Jânio Quadros, uma carreira meteórica


26/08/2011 19:05

Compartilhar:

O último Ato : 25/08/1961 - Jânio passa em revista a tropa do BGP<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO12.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Magalhães Pinto e Castro Neves<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-MagalhaesPintoeCastroNeves.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> João Goulart<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-JoaoGoulart.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Jânio Quadros com militares assiste a solenidade do Dia do Soldado<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO09.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Leonel Brizola e Machado Lopes<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-BrizolacomGalMachadoLopes.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Presidente Jânio Quadros é cumprimentado pelo Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO13.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Jânio em embarque para a Europa<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-JanioembarqueparaEuropa.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Presidente da Câmara Federal deputado Ranieri Mazzilli, chefe da Casa Civil Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro, Ministro da Educação Brígido Tinoco<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO04.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Antes da crise Lacerda cumprimenta Jânio<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-AntesdacriseLacerdacumprimentaJanio.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Jânio Quadros cumprimenta Ministro da Guerra<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-JaniocomMindaGuerra.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>  <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/OLIVIAABREUSODRE1.JPG' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Presidente Jânio Quadros passa em revista a tropa do Batalhão da Guarda Presidencial<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO11.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> João Goulart e Tancredo Neves <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-JangoeTancredo.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Jango na China<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-JANGOchina.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Ministros Militares da Guerra: Marechal Odílio Denys, Aeronáuitca: Brigadeiro Gabriel Grun Moss, Marinha: Almirante Silvio Heck<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/JANIO05.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Ghe Guevara e Jânio Quadros<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-CheeJanio.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> João Goulart toma posse<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/08-2011/J-Goularttomaposse.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Naquela sexta-feira, 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros foi acordado, como todos os dias, às 5h45, pelo seu mordomo, João Hermínio da Silva, que o acompanhava desde os tempos de governador de São Paulo. Ele lhe entregou um exemplar do Correio Braziliense, e o presidente leu alguma coisa que o irritou. Amassou o jornal com raiva, atirando-o violentamente na cesta de papéis. Enquanto se barbeava, pediu quase aos gritos que telefonasse para o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, e para o Chefe da Casa Civil Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro. Jânio falou bravo com Horta, reclamando que não haviam tomado a menor providência. Depois falou com Quintanilha, também em tom áspero. Ao desligar o telefone, ordenou ao mordomo que mandasse encostar o carro urgentemente. Deixou o Palácio da Alvorada apressadamente e foi para o Palácio do Planalto, aonde chegou, como de costume, às 6h30, a bordo de um Chevrolet sedan, série Two-Ten, preto, ano 1957, automóvel que era utilizado por sua determinação no dia a dia desde que havia assumido o governo, dispensado a luxuosa limusine Cadillac Fleetwood 1958, adquirida na gestão do seu antecessor, Juscelino Kubistchek.

Após despachar rapidamente com o Chefe da Casa Militar, o general de brigada Pedro Geraldo de Almeida, conversou mais uma vez por telefone com Quintanilha Ribeiro.

O principal compromisso do presidente naquela manhã era a comemoração do Dia do Soldado, que seria realizado na Esplanada dos Ministérios, junto à sede do Ministério da Guerra. Jânio chegou ao local por volta das 8h em uma limusine Cadillac 1959, não menos luxuosa, pertencente ao Ministério das Relações Exteriores, mas comumente utilizada pela presidência da República em solenidades oficiais. Ao descer do veiculo foi recebido com honras militares pelo titular ministro da Guerra, marechal Odylio Denys, acompanhado pelos ministros da Marinha, almirante Silvio Heck, e da Aeronáutica, brigadeiro Gabriel Grün Moss. Passou em revista as tropas do Batalhão da Guarda Presidencial que estavam perfiladas, depois condecorou com a Ordem do Mérito Militar as bandeiras de vários regimentos de Infantaria e de Cavalaria do Exército brasileiro, e assistiu à solenidade de entrega de medalhas a diversas autoridades civis e militares, entre elas o seu chefe da Casa Civil, Quintanilha Ribeiro, o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, o arcebispo de Brasília, dom José Newton, e o prefeito de Brasília, deputado Paulo de Tarso Santos.

Depois do desfile do contingente militar e sobrevoo de aeronaves da Força Aérea Brasileira, encerrando o evento, o presidente, sorrindo, entrou no veículo oficial e retornou ao Palácio do Planalto.



A carreira



Jânio da Silva Quadros, nascido em Campo Grande, no então Estado do Mato Grosso, em 25 de janeiro de 1917, havia sido eleito presidente da República em 3 de outubro de 1960, com apenas 43 anos de idade, vencendo com o pleito com 5.636.623 votos, 48,27% dos votos válidos, contra os 3.846.825, do candidato do governo, marechal Henrique Teixeira Lott, que teve 32,93%. Em terceiro lugar ficou o prefeito de São Paulo e ex-governador Adhemar de Barros, com 2.195.709 votos, ou 19,56 % dos votos válidos. Com uma carreira meteórica, foi de vereador a presidente em apenas 12 anos de vida pública, entre 1948 e 1960. Foi também deputado estadual, prefeito da cidade de São Paulo, governador do Estado, e deputado federal pelo Paraná, quando não existia a obrigatoriedade do domícilio eleitoral.

Por sua peculiar fala e seus métodos nada convencionais como político e administrador público, conquistou a população, principalmente as classes mais baixas, que viam em sua figura um verdadeiro salvador. Com seu inquestionável carisma, galgou todos os postos que ambicionava e conquistou fama de vencedor: nos vários pleitos que disputou, derrotou os candidatos oficiais, que tinham atrás a máquina do governo.

No dia 31 de janeiro de 1961, Jânio tomou posse da presidência da República em Brasília, sendo o primeiro a assumir na nova capital do país, com mandato até 30 de janeiro de 1966. Durante seu curto governo, várias medidas, muitas polêmicas, foram tomadas, como a proibição de corridas de cavalos durante a semana. Também foram proibidos brigas de galo, jogos de cartas nas sedes de vários clubes e sociedades, participação de menores em programas de rádio e televisão e espetáculos de hipnotismo e letargia em clubes e auditórios. Foi proibido até o biquíni. Anos depois, perguntado sobre essa medida, respondeu visivelmente irritado que apenas tinha cumprido uma solicitação de milhares de donas de casa de São Paulo, através de um abaixo assinado que lhe fora encaminhado.



A viagem do vice



A relação entre o presidente Jânio Quadros e seu vice não eram boas, e eles praticamente só se avistavam nas cerimônias oficiais, mas João Goulart se viu surpeendido com o convite feito pelo chefe da nação para encabeçar uma delegação brasileira à República Popular da China. Jango recebeu a incumbência com desconfiança e, como presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tentou desvencilhar-se da missão de todas as formas, alegando inclusive que assuntos pessoais, negócios e interesses do partido não lhe permitiam ausentar-se do Brasil, mas Jânio insistiu no convite, respondendo-lhe que os interesses do Brasil estavam acima de outro qualquer e insistia em que aceitasse a chefia da missão. Mesmo a contragosto, o vice acabou quase que obrigado a ir.

A Câmara Federal, em 5 de julho, autorizou a ida do vice-presidente na delegação econômica e parlamentar ao Leste Europeu e o Oriente. Precavido, Jango solicitou que a autorização para a viagem fosse transmitida por escrito, o que acabou acontecendo com um comunicado ao Itamaraty.

Jango levou instruções do presidente Jânio Quadros para negociar, na China, acordos de comércio e pagamento, bem como o estabelecimento de missões comerciais permanentes no Rio e em Pequim, semelhantes às que foram acertadas dentro do acordo Brasil - União Soviética um pouco tempo antes.

A ideia era a criação de entrepostos brasileiros na China para colocação de vários produtos de exportação: algodão, ouro, peles, lã, madeiras, arroz, açúcar, sisal, cacau, café, fumo, juta, carne congelada, pimenta do reino, cera de carnaúba e mentol cristalizado. Poderiam ser importados do país asiático chumbo, estanho, zinco, fertilizantes químicos, amianto, papel de imprensa, máquinas e equipamentos e borracha natural. Além da China, a missão iria também a Hong-Kong, Cingapura e depois ao Ceilão, atual Sri Lanka.

Em 28 de julho, João Goulart partiu para a Europa, primeiro em visita à Polônia, como convidado especial, depois a Paris, onde se juntaria à delegação no dia 10 de agosto e iriam todos a Pequim, via Moscou. A missão brasileira era composta inicialmente por 17 pessoas: quatro representantes do Congresso (os senadores Dix-Huit Rosado, do Rio Grande do Norte, e Antônio de Barros Carvalho, de Pernambuco, ambos do PTB, e os deputados federais Franco Montoro, do PDC de São Paulo, e Gabriel Hermes, da UDN do Pará), o jurista Evandro Lins, Dirceu di Pasca, subchefe do escritório comercial do Brasil em Paris, os jornalistas João Etcheverry e Raul Ryff, dois representantes do Itamaraty, um da carteira de câmbio do Banco do Brasil, um da Cacex, um da Companhia Siderúrgica Nacional, um do Instituto do Açúcar e do Álcool, um do Instituto Riograndense do Arroz, um do Instituto Brasileiro do Café, os presidentes da Confederação Nacional do Comércio, Associação Brasileira de Exportadores, e o vice-presidente da República, que presidia a comitiva oficial.

A pedido do próprio vice-presidente, que necessitava de um diplomata que falasse e escrevesse bem francês e inglês, e que pudesse também servir de tradutor na viagem, por indicação do embaixador brasileiro na França, Carlos de Souza Alves, foi chamado o ministro conselheiro João Augusto de Araújo Castro, que veio especialmente da missão brasileira em Tóquio, onde servia.

Depois da rápida visita a Moscou, a delegação chegou a Pequim na tarde de 13 de agosto, e foi recebida com honras militares e com flores pelas crianças. Na capital, Jango entrevistou-se com o primeiro ministro Zhou Enlai, e depois com o presidente da República Popular da China, Liu Shaoai. Visitaram ainda as cidades de Hangchow e Cantão, sendo João Goulart recebido pessoalmente por Mao Tsetung, e ambos, durante o chá, conversaram bastante sobre os respectivos países, com perguntas interessadas por parte do anfitrião. No contexto da Guerra Fria, essa aproximação revelaria a independência da política externa brasileira empreendida por Jânio Quadros, principalmente em relação aos Estados Unidos.

Coube a João Goulart discursar em português no imenso prédio do Congresso do Povo, durante a programação oficial: "Viva a amizade cada vez mais estreita entre a China Popular e os Estados Unidos do Brasil, viva a amizade dos povos asiáticos, africanos e latino-americanos!", disse ao final. No dia 23 de agosto, os hóspedes de honra, como os chineses designaram a comitiva brasileira, partiram de Cantão em um trem especial, encerrando a visita à China.



