Juscelino Kubitschek: 30 anos de saudades


21/08/2006 20:07

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Ex-presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira e Sarah Kubitschek<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/03-2008/jk-1.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Ex-presidente da República Juscelino Kubitschek <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/03-2008/JK2.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

O ex-presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira, desde que tivera cassado o seu mandato de senador pelo Estado de Goiás e seus direitos políticos suspensos por dez anos pelo Regime Militar, em junho de 1964, levava uma vida muito difícil. Fora obrigado, para a sua própria segurança, a deixar o Brasil em um auto-exílio, já que estava sendo intimidado por oficiais subalternos a responder a infindáveis inquéritos instaurados pela Comissão Geral de Investigações, para explicar sempre questões relativas a enriquecimento ilícito. Todos os seus bens estavam declarados no Imposto de Renda. O problema maior, no entanto, era a construção de Brasília, e diversas acusações pesavam contra os construtores. Juscelino fora o fundador da nova capital, mas para o Exército tinha sido o mentor, que teria beneficiado muita gente com verbas para as obras. Nada entretanto ficaria comprovado contra ele.

Naquele agosto de 1976, JK era um fazendeiro de Goiás, da cidade de Luziânia, a 56 quilômetros de Brasília. Já tinha plantado 5 mil pés de café e pretendia plantar mais 50 mil. Vivendo pacatamente em sua fazenda, às vezes fazia viagens entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Em 20 de agosto, uma sexta feira, tomou um avião para São Paulo. A bordo estavam o deputado Ulisses Guimarães e o senador Franco Montoro, ambos do MDB paulista.

O aparelho deveria pousar em Congonhas, mas em virtude do mau tempo acabou descendo em Campinas. Do aeroporto de Viracopos para a capital paulista, eles tomaram um táxi. Durante a viagem, JK falou que "se fazia necessária a normalização da ordem pública, e que esse era o desejo de todo o povo brasileiro". "Esse sentimento é cada vez mais amplo." Falou ainda de uma certa inquietação nos meios econômicos e bancários e se queixou do sumiço de seus arquivos, que haviam sido levados por órgãos de segurança do governo militar.

Em São Paulo, JK estava sendo esperado para um almoço com alguns amigos na Casa de Manchete, de propriedade de seu particular amigo Adolpho Bloch, que o aguardava com um saboroso tutu à mineira. O luxuoso casarão, localizado nas esquinas da avenida Europa com a rua Groenlândia, no bairro nobre do Jardim Europa, havia pertencido ao industrial Horácio Lafer, ex-ministro da Fazenda do segundo governo de Getúlio Vargas. À noite jantou em uma churrascaria com Bloch, tendo aceitado um convite para proferir uma palestra no Colégio I. L. Peretz, da comunidade judaica em São Paulo, no qual falaria sobre a criação do Estado de Israel.

O dia seguinte amanheceu nublado e frio. A temperatura era de 9 graus. Mesmo assim, em companhia do amigo Olavo Drummond " ex-deputado federal pelo PSD mineiro, antigo prefeito de Araxá, procurador da República em São Paulo e depois ministro do Tribunal de Contas da União ", percorreu várias livrarias no centro da cidade, tendo sido muito cumprimentado e abraçado por pessoas que o reconheceram.

Às 11h, acompanhou Adolpho Bloch, que voltava para o Rio de Janeiro, até o aeroporto de Congonhas. Retornou à Casa da Manchete, onde almoçou e tirou a sua sesta habitual. À tarde retocou seu curto discurso que faria à noite no Clube Nacional, localizado no bairro do Pacaembu. Ali, num jantar para 50 talheres, reuniam-se componentes da extinta Comissão da Bacia Paraná-Uruguai, criada quando Juscelino era governador de Minas Gerais.

Sóbrio, elegante, em seu terno e pulôver azuis-marinhos, camisa branca e gravata azulada, JK reafirmou sua obstinada crença no desenvolvimento com liberdade e foi aplaudido. Entre os presentes, estavam os ex-governadores paulistas Lucas Nogueira Garcez, Carvalho Pinto e Laudo Natel. Encerrou a noite no restaurante Paddock, no centro da cidade, em companhia de Olavo Drummond.

Na manhã de domingo, dia 22 de agosto, o ex-presidente acordou de bom humor, leu os jornais e recortou alguns artigos e reportagens. De lá ligou para a casa do deputado federal e secretário da Administração do Estado Adhemar de Barros Filho. A esposa do deputado, Maria Helena, informou que ele se encontrava em Brasília, mas convidou JK para almoçar com a família. Na residência, o ex-presidente se emocionou ao reencontrar seu afilhado, Adhemar de Barros Neto, de 14 anos.

