passado concreto

voltou a ter espaço em um mundo que antes era dominado pelas imagens fugidias

do futuro construídas em laboratórios.

Se esta situação se confirmar nas próximas eleições, com eleitores mais

alertas e votando com a razão, não por impulso, todo este terremoto e os

desastres dele decorrentes não terão sido em vão, mas apenas um passo no

caminho da maturidade da nossa cultura política. É esta esperança que deve

nos nortear neste momento.

*Ricardo Tripoli, advogado, é líder da bancada do PSDB na Assembléia

Legislativa. Foi presidente da Assembléia Legislativa, Secretário de Estado

do Meio Ambiente e Presidente da Comissão de Justiça e Redação da Alesp.

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