Carlos Lacerda, o corvo



A condução da política externa da administração de Jânio recebia as maiores críticas no campo político. A direita brasileira era a que fazia as maiores censuras, notadamente os integrantes da União Democrática Nacional (UDN), partido político conservador, apesar de apoiar Jânio Quadros e seu governo. Para piorar as coisas, em 19 de agosto de 1961 ele condecorou o ministro da Indústria e Comércio de Cuba, o argentino Ernesto Che Guevara, de passagem pelo Brasil quando voltava de uma reunião de ministros latino-americanos no Uruguai. Diversos oficiais das forças armadas ameaçaram devolver suas condecorações.

Curiosamente, a política externa brasileira estava sob o comando do senador udenista Afonso Arinos de Mello Franco, e durante a campanha eleitoral, em 28 de março de 1960, Jânio realizou uma inesperada viagem a Cuba, em um aparelho Super-Constellation da Varig especialmente fretado, e foi recebido efusivamente por Fidel Castro, atitude que lhe rendeu uma enxurrada de críticas da atuante e perigosa direita brasileira.

A viagem do vice-presidente aos dois mais importantes paises comunistas do mundo só serviu para provocar ainda mais a oposição ao governo Quadros. Várias lideranças da UDN não mediam palavras para desancar o presidente da República, como o governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda que, para afrontar a condecoração a Che Guevara, prestou no Rio de Janeiro uma homenagem a dois dissidentes cubanos anticastristas que também se encontravam no Brasil. Lacerda era conhecido como O Corvo, por apostar sempre na desgraça alheia, principalmente dos governos a que fazia oposição. Em agosto de 1954, aa sórdida e infame campanha contra Getúlio Vargas culminou com o suicídio do presidente da República.

Carlos Lacerda estava angustiado com a situação que vivia à frente da sua administração e, preocupado, resolveu falar pessoalmente com o presidente Jânio Quadros em Brasília, mas quis evitar marcar o encontro por vias normais. Sabedor da presença da primeira dama do país no Rio de Janeiro para uma solenidade da Legião Brasileira de Assistência, Lacerda pediu a Eloá Quadros ajuda para marcar seu encontro com Jânio em Brasília.

Eloá, em conversa com um jornalista, no dia seguinte à renúncia, quando se encontrava hospedada na cidade de Guarujá, lembrou:

"O governador me procurou no Palácio das Laranjeiras no Rio e me pediu pateticamente que eu lhe conseguisse uma entrevista com Jânio. Disse por diversas vezes que se tratava de algo pessoal, que necessitava falar ao presidente. Solicitou com insistência que eu intercedesse junto ao meu marido para que este o recebesse. E frisou: trata-se de um assunto estritamente íntimo, de grande urgência."

O encontro foi agendado para a noite de 18 de agosto, no Palácio da Alvorada, onde Lacerda ficaria hospedado. Um avião da FAB foi colocado à disposição do governador, e no setor militar do aeroporto da Capital Federal esperava o chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo de Almeida, que informou que Ernesto Che Guevara havia desembarcado pouco antes e seria condecorado pelo presidente na manhã seguinte. Lacerda nada respondeu.No Alvorada, foi recebido pelo mordomo João Hermínio da Silva e encaminhado a um dos quartos de hóspedes. Mais tarde, ele se dirigiu ao salão, onde havia mesa posta para dois, mas Jânio já tinha jantado.

Lacerda diria depois que informara o presidente sobre sua intenção de renunciar, porque estava desiludido com os rumos do governo de Jânio e porque o Estado da Guanabara não vinha recebendo a atenção que merecia do governo federal, apesar das promessas. Mas acabou reconhecendo que um dos motivos centrais era a má situação financeira do jornal Tribuna da Imprensa, dirigido por seu filho Sérgio.

Naquela conversa, segundo Lacerda, falaram sobre a dificuldade de Jânio governar com o Congresso e sobre a intenção que o presidente teria de colocar o Congresso em recesso não remunerado, conforme lhe revelara o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta. Jânio não teria contra-argumentado. Disse apenas que só poderia tratar daquele assunto dali a 30 ou 45 dias e lhe fez um convite inesperado: "Vamos ao cinema?".

Apesar de sua ansiedade em falar com o presidente, este o convidou para assistir a um filme no cinema do palácio. Lacerda tentava continuar a conversa. Não conseguiu. Jânio levantou-se e foi até o telefone. Ao sentar novamente, disse-lhe que o ministro Horta queria falar-lhe pessoalmente. Na verdade, segundo Carlos Lacerda, Jânio teria arranjado uma companhia feminina " a mulher de um dirigente de uma indústria automobilística " e queria livrar-se do convidado o mais rapidamente possível. Despachou-o, recomendando que tratasse dos assuntos, inclusive do socorro financeiro para o jornal, com o ministro da Justiça. Horta estava jantando com José Aparecido e San Tiago Dantas, mas a conversa entre ele e Lacerda não teve testemunhas. Quando Lacerda voltou ao Alvorada, para sua surpresa o mordomo o recebeu com sua valise na mão. O governador foi para o Hotel Nacional de Brasília, irritadíssimo.



Testemunha



O mordomo João Hermínio, testemunha da visita de Lacerda ao Palácio da Alvorada, relatou para a imprensa dias depois:

"No dia da chegada de Lacerda a Brasília, Jânio pediu-me para preparar os aposentos e o jantar com o governador carioca. O jantar estava marcado para as 19 horas. Às 20h30m ele ainda não havia chegado. Jânio, que o esperava, resolveu jantar sozinho, saindo depois para o cinema do palácio. Antes, recomendou: "João, fique na portaria e espere o Carlos. Assim que ele chegar, mande-me avisar." Lacerda chegou às 21h15, acompanhado do general Pedro Geraldo. Levei-o aos seus aposentos e perguntei-lhe se queria tomar um banho. "Não " respondeu Lacerda " "quero apenas lavar as mãos e comer, porque estou com muita fome." Foi para a mesa e me pediu uma garrafa de vinho. Enquanto isso, mandei chamar Jânio. Em menos de cinco minutos, chegava o presidente. Jânio encontrou Lacerda jantando e abraçou-o. Depois, pediu-me para fechar a porta, porque queria ficar a sós com Lacerda. Ficaram trancados mais de uma hora. Depois do jantar desceram os dois para a sala de cinema: seria rodado um filme policial. Jânio pediu para buscar cigarros. Ao voltar, encontrei Lacerda de saída. Disse-me, naquela ocasião: "Tenho que falar com o Horta urgentemente, no Hotel do Lago. Volto logo." Isso foi às 23h45. Meia hora depois da meia-noite, o porteiro do Alvorada me disse que tinha recebido um telefonema, com ordens para que levasse a mala de Lacerda para o portão de entrada do Palácio, pois ele voltaria naquela noite para o Rio. Antes desse recado, Jânio tinha ido dormir, dizendo-me que esperasse o Lacerda voltar, para que não faltasse nada. Levei a mala ao portão de entrada, deixando-a lá. Voltei e fui dormir. Mas, naquela noite, Lacerda não voltou para o Rio. Ficou no Hotel Nacional. Esse é o tão falado caso da mala."



Lacerda em guerra contra Jânio



Um irado Carlos Lacerda retornou para a Guanabara na manhã do dia seguinte, ficou ruminando raivosamente por vários dias e, na noite do dia 24 de agosto, fez um violento pronunciamento, muito aguardado não só pela população carioca, mas por todo o país, por uma cadeia de rádio e televisão do Rio de Janeiro. A sua longa fala foi levada ao ar a partir das 22h25:

"Boa noite, meus caros patrícios! Entendi de meu dever, esta noite, trazer ao conhecimento do povo do meu país, muito especialmente, é claro, ao povo do estado da Guanabara, mas também aos nossos irmãos de todo o Brasil, as razões pelas quais havia tomado a decisão de renunciar ao governo e à vida pública. E as razões pelas quais, atendendo a apelos que partem de todos os cantos da vida brasileira, apelos que me tocaram profundamente a consciência e o coração, resolvi aqui ficar até o fim.

"Não se trata, porém, da minha pessoa, nem de minha decisão, trata-se de algo mais importante do que isso. Muita coisa se tem publicado, de certo, de errado, de meio certo, de meio errado, acerca do que se convencionou chamar "a crise do dia". Entendo que uma democracia só vive quando o povo a estima e a defende. Entendo que o povo só estima e defende o regime democrático na medida em que conhece exatamente, precisamente, tudo o que se arma contra ele e tudo o que pode ser preparado a seu favor.

"A razão pela qual havia decidido deixar este posto, que me confiou o povo da Guanabara, é de três ordens: razões de ordem particular, porque em certa altura entendi que o sacrifício não podia mais justificar-se diante das imposições de uma vida que, afinal, já tinha o direito de dedicar-se a si mesmo e à sua família. Por outro lado, as promessas do governo federal ainda não haviam sido cumpridas, e dificuldades ainda existentes até então na Assembleia do Estado colocavam o governo do Estado da Guanabara entre dois fogos: o das promessas não cumpridas, federais, e o das dificuldades não desfeitas, na Assembleia Estadual. Estas, digamos, as razões preliminares.

"A primeira é fácil de esquecer, pois as imposições do dever público passam por cima de todas as demais; a segunda começa a desfazer-se. Anteontem, o senhor presidente da República finalmente assinou, cumprindo o compromisso que comigo assumira e a promessa que há dias renovara no Palácio das Laranjeiras, um simples decreto " que há 26 dias estava retido por alguns dos seus assessores no Palácio do Planalto ", um decreto, o mais simples deste mundo, decreto que nomeia uma comissão para distribuição do dinheiro do Fundo do Trigo, que o senhor presidente Jânio Quadros havia garantido não só à Guanabara " os famosos 2 bilhões da reunião dos governadores ", mas a quase todos os Estados do Brasil.

"Foi preciso, assim, que surgisse uma crise dessas proporções, para que a assessoria do presidente da República desengavetasse um decreto que o ministro da Fazenda lá deixara, na véspera de sua partida para a conferência de Punta Del Este. E trasanteontem, o presidente, afinal sabedor dessa retenção do decreto, assinou; e uma comissão constituída do senhor Edmundo Barbosa da Silva, pelo Itamaraty, do senhor Galvêas, pelo ministério da Fazenda, do senhor Luiz Simões Lopes, pelo Ponto IV, sob a presidência do ministro da Fazenda, instala-se agora, para, em poucos dias, concretizar o compromisso do presidente da República com os Estados, entre eles, o compromisso de CR$ 2 bilhões no Estado da Guanabara, por conta do Fundo do Trigo. Portanto, também nesta área começam a desfazer-se, a duras penas, aquelas dificuldades criadas por uma assessoria defeituosa, malévola, precária, boêmia, desordenada, incapaz e perversa, que está afundando o governo Jânio Quadros.