JK informou a Drummond que iria voltar para Brasília de avião, mas decidiu na última hora ir para o Rio de automóvel. Ao término do almoço, um Alfa-Romeu da revista "Manchete" o levou até trevo do quilometro 2 da via Dutra. Ali o aguardava o motorista e secretário Geraldo Ribeiro, de 63 anos, que o acompanhava desde os tempos de prefeito de Belo Horizonte, na década de 40.

O automóvel dirigido por Geraldo era um Opala ano 1970, dourado metálico, com teto de vinil preto, placas do Rio de Janeiro, NW-9326. Juscelino se acomodou no branco traseiro, descalçou os sapatos e abriu um saquinho de biscoitos de polvilho. Partiram para o Rio.

A viagem seguiu sem novidades até chegarem à chamada "curva do açougue", na altura da cidade de fluminense Resende. Ali há duas curvas para a esquerda e, em seguida, um acentuado declive para a direita. Por erro de engenharia, a pista se inclina ligeiramente para a esquerda. Por esse motivo, os automóveis iam para o lado de dentro da pista e podiam capotar ou pegar a contramão.

Eram 17h55 quando o Opala foi atingido no pára-lama traseiro, no lado do motorista, por um ônibus da Viação Cometa que fazia o trajeto São Paulo"Rio de Janeiro. O carro, desgovernado, atravessou a pista a mais de 100 quilômetros por hora, colidindo violentamente com uma carreta de 12 rodas Scania-Vabis, da cidade de Orleans, Santa Catarina, placas ZR-0938, dirigida por Ladislau Borges, de 47 anos, que transportava 30 toneladas de gesso do Ceará para São Paulo.

Borges tentou evitar o choque, mas o Opala colidiu com a roda dianteira direita da carreta e foi arrastado por cerca de 40 metros até um capinzal, às margens da rodovia. O impacto frontal foi violento, destroçando os dois veículos, principalmente o automóvel. Dentro das ferragens jaziam dois corpos irreconhecíveis.

Os motoristas que cruzavam a Dutra no momento do acidente pararam no acostamento para ajudar no socorro das vítimas. O motorista do caminhão não sofreu nenhum ferimento grave, mas os ocupantes do carro só foram identificados pelos documentos encontrados em seus paletós. A tragédia seria ampliada quando a carteira de identidade nº 1.633.333, expedida pelo Instituto Felix Pacheco, do Rio de Janeiro, mostrou que um dos mortos era Juscelino Kubitschek de Oliveira, nascido na cidade de Diamantina, Minas Gerais, em 12 de setembro de 1902. No bolso encontraram ainda a carteira de um clube e uma passagem aérea entre Brasília e o Rio, datada de 20 de setembro, com horário marcado para as 18h. A descoberta do nome da vítima foi um choque para os motoristas, e muitos choraram copiosamente.

Um imenso congestionamento se formou em ambas as pistas da via Dutra, que voltaria lentamente à normalidade só após as 21h daquele domingo, quando os corpos foram removidos pelos bombeiros e patrulheiros rodoviários e levados para o necrotério da cidade de Resende. Às 20h, o delegado de polícia Valdir Guilherme havia anunciado os nomes dos mortos. Em seu apartamento no Rio, informada da tragédia, dona Sarah Kubitschek não queria acreditar, pois no dia 14 de agosto ela já havia recebido a mesma informação. Para Resende seguiu a secretária da família, Edna Andrade Couto, que providenciou o translado dos corpos para o Rio de Janeiro.

A notícia foi divulgada pela televisão em edição extraordinária, minutos depois do término do programa "Fantástico", da TV Globo, pegando toda a população brasileira de surpresa. Os corpos deram entrada no IML às 2h45 da segunda feira, onde 40 soldados da Polícia Militar mantinham a distância do prédio perto de 200 pessoas que ali esperavam. Pouco depois das 6 da manhã, os dois esquifes cobertos de flores chegavam ao prédio sede da revista "Manchete", na rua do Russel, onde seriam velados. No Rio, seria a maior homenagem a um político desde a morte de Getúlio Vargas em 1954.

Milhares de pessoas foram se despedir do ex-presidente, entre eles amigos e colaboradores, como Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, os marechais Teixeira Lott, Odylio Denis e Cordeiro de Farias, o ministro da Previdência Social, Nascimento Silva, o governador carioca almirante Floriano Faria Lima, o prefeito Marcos Tamoyo, o historiador Hélio Silva e os ex-governadores Carlos Lacerda, Chagas Freitas e Negrão de Lima.