"Restava, porém, a outra questão, esta mais grave, esta mais séria, questão na qual divirjo abertamente do senhor presidente Jânio Quadros, sem prejuízo da minha estima por ele, da confiança que tenho em que ele superará essas debilidades e deficiências nascidas, sobretudo, de uma óptica, de uma visão defeituosa, acerca da conjuntura mundial e da posição brasileira nessa conjuntura. Não se trata, como pensam alguns até agora, apenas da política internacional do Brasil.

"Se é verdade que a Constituição atribui ao presidente da República poder, ou antes, autoridade, para conduzir a política exterior do Brasil, também é verdade que, em nenhum país democrático do mundo, um homem só, seja quem for, pode conduzir sozinho, para onde queira, a política exterior de um país que não quer ir nessa direção. Tem-se dito que o senhor presidente Jânio Quadros está apenas cumprindo os compromissos que assumira com o povo na campanha eleitoral. É falso.

"Os compromissos do senhor Jânio Quadros com o povo, em matéria de política exterior, consistiram em dois pontos. Primeiro: relações comerciais com todos os governos do mundo. Isto ninguém contesta, não somente o seu direito, mas o seu dever de manter tais relações. O que se vê, porém, é que ele vai além, pois trata muito bem as ditaduras comunistas e muito mal as democracias aliadas.



Relações com o Leste europeu



"Em Porto Alegre, na campanha eleitoral, respondendo a uma consulta do eminente arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer, o candidato Jânio Quadros expressamente declarou que o seu compromisso era o de estabelecer relações comerciais com os países com os quais ainda não as mantínhamos, além de manter com aqueles que já tínhamos. Isto exclui esta inovação, que é a louvação e adesão escandalosa do Brasil a linhas que não são as suas, a interesses que não são os seus, a propósitos contrários aos seus propósitos, a ideais que a nós repugnam em nome de uma pseudomaioria que na realidade não existe. Pois não há artifício de propaganda, não há sofisma neste mundo, capaz de disfarçar uma realidade: a imensa maioria do povo brasileiro repele o comunismo. Mas este, por mais importante que seja, é um aspecto da questão. Quando alguns pândegos ou alguns intrigantes procuram, uns fazer média como presidente à minha custa " é tão fácil aderir agora ao presidente " à custa de uma nossa divergência, outros, esses são os mais perniciosos, procuram turvar as águas e atribuir-me o propósito de esconder, com esta crise, o malogro da nossa administração.

"Seria preciso, primeiro, demonstrar que malogramos e ainda mais do que isso, demonstrar que sentimos o nosso malogro. Pode ser que tenhamos malogrado. Mas não me considero assim, nem considero assim os companheiros de governo que tenho. Uma vez que não prometemos milagres, creio, sem imodéstia alguma, e ao contrário, sempre insatisfeito, creio que estamos fazendo na Guanabara, nestes meses, mais do que o governo da República já fez no país. Os recentes aumentos do gás, da luz, do bonde, do telefone, no Rio, outra coisa não são senão a minha assinatura debaixo de um ato que é do governo federal. Assinei-o para garantir o salário dos trabalhadores dessas categorias, mas não foi um ato nosso, foi um acordo salarial celebrado pelo ministério do Trabalho, no ministério do Trabalho, de acordo com instruções e decisões do governo da República.

"O governo da Guanabara limitou-se a dizer que a sua posição seria de fiel cumprimento à política salarial e tarifária que o governo da República decidisse. Fora daí, não há esforço que não tenhamos feito, e a culpa não é nossa se encontramos o Estado nesse estado. Temos procurado reabilitá-lo, recuperá-lo, reconstruí-lo e, sobretudo, organizá-lo; e já agora um outro elemento terrível da crise na Guanabara desfaz-se aos poucos, graças a esta mobilização de espírito público que se observa na Assembleia Legislativa do Estado, tendo à frente a figura singular do professor Temístocles Cavalcanti, atual líder da maioria.

"Essa maioria se vai constituindo, com tal ou qual dificuldade, não em torno de um homem, nunca em torno de um homem, não em torno de uma iluminação, não em torno de uma mística, mas em torno de problemas concretos e de soluções objetivas nas quase 50 mensagens que até agora o governo enviou à Assembleia.

"Creio que outro governo, mais bem dirigido por um homem mais capaz, poderia ter feito nestes meses muito mais. Mas não vi governo antes do nosso que tivesse feito mais em tão pouco tempo. Portanto, vamos concentrar-nos nas razões profundas da crise que se abriu, e que desejo ver encerrada, porque não acredito, absolutamente, nem pretendo que o presidente da República se renda a argumentos de uma hora para outra. Uma crise como esta não se encerra: ela inicia um processo de evolução, de compreensão, de entendimento, através da divergência. É assim que se formam e se constroem, nas democracias, as grandes soluções de interesse nacional e popular.

"Não pretendo impor coisa nenhuma, mas não abdico do meu direito de propor. Não pretendo humilhar ninguém, nem desafiar autoridade superior ou igual ou inferior à minha. Mas tenho neste país autoridade para falar. Tenho-a porque a conquistei com sangue e sacrifício, meu, dos meus companheiros, dos meus concidadãos. Tenho atrás de mim, antes de ser governo, 16 anos de oposição, sem falta de um dia. Tenho, portanto, algum lastro e algum direito de ser ouvido, antes que isto se transforme em ditadura.

"A minha principal, talvez a maior razão de me opor à política exterior do atual governo, não é tanto o caráter aventuroso e precário dessa política, não é tanto a ficção em que ela se baseia: a ideia de que um país dominado por uma filosofia comunista, isto é, um país que acredita que só pela revolução e pela guerra é possível transformar a sociedade humana, venha a desejar que o Brasil progrida, se normalize, se estabilize, o que seria negar-se a si próprio, pois seria o comunismo ajudando a manter o regime que ele jurou destruir.

"Quero contar ao povo, simplesmente, sem daí tirar efeitos alarmistas, sem contribuir para envenenar seja o que for, o que se passou, para que julgue. Sei que aqui ou ali ficará a minha palavra contra a dos que queiram negá-la agora. Podem acusar-me, e não me faltarão acusações continuadas de muitas coisas. Mas nunca, ainda, alguém tentou acusar-me de inverídico. E por que mentiria eu? E por que exageraria, no momento em que todas as vantagens poderiam advir-me se simplesmente calasse?



Reforma institucional



"No dia da reunião dos governadores, o presidente da República manifestou-me a sua profunda inquietação com as dificuldades de funcionamento do regime: pouco ou nulo rendimento do Congresso, a desagregação sensível dos partidos, o esvaziamento da vida pública, o não entendimento de suas solicitações por reformas profundas que carece para governar. Esta conversa havia sido precedida de outra, do senhor ministro da Justiça, na qual o senhor Oscar Pedroso Horta dissera-me que o presidente, em crescente inquietação, poderia chegar à renúncia, se não obtivesse do Congresso as medidas necessárias ao cumprimento do seu programa.

"Diante disso, a certa altura da reunião dos governadores, pedi ao presidente que me concedesse a honra de prosseguirmos a conversa tão logo tivesse ele oportunidade para isso. Chamou-me no domingo seguinte a São Paulo, mas ali a conversa não houve, nem no dia seguinte, no avião, quando para cá viajamos juntos. Disse-me ele, então, que ainda não era hora de conversar sobre isso. Esperei, pois, até que, há dias, na minha penúltima visita a Brasília, o ministro da Justiça esclareceu-me a questão.

"Traçou-me, com sua irrecusável inteligência, um panorama que resumiria assim: "consideramos necessário preparar o país para uma reforma institucional na qual o Congresso, já que desejava recesso remunerado, fique realmente em recesso remunerado. Para isto, disse-me o Ministro da confiança do Presidente, precisamos do apoio de alguns governadores de Estado, a começar pelo seu. O governador de São Paulo ainda não está maduro para esta conversa, mas depois conversaremos com ele, após uma preliminar que por alto já procurei fazer", acrescentou o ministro da Justiça.

"Perguntei-lhe em que consistiam essas reformas, e não obtive respostas precisas sobre elas. Mas aludiu a alguns artigos meus em 1956, quando exatamente me chamaram de golpista, porque em situação inteiramente diversa da atual, numa conjuntura inteiramente diferente, eu preconizava um breve adiamento de eleições para, com o consentimento do Congresso, poder o governo, com plenos poderes, executar certas reformas, a começar pela da lei eleitoral.

"Pediu-me ele que lhe mandasse esses artigos, porque, disse, recordava-se de um, sobretudo, em que a questão estava posta exatamente nos termos que desejaria aplicar agora. Perguntei-lhe como ficaria, nesse caso, a opinião do povo, a vontade do povo. Disse-me que poderiam chegar a conceder, dentro do respeito à periodicidade dos mandatos e de nenhum modo cancelando a necessidade de eleições, um referendo popular para as medidas de reforma institucional que o governo pretendia introduzir no País.

"Observei-lhe, então, que, se em qualquer caso isto era possível, muito mais impossível seria no momento em que o presidente da República parecia acenar para os lados da Rússia; pois ninguém de bom senso e patriotismo neste país daria um cheque em branco a nenhum governante, daria plenos poderes a governante nenhum no momento em que ele parecia levar o Brasil para campos em que o Brasil não quer entrar. Observou-me ele que isto era certo, mas que, por outro lado, havia sempre a outra saída, havia sempre a alternativa: ou nós cederíamos a esse propósito ou poderia o governo dirigir-se às esquerdas e fazer com elas aquilo que o centro democrático não concordasse em fazer.

"Nesta altura, perguntei-lhe por outros elementos que constituem em todas as nações " inclusive na nossa, não há desdouro nisso " a base física do poder, a Força Armada. Perguntei-lhe se acaso poderia ele conceber que as Forças Armadas do Brasil iriam garantir um movimento dessa espécie, qualquer que fosse o seu rótulo, quaisquer as belezas da sua apresentação no momento em que soubessem, elas, democráticas, elas, brasileiras, elas, patrióticas por vocação e compromisso, que o governo praticava uma política exterior cor-de-rosa da chamada linha do mais pra lá do que pra cá?

"Disse-me então o ministro da Justiça que já havia sondado dois ministros militares e que restava um terceiro, a quem pediu-me que sondasse. É claro que não o fiz, e passei, meus amigos, alguns dos dias mais terríveis da minha vida, nesta mesa, aqui, tratando de águas, de esgotos, de lixo, tratando de escolas e de estradas, tratando de obter projetos de deputados que me chamam de direitista reacionário, no momento em que na minha consciência se travava a luta entre dizer tudo ou, em silêncio, resistir sozinho. Procurei resistir e travar esta batalha só, absolutamente só, sem me abrir com ninguém, nem com mais íntimos companheiros, nem com os mais chegados colaboradores.

"E por isto, para evitar essa corte de fichinhas que pulula no Palácio do Planalto em torno do presidente da República, dirigi-me à criatura mais límpida, mais serena, de mais bom senso e de mais respeitável conduta que em torno dele se encontra " a sua esposa. Procurei-a em fins da semana passada, no Palácio das Laranjeiras, e disse-lhe, sem precisar mais nada, da minha funda preocupação e da necessidade de falar ao presidente uma língua de amigo a amigo, sem protocolo, sem a complicação das audiências e sobretudo sem os intermediários que fazem em torno do senhor Jânio Quadros uma roda de fogo de mediocridade e estupidez.

"Com uma admirável compreensão e uma amizade que nunca poderei pagar, dona Eloá Quadros telefonou a seu marido e logo depois este também me telefonava, convidando-me para ir a Brasília " e fui. Ali, a sós, nós dois conversamos sobre as razões pessoais que me faziam seriamente pensar em deixar tudo isso e ir embora para casa, porque não queria ser personagem dessa farsa nem vítima desse drama. Quando lhe falei da conversa com o senhor ministro da Justiça, disse-me ele que não estava preparado para tê-la comigo então e que somente daqui a trinta a quarenta e cinco dias poderia conversar sobre esse assunto.



Versões conflitantes



"Observei-lhe que, ao perguntar ao ministro da Justiça até que ponto ele tinha autorização para falar comigo nesse tom e nessa matéria, dissera-me ele que tinha instruções do presidente. A conversa praticamente encerrou-se aí e fomos ao cinema. O presidente, pouco depois, levantou-se, chamou o ministro da Justiça ao telefone e este pediu o meu comparecimento em sua casa. Eram cerca de 11 horas da noite. Lá cheguei um pouco contrafeito, encontrei-o num fim de jantar com o senhor San Tiago Dantas, que acaba de ser nomeado chefe da delegação brasileira na ONU, e o secretário particular do presidente da República. Nós dois, o ministro e eu, fomos a outro aposento e ali perguntou-me ele se já havia sondado o ministro militar a que se referira em nossa conversa anterior. Disse-lhe que não.

"Cobrou-me o envio dos artigos de 56, disse-lhe que não mandara inclusive porque me pareciam as situações completamente diversas, que não se aplicava mais agora uma tese momentânea para uma conjuntura completamente diferente. Pediu-me então que não fosse a Vitória no dia imediato, atendendo a convite que pouco antes me fizera o presidente. Disse-lhe que não tinha nenhum empenho em ir a Vitória, embora me agrade muito aquela cidade, mas que o convite era do presidente e não havia necessidade de chamar-me de tão longe a sua casa para me dissuadir de uma viagem para a qual não me convidara.

"Explicou-me que seria inconveniente aparecer em público com o presidente, naquela altura, como já lhe parecera inconveniente a minha ida súbita a Brasília. Mas por quê? Que inconveniente havia em aparecer de público, o governador da Guanabara e o presidente da República, dois amigos, para tratar de interesse público? Porque, disse ele, à luz " eu diria então à sombra " da nossa conversa poderia haver especulação. Mas como, se ninguém sabia da nossa conversa? Encerramos então esta última ou penúltima conversa e voltei ao Palácio da Alvorada. Lá chegando, encontrei, na porta, o porteiro e a minha valise: o convite do presidente para ser seu hóspede fora cancelado pelo ministro da Justiça, e o ministro telefonara comunicando ao porteiro para levá-la ao automóvel e transportar-me ao hotel.

"Agora circulam várias versões sobre isto: desde aquela que me apresenta como tentando hospedar-me à força no palácio presidencial " eu que nem moro no palácio governamental " até aquela que explica como um mero quiproquó esse telefonema. Ao chegar ao hotel, telefonei ao ministro apenas para passar recibo e confirmar que o seu despejo fora para valer. O ministro compareceu ao hotel, onde me recusei a recebê-lo até que bateu à porta e não era possível desfeiteá-lo. E ali, numa atmosfera mais ou menos boêmia, como é a atmosfera em que se tratam essas coisas sérias no Brasil, até quatro e quarenta da manhã, o ministro tentou dissuadir-me quer da renúncia, quer da minha negativa em participar de sua maquinação. Informei-lhe, então, que traria a público essa maquinação.

"Cerca de 7 horas da manhã, telefonei ao general Pedro Geraldo, Chefe da Casa Militar, e pedi-lhe que dissesse ao presidente da República que, se eu fora a Brasília ainda na dúvida, voltava com a certeza de que não cabia mais no quadro político contemporâneo. Comprometi-me muito com o povo brasileiro, afirmei por toda parte, acentuando as suas maiores esperanças, que o presidente Jânio Quadros faria o governo com que todos sonhamos. Não desisti disso, nem descreio disso, e por isso mesmo queria sair para não participar de um erro que eu considero mortal, era o que eu pensava e dizia.

"Vim para o Rio, e o resto todos sabem. À noite, veio o presidente ao Rio, não especialmente por isso, mas, ao contrário, por estar no seu itinerário. De Brasília, o ministro da Justiça comunicou ao chefe do meu gabinete que o presidente me esperava aqui. Tive então a honra de voltar à sua presença. Tivemos, no Palácio das Laranjeiras, uma conversa muito cordial, mas muito clara, muito cordial, e talvez por isso mesmo muito franca, na qual lhe fiz sentir que o poder pessoal é como um pêndulo que oscila indiferentemente entre a esquerda e a direita, contanto que, nesse movimento pendular, o pêndulo trabalhe para a engrenagem que está por trás do relógio. Foi assim em 1935, e eu tenho a memória mais longa que a própria vida.



Sem a vocação da ditadura



"Em 1935, estimulou-se a mais não poder o desenvolvimento do comunismo até que ele pôs, como se diz, as mangas de fora. Então, diante do Brasil assustado, constrangido, sacudido pelo temporal artificialmente estimulado, outra coisa não restou às Forças Armadas " porque não têm a vocação da ditadura " senão dar ao poder constituído plenos poderes, que ele usou, como todos sabem, para acabar no golpe de novembro de 1937. Eis aí por que " e não será a última injustiça que sofro na vida, enquanto defendo até para os comunistas o direito de existir, contanto que não neguem o nosso, que somos a maioria " sou acusado de golpista e direitista, porque me recuso a pactuar com o golpe de gabinete, com uma reforma por decreto e com o recesso remunerado, isto é, com o fechamento do Congresso.

"A esta altura, meus patrícios, é tempo de dizermos que reconheço a necessidade de certas reformas, que reconheço as deficiências do Congresso e os insucessos dos partidos, nascidos, é certo, de uma tal ou qual obsolescência, de um certo anacronismo no processo de elaboração parlamentar, agravados, é certo, pelo isolamento mortífero, letal de Brasília. Estivesse o Congresso num centro populoso, com opinião pública atuante, ele próprio se revigoraria através dos estímulos dessa opinião; isolado, insulado, transformado em clube, ele próprio agrava os seus problemas e faz de uma doença um perigo mortal.

"Mas daí não se segue que se possa, ou se deva, ou se pretenda introduzir no Brasil certas reformas por via extracongressual. Daí não se segue absolutamente que haja possibilidade ou interesse para a democracia, para a liberdade, para o progresso do País de usar o truque de impor ao centro democrático a ameaça das esquerdas para que ele se submeta ao poder pessoal, sob pena de o poder pessoal buscar nas esquerdas os apoios de que carece para se impor à nação subjugada.

"Devo dizer que, tanto quanto pude comprovar, com as cautelas e cuidados de quem não quer passar como golpista, a informação do senhor ministro da Justiça sobre a sondagem que fizera, segundo me alegou, a dois dos três ministros militares, é falsa. Ele não sondou ninguém, tanto quanto eu saiba e tanto quanto eu conheço os homens. Não sondou ninguém, mas queria comover certos governos de Estados, queria desagregar certas forças de conservação da democracia, queria e quer, e vai diluindo as resistências do País democrático através da dupla ameaça: a da ineficiência do regime que não funciona ou a da marcha ondulante dos comunistas fantasiados de maioria.

"Diante de tais coisas, que serão facilmente refutadas pelo ministro da Justiça " que nos últimos dias a alguns amigos já apresentou umas dez versões diferentes, e nenhuma verdadeira, de sua conversa comigo ", ficará a minha palavra, e só. E certo que não foi só a mim que ele disse tais coisas; outros existem, mas, que eu saiba, nenhum desses outros é governador. Começou de certo tempo a esta parte, para quem, como eu, está atento e tem a obrigação cívica e funcional de prever, uma série de sintomas e dos preparativos dos quais o mais recente exemplo é essa súbita pudicícia do ministro, tomado de puritanismo estranho, inesperado mesmo, em relação à televisão e ao rádio.



Alta do preço do papel



"A imprensa está sendo subjugada economicamente através da súbita e brutal, e desnecessariamente súbita e brutal, elevação do custo do papel. Ao contrário de todos os conselhos que recomendavam elevação gradativa, formou-se na área do Palácio do Planalto a deliberação de aumentar, em vinte e quatro horas, de trezentos por cento o preço do papel, reduzindo-se, com isso, a dois ou três o número de órgãos de imprensa em condições de economicamente resistir ao embate.

"Todos sabem o que isso significa para a liberdade da informação e do comentário, sobretudo quando ao lado do impacto econômico sobre a empresa jornalística existe a infiltração, que por baixo progride, das forças comunistas na imprensa. No que se refere ao rádio e televisão, começa-se com uma certa monotonia para quem acompanha essas coisas: assim foi na Alemanha antes de Hitler, foi assim em Cuba, à medida que Fidel Castro evoluía para o comunismo. Começa-se por medidas puritanas, que enchem de regozijo a Igreja e satisfazem os anseios das famílias, mas que levam em si o princípio da intervenção do poder público na liberdade de informação e da opinião.

"Assim se prepara o quadro e assim ele evolui, enquanto o Congresso aos poucos se omite, e se explora de modo crescente, e com crescente agravamento, a contradição que existe entre políticos, a secreta e inexpressa ambição de uns em querer sobrepujar os outros, as contradições dentro dos partidos, que já não mais se reúnem porque, se se reunissem já, se partem tanto que já não se podem unir; o silêncio entre os homens públicos e esse ódio que separa entre si alguns dos melhores homens e algumas das mais autênticas forças populares do país.

Vejam bem que nunca se fará, nem faria eu, a injustiça de supor que um homem da inteligência e da lucidez do presidente Jânio Quadros seja capaz de cair de amores pela Bulgária somente pelo que a Bulgária nos possa comprar ou vender, nem tampouco verberar os Estados Unidos no momento exato em que eles corrigem os seus erros e se aproximam do Brasil com uma linguagem franca, que consiste afinal, objetivamente, num apoio efetivo ao nosso desenvolvimento.