Às 11h45 deu-se a saída do caixão de JK, mas a multidão não permitiu que ele fosse colocado no carro fúnebre. O caixão foi levado a pé até o aeroporto Santos Dumont, distante 2 quilômetros, que foi percorrido em 1 hora e 5 minutos. Durante o trajeto, se fizeram ouvir o "Hino Nacional" e a música "Peixe Vivo", marca registrada de Juscelino durante toda sua carreira política. No aeroporto, embarcaram em três pequenos táxis aéreos até o aeroporto internacional do Galeão, de onde um avião Boeing 727-100, da Varig, os transportou com destino a Brasília. Antes de embarcar, dona Sarah ergueu o braço em agradecimento e disse: "Muito obrigada por tudo isso. Muito obrigada por essa manifestação."

A aeronave pousou no aeroporto de Brasília (que hoje leva nome de presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira) às 16h, onde milhares de pessoas o aguardavam. Funcionários das companhias e do próprio aeroporto esperavam na pista. Colocado o caixão em uma Kombi, foi acompanhado por centenas de motoqueiros moradores de Brasília, que levavam uma faixa negra com a inscrição "Ao querido Juscelino nossa eterna gratidão".

As centenas de carros que seguiam no cortejo tinham em suas antenas fitas negras. Durante 15 horas, milhares de brasilienses foram dar o último adeus ao fundador da capital federal. Políticos de todos os partidos foram prestar suas despedidas.

O presidente Ernesto Geisel só foi informado da morte de Juscelino na segunda- feira cedo, através da sinopse da Agência Nacional, que era encaminhada diariamente às 7h da manhã. Nenhum auxiliar quis acordá-lo para lhe dar a notícia na noite anterior, já que ele dormia cedo. Geisel chegou ao Palácio do Planalto visivelmente contrariado por não ter sido informado com antecedência e, ao descer do automóvel presidencial, gesticulava em demasia com os ministros que o esperavam na rampa da sede no governo, demonstrando irritação.

Reunido em seu gabinete, o presidente recebeu os ministros da Casa, mais o do Exército e o da Justiça, e decidiu decretar luto nacional por três dias. Seria a primeira vez na história que um cassado receberia essa homenagem. Na catedral, o arcebispo de Brasília, Dom José Newton, às 17h, pregava: "O Brasil perdeu um homem que não guardava ódio nem rancores". A multidão, do lado de fora e depois dentro, gritava "Juscelino! Juscelino!". Só meia hora depois, quando dona Sarah se viu obrigada a ir até o altar e ao microfone pediu calma a todos ("A melhor maneira que a família tem de agradecer ao povo", disse, "é pedindo que ele carregue o caixão até o cemitério."), a multidão silenciou e a missa de corpo presente pôde ser realizada.

Uma multidão calculada em 80 mil pessoas se concentrava em torno da catedral. Na saída do cortejo duas viaturas do Corpo de Bombeiros estavam prontas para transportar o esquife, mas o povo queria prestar sua última homenagem e levá-lo a pé até o Campo da Esperança. No trajeto, os bombeiros conseguiram colocar o caixão na viatura, mas a população, em meio ao gigantesco congestionamento que se formou em Brasília, conseguiu recuperar o caixão. E, durante o trajeto, mais uma vez isso ocorreu. Depois de quatro horas, chegaram ao cemitério.

JK foi a 35.666ª pessoa a ser sepultada naquele campo-santo. Seu túmulo era o de n° 36, perto do de seu amigo Bernardo Sayão, engenheiro e vice-governador de Goiás, responsável pela construção da Belém"Brasília. Sayão fora a primeira pessoa enterrada no cemitério, em 1959, quando uma árvore o vitimou na abertura da estrada. Depois de permanecer na capela do cemitério, o corpo de JK, ao som do "Peixe Vivo" e de cânticos, chegou às 23h10 ao túmulo. Após vários oradores fazerem uso da palavra, entre eles o deputado federal Ulisses Guimarães, o corpo de JK baixou à sepultura, às 23h35, ao som do toque de silêncio executado por um integrante da Polícia Militar do Distrito Federal.

Em homenagem ao presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, foi idealizado por dona Sarah e projetado por Oscar Niemeyer, em Brasília, o Memorial JK, inaugurado em 12 de setembro de 1981, com a presença do então presidente da República João Baptista Figueiredo, que deu o apoio necessário para a concretização dessa obra onde repousam os restos mortais do ex-presidente.

*Antônio Sérgio Ribeiro, funcionário da Secretaria Geral Parlamentar da Alesp, é advogado e pesquisador.

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