"É injurioso supor que o presidente da República não tenha percebido a enormidade do erro de sua política externa. O que é lícito não só supor, mas deduzir, pelo que ele me disse e pelo que está fazendo, é que, pela primeira vez neste país " e talvez não erre dizendo pela primeira vez na vida de uma nação democrática " a política exterior se faz para seguir e obedecer a propósitos da política doméstica. O grave, o perigoso " mais que perigoso, ameaçador " é que uma nação tem interesses permanentes, tem constantes de que não se afasta em vão. Não são somente tradições. As tradições nacionais chamam-se assim porque são realidades permanentes de um País formado na liberdade, no respeito, sim, à autodeterminação e por isso mesmo no horror àquela que falsifica a liberdade que tem os povos de dispor dos seus destinos, chamando governos a ditaduras que se lhes impõem pela força.

"O que existe no Brasil, no momento, cifra-se, resume-se, consiste afinal numa pequena, astuta, mas medíocre trama palaciana para resolver por meios ilegítimos dificuldades que todos reconhecemos e que devemos resolver por meios legítimos. Ninguém neste País ousará dizer " e muito menos eu, que conheço as dificuldades do meu Estado " que o presidente da República esteja tendo facilidades para cumprir o seu programa e realizar o seu governo.

"Reunamo-nos todos, oferecendo-lhe todas as facilidades ao nosso alcance, o nosso apoio, a nossa confiança lúcida e correspondida, e correspondida porque confiança não se entrega unilateralmente, confiança é recíproca e reciprocamente conquistada. Ofereçamos ao presidente tudo o que ao nosso alcance esteja para que ele possa licitamente, legitimamente, democraticamente, governar como conquistou o poder: com a esperança e confiança da imensa maioria da nação. Para isso é essencial, sem dúvida, que ele não se perca mais nos descaminhos de uma política que é contrária a tudo aquilo por que urge e pugna a imensa maioria do povo brasileiro.

"Tenho, às vezes, vontade, não sei se digo, de rir " mas será em todo caso um riso melancólico " quando vejo dividirem as nossas posições entre direita e esquerda e atribuírem ao presidente uma posição de esquerda e a mim darem a direita. Desde quando é direita querer que as coisas se façam direito? Desde quando é direita, a não ser por um jogo de palavras, querer que se faça democraticamente o que nunca se deve fazer por vias espúrias? Desde quando será esquerda aplaudir tiranias e deixar que elas se introduzam no Brasil? Desde quando é esquerda o poder pessoal, assim chamado por oposição ao poder coletivo, que se exprime na democracia, através da opinião e de seus órgãos, através da opinião pública e de seus instrumentos, através da representação do povo em suas assembleias? Desde quando é esquerda o poder pessoal que se vai aperfeiçoando primeiro no confinamento de um palácio no ermo, depois cercando-se de um grupo de palacianos bisonhos, que fazem da intriga e da chalaça a matéria-prima de sua adulação?

"Neste momento, a meu ver, tem o presidente Jânio Quadros em suas mãos a mais extraordinária soma de poderes que numa democracia se pode dar a um homem; e esses poderes são os que nascem da legitimidade de seu mandato de confiança que, apesar desses descaminhos, tem nele o povo brasileiro e eu com o povo. Por que não usá-la, assim, lealmente, como leal e fraternalmente nós a oferecemos? Nós, que nada queremos dele, nós que não temos ambições, quanto ao futuro; nós, que a custo carregamos cada qual a cruz que orgulhosamente pedimos para os nossos ombros; nós que lutamos com ele e a seu lado; nós, que queremos trabalhar com ele e a seu lado?

"Só não podemos, só não queremos é que, em nome de um esquerdismo para fora, se faça o reacionarismo para dentro, através de uma ditadura disfarçada, que através de um reacionarismo para dentro, através de tal ou qual agrado a este ou aquele ou aquele grupo econômico, se faça para fora o espetáculo de um país, o Brasil, que entra na órbita comunista no exato momento em que sai do seu livre espaço e deixa de ser uma estrela refulgente para ser triste satélite de um pseudoneutralismo. Talvez a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul que foi dada a Che Guevara sirva ao menos no seu peito, para esconder a mancha de sangue dos cubanos que ele matou. Por trás da condecoração dada ilegalmente a esse aventureiro internacional, a esse apátrida especialista em oprimir a pátria alheia, que coisas se escondem, que aventuras, que tramas da madrugada, que torvas conversas, que sinistras combinações!"



JÂNIO QUADROS: 50 ANOS DA RENÚNCIA

(Parte 3)



A renúncia



Jânio tomou conhecimento da fala de Lacerda somente no dia seguinte, pois tinha o hábito de se deitar bem cedo. Ao ler as declarações no jornal Correio Braziliense, irritado, ele se sentiu atingido, e pensou em responder à altura. Maquiavélico, Jânio arquitetou um verdadeiro golpe: apresentaria sua renúncia da presidência da República. A ausência do vice-presidente João Goulart, que estava em missão oficial no exterior, engendrada pelo próprio Jânio, falicitaria as coisas: ele imaginava que não aceitariam seu pedido de renúncia e que voltaria ao cargo com poderes excepcionais, e assim poderia agir contra o Congresso Nacional, que lhe era hostil.

No seu gabinete no Planalto, fez os primeiros contatos revelando a sua decisão de renunciar ao governo, informando que, após a solenidade do Dia do Soldado, redigiria o documento indispensável. Terminadas as comemorações no ministério da Guerra, o presidente voltou ao Palácio, chamando imediatamente a seu gabinete Quintanilha Ribeiro, Pedroso Horta, o general Pedro Geraldo de Almeida e o secretário particular do presidente José Aparecido de Oliveira.

Jânio Quadros disse aos quatro: "Chamei-os para dizer-lhes que renunciarei agora à Presidência. Não sei exercê-la. Já que o insucesso não teve a coragem da renúncia, é mister que o êxito a tenha. Não exercerei a presidência com a autoridade rebaixada perante o mundo, nem ficarei no governo discutindo a confiança no respeito, na dignidade indispensável ao primeiro mandatário. Não se trata de acusação qualquer. Trata-se de denúncia de quem tem como solenes e graves os deveres do mandato majoritário. Não nasci presidente da República. Nasci, sim, com a minha consciência, e a esta devo atender e respeitar. Ela me diz que a melhor formula que tenho agora para servir ao povo e à Pátria é a renúncia."

Jânio solicitou ao general Pedro Geraldo que chamasse os três ministros militares para participar-lhes sua decisão. No seu gabinete no terceiro andar do Palácio do Planalto, em um bloco de memorando com o timbre do gabinete do presidente da República, Jânio redigiu o seu pedido de renúncia do cargo.

Enquanto o Chefe da Casa Militar ia desincumbir-se da sua missão, o ministro da Justiça, o Chefe da Casa Civil e o secretário particular do presidente reuniram-se no gabinete de Quintanilha Ribeiro. Novamente no gabinete do presidente, os mesmos auxiliares presenciaram a comunicação de Jânio Quadros aos ministros militares " almirante Silvio Heck, marechal Odylio Denis e brigadeiro Grün Moss. Os chefes militares reiteraram o apreço e o respeito das Forças Armadas ao presidente da República, permitindo-se os ministros interpretar a emoção de seus companheiros num apelo ao presidente, que foi ouvido em silêncio. O ministro da Aeronáutica, emocionado disse: "Presidente, pelo amor de Deus, não nos faça isso..." Jânio Quadros limitou-se a agradecer a colaboração dos presentes, anunciando que se dirigiria em seguida para São Paulo, onde retomaria suas atividades de professor.



Em São Paulo



João Hermínio estava no Alvorada quando recebeu, depois das 8h, um telefonema de Jânio, ordenando que preparasse uma mala e que colocasse dois ternos leves e dois pesados. Solicitou também que avisasse dona Eloá, e que ela também preparasse sua mala, pois iriam viajar. Determinou ainda o presidente que levasse dona Eloá e sua mãe, dona Leonor, para o aeroporto, e que o aguardasse lá.

Antes de deixar Brasília, o presidente determinou ao ministro Pedroso Horta que levasse ao Congresso Nacional, as 15h, o documento de renúncia e, ainda, que se expedissem comunicações às autoridades, inclusive aos governadores estaduais, e se tomassem providências adequadas para manter a ordem em todo o território nacional. Aos governadores da Guanabara, São Paulo e Minas Gerais, além do telegrama circular, mandou que o ministro da Justiça participasse por telefone informando de sua decisão.

Precisamente às 10h25, o presidente da República deixou o Palácio do Planalto em companhia do general Pedro Geraldo, do seu ajudante de ordens major Chaves Amarante, e pelo secretário particular José Aparecido de Oliveira, no automóvel da presidência em direção do aeroporto militar de Brasília, depois de conversar com seus auxiliares. Ao se despedir dos dois auxiliares, o presidente reafirmou que partia com a consciência tranquila. "Deus é testemunha dos esforços que fiz para governar bem, sem ódio e sem rancores. Nesta hora penso nos pobres e nos humildes. É muito difícil ajudá-los".

Vinte minutos depois, em companhia de sua esposa e de sua mãe, o avião Viscount presidencial da Força Aérea Brasileira decolava com destino a São Paulo, pousando duas horas depois, inicialmente no aeroporto de Congonhas, onde o aparelho foi reabastecido. O ainda presidente permaneceu o tempo todo a bordo da aeronave, que estava com todas as cortinas das janelas fechadas, obstruindo a visão dos curiosos. Levantando voo, após sobrevoar a capital paulista por meia hora, pousou na Base Aérea de Cumbica, em Guarulhos, às 13h, onde Jânio aguardou os acontecimentos no gabinete do comandante da unidade militar coronel Roberto Faria Lima.

Em São Paulo, estavam reunidos no Palácio dos Campos Elísios, sede do governo paulista, os governadores Carvalho Pinto, de São Paulo, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, Nei Braga, do Paraná, Mauro Borges, de Goiás, e Carlos Lindenberg, do Espirito Santo, que se encontravam participando da I Semana da Unidade Nacional.

Durante o almoço com os governadores, do qual participou também o ministro do Trabalho Francisco de Castro Neves e outras autoridades paulistas, Carvalho Pinto foi interrompido pelo seu secretário de Imprensa jornalista Ruy Marcucci: "Uma comunicação urgente de Brasília..." O chamado era do ministro da Justiça Oscar Pedroso Horta informando da decisão de Jânio Quadros. Transtornado com a notícia, o governador voltou ao salão e participou a todos a renúncia do presidente da República. Segundo Marcucci, em seu livro Carvalho Pinto, Em Ritmo de Hoje, o ministro Castro Neves recebeu incrédulo a informação, e continuou a comer um bife, enquanto o governador paulista seguiu apressadamente em direção a Base Aérea de Cumbica.

Carvalho Pinto, em companhia do promotor público Hélio Bicudo, presidente da Comissão de Incorporação das Centrais Elétricas de Urubupungá (Celusa), foi para Guarulhos ao ter conhecimento de chegada de Jânio a São Paulo, mas acabou não se encontrando com ele, pois deixou o aeroporto cinco minutos antes do pouso do avião presidencial.

O próprio ministro do Trabalho, dirigindo seu automóvel, um Aero-Willys branco, acabou levando os demais governadores ao encontro de Jânio com o firme propósito de demover o presidente da sua renúncia. Na residência do comandante da Base Aérea, Castro Neves e os governadores Magalhães Pinto, Mauro Borges, Nei Braga e Carlos Lindenberg foram recebidos por Jânio Quadros, que explicou seu ato. Apesar das argumentações e de veementes apelos, não conseguiram demovê-lo da atitude tomada. A reunião durou até às 18h15, quando se retiraram. Na saída, o ministro Castro Neves afirmou aos jornalistas que "a atitude do presidente foi tomada com pleno conhecimento dos fatos". Disse que se achava afastado de Brasília há dias e que o senhor Jânio Quadros, no curso da reunião que acabara de manter, explicou os motivos de seu gesto, que disse ser de caráter irreversível. Informou ainda que, como ministro de Jânio Quadros, colocava seu cargo a disposição do senhor Ranieri Mazzilli, acreditando que todos os ministros iriam fazer o mesmo.

Magalhães Pinto, ao sair, informou à imprensa que a visita que acabavam de fazer os governadores ao senhor Jânio Quadros, tinha um sentido de solidariedade. Interrogado sobre a posição da UDN, em face a renúncia declarou que não sabia qual seria a linha a ser seguida pelo partido, pois ainda não havia tido oportunidade de conversar com os seus líderes.



No Congresso



Em Brasília às 14h40, em cumprimento à determinação de Jânio Quadros, o ministro Pedroso Horta telefonou para o governador Carlos Lacerda.

"Alô, disse Lacerda, é o Horta?"

"Não, é o ministro da Justiça. De ordem do senhor presidente da República comunico a Vossa Excelência que vou em seguida fazer entrega ao Congresso de sua renúncia à presidência da República. O presidente me pediu que o avisasse antecipadamente para que Vossa Excelência pudesse tomar as providências de segurança que entender cabíveis e incumbiu-me também de desejar-lhe felicidades".

O ministro da Justiça desligou o telefone, não deixando seu interlocutor falar uma única palavra. Igual comunicação foi feita também pelo telefone ao governador Carvalho Pinto e ao governador Magalhães Pinto, que se achavam reunidos em São Paulo. E por telegrama, a todos os demais governadores.

Pedroso Horta, acompanhado de um oficial de gabinete, chegou ao Congresso Nacional às 14h45, dirigindo-se diretamente ao gabinete do senador Auro Soares de Moura Andrade, presidente em exercício do Congresso Nacional. Tomando conhecimento da missão do ministro da Justiça, quinze minutos depois convocou em caráter de urgência os líderes partidários das duas casas que se encontravam na Capital Federal para informar a grave ocorrência.

Às 15h, o jornalista Carlos Castelo Branco reuniu em sua sala os jornalistas credenciados no Palácio do Planalto e fez o seguinte relato: "O presidente Jânio Quadros renunciou esta manhã à presidência da República, embarcando para São Paulo por volta das 11h. O documento de renúncia está sendo entregue neste momento ao Congresso Nacional pelo ministro da Justiça".

No plenário do Senado Federal discursava o senador Camilo Nogueira da Gama, do PTB de Minas Gerais, enaltecendo a escolha do deputado San Tiago Dantas como representante do Brasil na ONU, quando o seu colega do Espírito Santo, Jeferson de Aguiar, do PSD, pediu um aparte e informou a renúncia de Jânio Quadros. Minutos depois o presidente da Casa senador Auro de Moura Andrade assumiu os trabalhos e fazendo soar as campainhas disse:

"Peço licença ao nobre orador para interrompê-lo em suas considerações por motivo de uma grave comunicação que devo fazer ao Senado da República. Acabo de receber das mãos do ministro da Justiça Oscar Pedroso Horta ofício de renúncia ao mandato de presidente da República do senhor Jânio Quadros, e Sua Excelência pede que transmita ao Congresso Nacional que o senhor Jânio Quadros já não se encontra em Brasília". Depois de fazer algumas considerações, clamando por Deus, pedindo serenidade a todos e declarando confiança nas forças armadas do Brasil, informou que convocaria uma reunião conjunta do Senado e da Câmara dos Deputados, para a comunicação do documento recebida, e declarou suspensa a sessão às 15h40. Uma hora depois, foram reabertos os trabalhos, com a convocação do Congresso Nacional ,cinco minutos depois, para deliberação das duas Casas legislativas.

Moura Andrade, abrindo os trabalhos, disse:

"Senhores congressistas, está aberta a presente sessão do Congresso Nacional. Foi ela convocada em caráter absolutamente extraordinário e por força de acontecimentos que já são de conhecimento dos senhores congressistas. Cabe a esta presidência dar ciência, ao Congresso Nacional e à nação, do ato de renúncia praticado, no dia de hoje, pelo presidente Jânio da Silva Quadros, ao mandato de presidente da República. Enviou-me Sua Excelência, por mãos do senhor ministro da Justiça doutor Oscar Pedroso Horta, o seguinte ofício que passo a ler:

"Ao Congresso Nacional.

Nesta data, e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça, as razões do meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República. Brasília 25.8.61. Jânio Quadros".

"As razões do seu ato me foram entregues pelo senhor Ministro da Justiça e estão consubstanciadas nas seguintes palavras, que vou ler aos senhores congressistas."



A carta-renúncia



"Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem direito o seu generoso povo.

"Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração.

"Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública.

"Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do Brasil, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia.

"Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade. O apelo é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito e da estima de cada um dos meus patrícios, para todos e de todos para cada um.

"Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Somente assim seremos dignos de nossa herança e da nossa predestinação cristã. Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor. Trabalhemos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria.

Brasília, 25 de agosto de 1961.

Jânio Quadros"



"Conforme sabem os senhores congressistas", continuou Moura Andrade, "o ato a renúncia é ato de vontade do qual deve tomar conhecimento do Congresso Nacional. Nos termos da constituição federal, artigo 79, § 1º, caberá ao senhor presidente da Câmara assumir a presidência da República.

Desejo, antes de encerrar estas palavras, dizer-lhes com a mais absoluta sinceridade de alma, das minhas, e sei serem também de todos os senhores congressistas e da nação, preocupações quanto ao grave instante que estamos vivendo. Mas desejo " e sei que o faço interpretando o sentimento do Congresso Nacional, interpretando a suprema aspiração do povo brasileiro " desejo declarar que nós temos a mais absoluta e irrestrita confiança nas forças armadas no Brasil. Sabemos que elas compreendem, como guarda, sustentáculo e defesa que são do regime, das instituições, da integridade territorial e soberania nacional. Elas desejam, e realizarão a sustentação destas mesmas instituições e desses mesmos princípios.

Senhores deputados e senhores senadores não posso encerrar essas palavras senão formulando um ardente voto para que Deus nos inspire a todos e particularmente guie, enquanto durar a substituição que se vai fazer, por ausência do vice-presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados, no exercício da presidência da República. De nossa parte, tudo faremos no sentido de auxiliar o país a sair da crise que se engolfou.

Claro, teríamos todos desejado que esta renúncia não se tivesse dado, com os fundamentos que li para os senhores.

Neste instante exato, o Congresso Nacional, por sua acentuada maioria, vinha prestigiando a ação do senhor do presidente Jânio Quadros, principalmente ou particularmente no campo das relações internacionais. A nação saberá e a História escreverá aquilo que tocar a cada um de nós daqui por diante, como aquilo que tocou a cada qual das instituições até aqui. E neste confronto, nesta análise, eu tenho a certeza de que no que diz respeito à defesa do regime, à defesa da ordem, o Congresso brasileiro se manteve à altura da suas responsabilidades constitucionais.

Nada mais existe a tratar e como nenhum dos senhores congressistas deseja fazer o uso da palavra, vou declarar encerrada esta sessão do Congresso Nacional em que, nos termos da Constituição, dei conhecimento do ato de renúncia praticado por sua excelência o senhor presidente Jânio Quadros, ao mandato de presidente da República que vinha exercendo por investidura recebida nas urnas democráticas do nosso país.

Declaro encerrada a presente sessão, pedindo aos senhores parlamentares que se deem à oportunidade de assistir a cerimônia de posse que se vai realizar, às 17h15, no Palácio do Planalto, do senhor presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na presidência da República".



Mazzili assume a presidência



No Palácio do Planalto, às 17h15, o presidente da Câmara Federal deputado Ranieri Mazzilli, assumiu a presidência da República literalmente tutelado pelos três ministros militares, e em seu discurso disse:

"Senhores ministros de Estado, senhores deputados, senhores senadores, minhas senhoras e meus senhores. Por força do dispositivo da Constituição Federal, em virtude da renúncia formal de Sua Excelência o senhor presidente da República, Jânio da Silva Quadros, apresentada ao Congresso Nacional, cumpre, na ausência do senhor vice- presidente, senhor João Goulart, ao presidente da Câmara dos Deputados assumir, nesta eventualidade histórica, a presidência da República.

No cumprimento estrito deste mandamento constitucional, aqui me encontro para assumir as árduas funções da chefia do Estado brasileiro, como presidente da Câmara dos Deputados. Deus é testemunha de que o faço com o pensamento voltado para este bom e grande povo brasileiro, visando, no cumprimento do meu dever, esforçar-me nesta eventualidade para que o Congresso Nacional, presente na chefia da República por mandamento da Constituição, seja efetivamente o representante de toda a nação brasileira, sem quaisquer discriminações. Assumo a presidência da República com a nação sensibilizada pela renúncia do grande brasileiro Jânio Quadros e por isso estarei atento nesta emergência a todos os deveres que me cabe cumprir, religiosamente. A nação, através dos órgãos legítimos de segurança nacional e com o fundamento normal dos órgãos de representação popular, está neste momento assistindo a um ato histórico, é certo, mas de rotina na construção do nosso direito constitucional.

Com o pensamento, portanto, voltado para os altos destinos da nossa pátria, compenetrado de meus altos encargos, neste instante e até que a eventualidade da substituição exija de mim o exercício da primeira magistratura brasileira, estarei no posto com humildade, mas com a firme disposição de manter o regime constitucional e de dar-lhe toda a mesma vitalidade que na Câmara dos Deputados, pelo apoio de meus pares de representação, me tem sido possível caminhar sempre na senda correta das atividades constitucionais. Agradeço aos senhores aos senhores, ministro de negócios da Guerra, ministro da Aeronáutica e ministro da Marinha, representantes autênticos e chefes autorizados de nossas Forças Armadas, a presença de Suas Excelências a este ato, e concito toda a nação a prosseguir no trabalho patriótico e construtivo para que, com paz, possamos fazer o trabalho que todos os brasileiros esperam dos responsáveis pelos destinos nacionais."

Ao término de sua fala, Mazzilli foi cumprimentado pelo único membro do antigo governo que se encontrava presente na posse no Palácio do Planalto, o subchefe da Casa Civil, deputado Araripe Serpa, que respondia naquele momento pela chefia da Casa Civil da presidência da República, vaga pelo pedido de exoneração apresentado pelo antigo titular Quintanilha Ribeiro.

Oscar Pedroso Horta, na mesma noite do dia 25, foi aos estúdios da TV Cultura, canal 2, de São Paulo, então pertencente às Emissoras Associadas, de Assis Chateubriand, para se defender das acusações de Carlos Lacerda, feitas na noite anterior. O ex-ministro fez um longo relato dos acontecimentos, atacando pesadamente o governador carioca, afirmando que ele estava aflito para renunciar, em face das dificuldades financeiras do jornal de sua propriedade. Os moradores do Rio de Janeiro não puderam assistir à transmissão porque foi bloqueada.

Um forte aparato da Aeronáutica, com metralhadoras e fuzis, foi montado em torno da Base Aérea de Cumbica, chegando um advogado paulista a impetrar um Habeas Corpus em favor do ex-presidente por acreditar que ele estivesse prisioneiro. Na realidade, ele próprio havia solicitado o policiamento para não ser importunado.

Na Praça da Sé fortemente policiada, trabalhadores, lideranças sindicais e estudantes realizaram, às 16h, um comício improvisado sobre os bancos da praça, conclamando os operários à greve geral para Jânio voltar ao poder. Os manifestantes chegaram com faixas em que se lia: "Jânio no poder ou sangue vai correr", "Abaixo os traidores", "Paredão para Lacerda". Nenhum incidente foi registrado, e a polícia, atenta, apenas observou.

Terminado o comício, que durou pouco mais de meia hora, os manifestantes, em número reduzido, percorreram várias ruas do centro da cidade, aos gritos do refrão: "Um, dois, três, Lacerda no Xadrez". Ao contrário da inicial tranquilidade em São Paulo, as manifestações realizadas no Rio de Janeiro foram fortemente reprimidas pela polícia do sempre autoritário governador Carlos Lacerda, ocasionando diversos tumultos, e provocando vários feridos.

Após permanecer 22 horas e 45 minutos na Base de Cumbica, Jânio deixou o local, às 12h25, dirigindo uma perua DKV-Vemaguet, placa 2-36, de São Paulo, de propriedade de seu amigo Borges Lins, que estava ao lado, no banco do carona, seguindo para a cidade do Guarujá, em companhia também de sua esposa e de sua mãe. Jânio hospedou-se na casa de seu amigo José Kalil. Atrás vinham o automóvel que transportava Quintanilha Ribeiro, o veículo de Castro Neves, uma viatura da Rádio Patrulha, uma Kombi da Aeronáutica com as malas de Jânio, e outra da Polícia Rodoviária, além de vários veículos da imprensa. Ao passar pelo Vale do Anhangabaú, no centro da capital paulista, Jânio pediu para os jornalistas: "Não me persigam mais! Deixe-me em paz, pois já não sou mais presidente...".

Demonstrando cansaço e visivelmente abatido, proferiu suas primeiras palavras à imprensa no Guarujá, depois de renúncia:

"Fui eleito com os mais solenes e públicos compromissos que alguém já assumiu para com o povo, sobretudo com as camadas mais sofredoras. Asseguro que faria um bom governo. Deus sabe que me esforcei. Contudo, as circunstâncias não me favoreceram. Circunstâncias que, entendi, estavam me impossibiltado de atender aos anseios do povo brasileiro. Não tive duvidas. Preferi sair a desapontar aqueles que creem e lutam por um país rico, poderoso, justo e livre. Agora, pretendo viajar por muito tempo, porque minha permanência não ajuda ninguém. Meu sucessor vai precisar de tranquilidade para enfrentar os problemas da Pátria e eu não pretendo de qualquer forma perturbar a tranquilidade para servir de motivo a discórdias entre os brasileiros. Vou viajar. De volta reabrirei meu escritório de advocacia e retornarei às minhas aulas. Afinal, o que estou fazendo é regressar ao povo".

No mesmo dia, por volta das 18h30, chegou à residência de José Kalil a filha Dirce Maria, conhecida como Tutu, seu marido, o jornalista Alaor Jose Gomes, e a filhinha recém-nascida Ana Paula. Mas Jânio pouco tempo permaneceu na cidade litorânea: na tarde de 28/8, embarcou com destino a Londres, com escalas no Rio de Janeiro, Las Palmas (Ilhas Canárias), Lisboa, e Antuérpia (na Bélgica), no navio inglês da Blue Star Line Uruguay Star, uma embarcação mista, que transportava carga e apenas 53 passageiros, todos em primeira classe. O embarque foi mantido em sigilo até o último instante. Jânio ficou muito emocionado quando um guarda portuário o abraçou chorando. Acompanhado por Pedroso Horta, Araripe Serpa, Quintanilha Ribeiro e Saulo Ramos, em uma lancha da Polícia Marítima seguiu da Base Aérea de Santos, (localizada no Guarujá), para o encontro do navio que estava parado no estuário do canal do porto, aguardando o ilustre passageiro. Sua família havia embarcado pouco antes.



A Assembleia de São Paulo pela legalidade



O presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Estado de São Paulo, deputado Roberto Costa de Abreu Sodré, ao tomar conhecimento da renúncia do presidente Jânio Quadros, convocou os deputados paulistas, e por proposta do deputado Cid Franco, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), foi aprovado que o parlamento permanecesse em sessão permanente, em defesa da legalidade.

Todos os 115 integrantes do Palácio 9 de Julho, então localizado no velho prédio do Parque D. Pedro II, no antigo Palácio das Indústrias, foram unânimes em exigir a posse do vice-presidente João Goulart.

Uma comissão de deputados foi constituída com representantes das diversas bancadas com assento no parlamento paulista, sendo encarregada de redigir um documento dirigido às autoridades do país. Ao presidente da República, foi encaminhado telegrama com o seguinte teor:

"Reunida em sessão permanente pelo consenso unânime de seus membros, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo deliberou transmitir a Vossa Excelência a certeza de que neste momento de vigilância cívica prestigiará todas as medidas preservadoras do pleno exercício dos poderes constituídos e repudiará qualquer ato contrário à continuidade do regime democrático".

Os deputados estaduais de São Paulo lançaram também um manifesto, que foi submetido à apreciação das bancadas e aprovado pela maioria:

"Surpreendida pelos graves acontecimentos que hoje abalaram o país, a Assembleia Legislativa de São Paulo, que se mantém em sessão permanente, decidiu pela unanimidade de seus membros, dirigir ao povo paulista que ela representa a seguinte proclamação:

1) Acima das divergências políticas e ideológicas os deputados paulistas estão unidos na intransigente defesa das instituições democráticas e das franquias constitucionais.

2) Conclama o povo para que, mantendo a serenidade permaneça vigilante ao lado dos seus legítimos representantes, apoiando-lhes a ação junto aos poderes constituídos.

3) Apela, de modo particular às federações e aos sindicatos operários, aos trabalhadores da cidade e do campo, às associações cívicas e religiosas, aos estudantes e à imprensa a fim de unidos defenderemos a Constituição e assim garantirmos os direitos fundamentais inscritos na nossa Carta Magna compatíveis com a dignidade do homem e sem os quais não há democracia.

4) Fiel a esses princípios, repudia toda e qualquer solução para a presente crise que não se inspire nas nossas tradições de liberdade e de respeito à lei e que signifique uma violência ou uma ameaça à Constituição da República."

Na sessão de 28 de agosto, foi colocado em votação e aprovado o seguinte requerimento:

"A Assembleia Legislativa do Estado de Estado de São Paulo, na reiterada demonstração de sua fidelidade à legalidade constitucional, afirma desde os primeiros instantes da crise que abala a nação, ver reafirmar a sua certeza de que o artigo 79 da Constituição Federal será respeitada com a posse do vice-presidente da República senhor João Goulart."



A crise



O deputado do PTB Rui Ramos, do Rio Grande do Sul, foi à tribuna da Câmara dos Deputados denunciar a conversa que teve com o marechal Denys, no qual com todas as letras afirmou que prenderia o vice-presidente caso ele pissase em solo brasileiro.

Ao tomar conhecimento do discurso de Ramos, o marechal Henrique Teixeira Lott, ex-candidato do PSD a presidência da República, fez divulgar um manifesto contra a decisão do ministro da Guerra contrário à posse de João Goulart.

"Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do Senhor Ministro da Guerra, marechal Odylio Denis, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual presidente da República, Sr. João Goulart, entre no exercício de suas funções, e ainda, de detê-lo no momento em que pise o território nacional.

Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho um compromisso de honra com a minha classe, com a minha pátria e as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação.

Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, dos operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que os meus camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria."

O ministro da guerra, marechal Odylio Denys, considerou o manifesto subversivo, e determinou a prisão disciplinar de Lott por trinta dias. Quando o petulante e autoritário coronel Ardovino Barbosa, chefe do policiamento ostensivo do estado da Guanabara, foi por iniciativa própria ao seu apartamento em Copacabana dar-lhe voz de prisão, o marechal Lott recusou em aceitá-la, pela patente de Ardovino que, sem nada poder fazer, foi embora vermelho de raiva. Horas depois, chegou o marechal Nilo Sucupira para cumprir a ordem ministerial, mas o marechal Teixeira Lott, de vida espartana mandou que esperasse, pois como era seu hábito, iria fazer sua ginástica matinal. Ao descer até a rua, foi recebido com aplausos por centenas de populares, que entoaram o Hino Nacional, e foi conduzido preso para a Fortaleza de Laje, localizada num rochedo na entrada da baia da Guanabara, sendo o barco o único meio de ligação com terra. Dias depois, quando da posse de Jango, Lott seria libertado e sua pena anulada pelo novo ministro da Guerra, general João de Segadas Viana.

Não satisfeitos os ministros militares, para a surpresa de todos, no dia 28/8, tutelando o presidente interino Ranieri Mazzilli, o fizeram encaminhar ao Congresso Nacional uma mensagem oficial, notificando do veto a posse do vice João Goulart.

"Excelentíssimo Senhor Presidente do Congresso Nacional:

Tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência que, na apreciação da atual situação criada pela renúncia do presidente Jânio da Silva Quadros, os ministros militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do vice-presidente João Belchior Marques Goulart.

Brasília, em 28 de agosto de 1961.

Ranieri Mazzilli."

Ao ser comunicado no plenário do acintoso documento encaminhado por Mazzilli, o jurista Adauto Lucio Cardoso, apesar de deputado udenista, de oposição, não teve dúvidas em apresentar no mesmo dia 28/8 uma representação denunciando como incursos em crime de responsalidade o presidente em exercício Ranieri Mazzzilli, e os três ministros militares. Serviram como testemunhas no processo, os deputados San Tiago Dantas, Rui Ramos, César Prieto, Almino Afonso e Batista Ramos.

Os ministros da Marinha, da Guerra e da Aeronáutica, não satisfeitos, fizeram questão de lançar dois dias depois, em 30 de agosto, um manifesto contra a posse de João Goulart.



Manifesto dos ministros militares



"No cumprimento de seu dever constitucional de responsáveis pela manutenção da ordem, da lei e das próprias instituições democráticas, as Forças Armadas do Brasil, através da palavra autorizada dos seus ministros, manifestam a Sua Excelência o Sr. presidente da República, como já foi amplamente divulgado, a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao país do vice-presidente, Sr. João Goulart.

Numa inequívoca demonstração de pleno acatamento dos poderes constitucionais, aguardam elas, ante toda uma trama de acusações falsas e distorções propositadas, sempre em silêncio, o pronunciamento solicitado ao Congresso Nacional. Decorridos vários dias, e como sintam o desejo de maiores esclarecimentos por parte da opinião pública, a que inimigos do regime e da ordem buscam desorientar, veem-se constrangidas agora, com a aquiescência do Sr. presidente da República, a vir ressaltar, de público, algumas das muitas razões em que fundamentaram aquele juízo.

Já ao tempo em que exercera o cargo de ministro do Trabalho, o Sr. João Goulart demonstrara, bem às claras, suas tendências ideológicas, incentivando e mesmo promovendo agitações sucessivas e frequentes nos meios sindicais, com objetivos evidentemente políticos e em prejuízo mesmo dos reais interesses de nossas classes trabalhadoras. E não menos verdadeira foi a ampla infiltração que, por essa época, se processou no organismo daquele Ministério, até em pontos-chaves de sua administração, bem como nas organizações sindicais, de ativos e conhecidos agentes do comunismo internacional, além de incontáveis elementos esquerdistas.

No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, movimentações grevistas promovidas por conhecidos agitadores. E inda há pouco, como representante oficial, em viagem à URSS e à China comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao regime desses países exaltando o êxito das comunas populares.

Ora, no quadro de grave tensão internacional em que vive dramaticamente o mundo dos nossos dias, com a comprovada intervenção do comunismo internacional na vida das nações democráticas e, sobretudo, nas mais fracas, avultam, à luz meridiana, os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil, País em busca de uma rápida recuperação econômica, que está exigindo enormes sacrifícios, principalmente das classes mais pobres e humildes; em marcha penosa e árdua para estágio superior de desenvolvimento econômico-social, com tantos e tão urgentes problemas para recuperação, até, de seculares e crescentes injustiças sociais nas cidades e nos campos. Não pode nunca o Brasil enfrentar a dura quadra que estamos atravessando se apoio, proteção e estímulo estiveram a ser dados aos agentes da desordem, da desunião e da anarquia.

Estão as Forças Armadas profundamente convictas de que, a ser assim, teremos desencadeado no país um período inquietador de agitações sobre agitações, de tumultos e mesmo choques sangrentos nas cidades e nos campos, de subversão armada, enfim, através da qual acabarão ruindo as próprias instituições democráticas e, com elas, a justiça, a liberdade, a paz social, todos os mais altos padrões de nossa cultura cristã.

Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade de poder pessoal ao chefe da nação, o Sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em simples milícias comunistas.

Arrostamos, pois, o vendaval, já esperado, das intrigas e das acusações mais despudoradas, para dizer a verdade tal como é, ao Congresso dos representantes do povo e, agora, ao próprio povo brasileiro.

As Forças Armadas estão certas da compreensão do povo cristão, ordeiro e patriota do Brasil. E permanecerão, serenas e decididas, na manutenção da ordem pública.

Rio de Janeiro, GB, 30 de agosto de 1961.

A) Vice-Almirante Sylvio Heck, Ministro da Marinha; Marechal Odylio Denys, Ministro da Guerra; Brigadeiro-do-Ar Gabriel Grün Moss, Ministro da Aeronáutica."



Brizola e a rede da legalidade



Ao ter conhecimento da renúncia de Jânio Quadros, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, tentou falar com o ex-presidente, que estava na Base Aérea de Cumbica, para dizer-lhe que fosse a Porto Alegre, pois ofereceria garantias a sua permanêcia no poder, acreditando até então que Quadros havia sido forçado a deixar o governo, vítima de um golpe. Ao tormar conhecimento que tinha sido por vontade própria, viu que nada mais poderia fazer, ao não ser aguardar que o vice-presidente da República João Goulart, seu cunhado, assumisse a chefia da nação.

No dia seguinte, dia 27/8, ao tomar conhecimento da intenção dos ministros militares de não permitir a posse do vice-presidente, Brizola reagiu. A partir daquele momento passou a dirigir todo o protesto, reivindicando a posse do vice-presidente. Tomou todas as medidas que cabia ao Estado em matéria de mobilização para assegurar a ordem pública. Comunicou-se com o comandante do III Exército, general José Machado Lopes, sediado em Porto Alegre, dizendo que, diante da situação que ele também sabia, cabia ao Estado tomar todas as providências para resguardar a ordem pública. E que somente quando não pudessem resguardar a ordem pública, pediria então cobertura e a colaboração das forças federais. O general concordou e o governador gaúcho passou a tomar todas as providências. Mobilizando todo o armamento disponível, preparou para uma resistência.

Brizola lembraria em depoimento "que havia sentido que o Brasil inteiro fechou. Todos os demais Estados submeteram-se à junta militar, com exceção do govenador de Goiás, Mauro Borges. No Rio de Janeiro, o governador Lacerda desencadeou a repressão. Em São Paulo, também houve omissão por parte do governador Carvalho Pinto e desencadeou-se a repressão. O mesmo em Minas. E procurei contato com todos os generais e chefes militares que eu consegui, direta ou indiretamente. Foi, aliás, neste momento que eu tive um diálogo muito duro com o general Costa e Silva, que comandava o IV Exército no Recife. Eu lhe digo, em suma, que foi um movimento muito espontâneo, muito natural, que foi crescendo; procuramos usar de todos os meios possíveis, particularmente os meios de comunicação, o que foi a nossa salvação. Conseguimos informar não apenas a opinião pública do Estado e do país, quer dizer, ganhamos aquela luta essencialmente como uma batalha de opinião pública, como também conseguimos informar aos próprios militares, ao ponto que a junta militar que ocupou o governo dava ordens para uma unidade militar marchar contra o sul e eram os próprios oficiais que se reuniam e decidiam recusar a ordem.".

O comandante do III Exército passou um rádio ao ministro da Guerra, marechall Odylio Denys, informando sobre a atitude do governador do Rio Grande do Sul:

"Governador Brizola declarou-me resistirá contra ação impeça posse Joao Goulart. Coordena ação nesse sentido. Tenho percebido grande número de oficiais ideia ser mantindo princípio constituccional, inclusive comandante 3º DI e 1º DC. Todas unidades cumprindo ordens manutenção ordem pública. Situação tensa porém calma todo III Exército."

No mesmo dia, o ninistro Denys enviou uma mensagem ao general Machado Lopes:

"Elementos comunistas Congresso estão pertubando encontro solução crise decorrente renúncia presidente. Marechall Lottt envolvido por tais agitadores lançou manifesto subversivo forçando ministro Guerra determinar sua prisão. Ministro pretende defender instituições e manter a lei e a ordem em todo País, mesmo que para isso tenha que impedir posse Jango. Conveniente chamar e reter qualquer pretexto comandante 3º DI e 1ª DC Porto Alegre."

Lopes respondeu:

"Entendido. Vou providenciar. Situação Porto Alegre muito tensa. Governador Brizola organizou defesa palácio e parece ter distribuído civis seus adeptos. Estou vigilante manuntenção ordem. Seria de todo conveniente encontrar solução legal. (a) General Machado Lopes, comandante do III Exército."

Na madrugada do domingo, 27/8, o governador Leonel Brizola pronunciou, através das rádios Farroupilha e Guaíba, as palavras que definiram a sua intenção de resistir e reagir, à bala, se fosse preciso. Daí por diante, os acontecimentos se sucederam em ritmo acelerado. De repente, o Rio Grande do Sul transformou-se no centro de resistência às ordens e vetos dos três ministros militares. Logo depois, o ministro da Guerra mandou lacrar os cristais de várias emissoras de Porto Alegre. O governador resolveu requisitar uma rádio, para poder falar ao povo. Foi escolhida a Rádio Guaíba, cuja torre de transmissão ficava na Ilha da Pintada. Os transmissores foram instalados no Palácio Piratini, sede do governo estadual, na sala de imprensa. A Rádio Guaíba lideraria uma rede composta de todas as emissoras gaúchas. Era a Cadeia da Legalidade, que passou a transmitir mensagens do governador Brizola e noticiário de todo o país.

Para o Rio Grande do Sul seguiram centenas de milhares de brasileiros, conclamados pelas palavras do governador Leonel Brizola, que mandou ocupar militarmente estações emissoras da rádio Farroupilha e da Guaíba e o prédio da Companhia Telefônica. Controlou o movimento da companhia aérea Varig, requisitou da fábrica Taurus três mil revólveres calibre 38, estabeleceu um posto de recrutamento de populares no pavilhão da Avenida Borges de Medeiros, conhecido como "mata borrão", onde foi distribuído o armamento, e cercou o Palácio Piratini com trincheiras ocupadas, em parte, por civis armados pelo próprio governo do estado.

As ordens do ministro da Guerra para o comandante do III Exército era de atacar a sede do governo gaúcho, inclusive com o auxílio de aviões da força aérea que deveriam bombardear o Palácio Piratini, e, segundo denúncia do deputado Rui Ramos na tribuna da Câmara Federal, as instruções incluíam o assassinato de Leonel Brizola.

O general Machado Lopes resolveu não cumprir as ordens do marechal Denys, e aderiu ao movimento pela posse de João Goulart, colocando-se ao lado de Brizola pela legalidade. A reação do marechal foi destituir Machado Lopes do comando militar e nomear para seu lugar o general Oswaldo Cordeiro de Farias. A resposta do comandante do III Exército ao ministro da Guerra foi afirmar que, se Cordeiro viesse ao Rio Grande do Sul, seria preso. Várias guarnições militares, como o 2º Batalhão de Caçadores, sediado na cidade de Santos, o 11º Regimento de Infantaria de São João Del Rei, em Minas Gerais, o 2ª Grupo de Canhões Antiaéreos, aquartelado em Barueri, em São Paulo, se recusaram a cumprir ordens de descolarem para o Sul para atacar as tropas gaúchas.



*Antônio Sérgio Ribeiro é advogado e pesquisador. É diretor do Departamento de Documentação e Informação da Assembleia Legislativa

alesp