O HOSPITAL DE LÁZAROS DA IMPERIAL CIDADE DE SÃO PAULO E A ASSEMBLÉIA PROVINCIAL


23/07/2004 14:52

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Imagem tomada na década de 1920, mostrando um acampamento de hansenianos.<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/lepra.acampamento foto.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Divisão de Acervo Histórico

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As Assembléias Legislativas Provinciais, por determinação da Constituição do Império do Brasil de 1824, reformada em 1834, tinham um rígido controle sobre a vida dos municípios. Aos corpos legislativos provinciais competia, entre outras atribuições, legislar sobre os casos e a forma por que podia ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial; poder sobre a política e economia municipal, precedendo propostas das câmaras; fixar das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários. Este acúmulo de prerrogativas referentes aos municípios fazia com que as leis municipais, as chamadas "posturas", somente entrassem em vigor depois de aprovadas pela Assembléia Provincial. Isto explica a razão pela qual há uma grande profusão de documentos referentes à história dos municípios na Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e que vale a pena ser consultada pelos pesquisadores e interessados na história dos municípios paulistas.

Além do controle sobre a vida de todos os municípios, o fato de ser a Capital da Província fazia com que a Assembléia Legislativa Provincial também se ocupasse em atuar no melhoramento da Imperial Cidade de São Paulo, pelas razões que sua Câmara Municipal fazia questão de ressaltar, em um ofício enviado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, em 4 de março de 1875:

"Todas as províncias, mais ou menos, auxiliam as municipalidades de suas Capitais por motivos óbvios: é pelo estado de adiantamento, pelos melhoramentos que se observam na sede do governo provincial que se faz idéia do estado de prosperidade ou pobreza de uma província".

Malditos

A professora alemã Ina von Binzer, contratada pela família do fazendeiro e advogado Bento de Aguiar Barros para a educação de seus filhos, narrou em uma de suas cartas, datada de 27 de outubro de 1882, um encontro que muito a marcou. Em seus passeios avistou escravos, isolados ou em grupos, trajando roupas sujas e esfarrapadas, com grossas ataduras recobrindo partes de seus corpos, com cabelo desgrenhado e barba emaranha e comprida, arrastando-se apoiados em bastões e mendigando. Confinados ou vivendo em colônias afastadas, viviam da caridade da população. Eram os hansenianos, então chamados de morféticos, lázaros ou leprosos:

"É horrivelmente triste e comovente pensar nesse agrupamento de párias, isolados do resto do mundo pela desgraça comum, irmanados pelo sofrimento e auxiliando-se mutuamente como samaritanos atingidos pela mesma maldição."

A hanseníase, conhecida desde a Antigüidade, propagou-se a partir do Oriente Médio, foco endêmico da doença e, até a década de 1940, como não havia cura (o que só foi possível com o advento das sulfonas), apenas procedia-se ao confinamento dos acometidos até que a doença os consumisse. Os abrigos para hansenianos surgiram por inspiração da Igreja Católica, para acolher os milhares de doentes acometidos pela moléstia, que, expulsos de suas comunidades, vagavam mendigando pelas estradas ou se estabeleciam em acampamentos à beira dos caminhos de peregrinação aos santuários mais famosos. A palavra lazareto, significando lugar onde se recolhiam hansenianos, tem sua origem no personagem bíblico Lázaro, um pobre coberto de úlceras. Todavia, associa-se a ela o nome de São Lázaro, o protetor dos hansenianos. No século IX, surgiram os primeiros lazaretos em Portugal. Já no século XII, estima-se que havia 19.000 lazaretos por toda a Cristandade.

No continente americano não existia a hanseníase, tendo ela sido para cá trazida pelos europeus e africanos.

As primeiras menções à doença documentadas em São Paulo ocorreram apenas no século XVIII, embora seja lícito supor que houvesse casos antes desta data, mas, talvez pela baixa incidência, acredita-se que não se constituísse em um problema social de maior monta. No final desse século a doença tomou formas mais preocupantes, pois, segundo testemunhos, não havia rua ou praça onde não se encontrassem "leprosos miseráveis", nem curso de água ou fonte em que eles não se banhassem. Foi indicativa de tal estado de coisas a aprovação, pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, de uma pequena verba mensal a ser destinada aos lázaros, para que se tratassem em casa em vez de mendigarem pelas ruas.

Casa para confinados

Em 1802, o governador da Capitania de São Paulo, o Capitão-General Antônio José de Franca e Horta, e também Provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, tomou a iniciativa de instalar um lazareto na Cidade de São Paulo. Adquiriu um terreno perto do Convento da Luz, doando-o à Santa Casa. Com recursos oriundos de uma subscrição pública, ali se edificou uma casa para serem confinados os doentes que perambulavam pela Cidade, conhecida desde então como o Hospital de Lázaros. Este Hospital também foi beneficiado por outra determinação de Horta, que buscou abolir um costume da época. O governador da Capitania, em 1810, determinou que as mulheres fossem proibidas de andar ocultas com chapéus sobre baetas (traje que era quase uma espécie de xador muçulmano) e o produto das multas seria aplicado em favor do Hospital dos Lázaros. Tal vestimenta deixou de ser usada, mas foi substituída pelas mantilhas - uso que perdurou quase até o final do século XIX.

Relatórios da época assim descreviam o Hospital de Lázaros, situado à rua João Teodoro:

"É uma casa, que nem é forrada, nem assoalhada, com dois grandes corredores divididos por uma parede, e em um destes corredores existem os homens, em outro as mulheres. Alguns quartos há separados, mas são só do lado dos homens, de maneira que as mulheres se não podem aproveitar deste cômodo. Não há ali um Cirurgião, não há um Eclesiástico..."

Ali trabalhavam uma cozinheira, um zelador, que por vezes era chamado de enfermeiro, e ocasionalmente um servente, e o médico só fazia visitas semanais.

Este lazareto, como era de se esperar, teve uma existência precária em razão de não ter conseguido obter uma fonte de recursos estável.

A Assembléia Provincial

A Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, pelo Ato Adicional de 1834, obteve a prerrogativa de receber a sujeição das irmandades religiosas paulistas ao governo, já que, como se sabe, a Igreja Católica foi a religião oficial do Estado brasileiro até 1889. Por isso, a Assembléia decretou a Lei nº 2, de 9 de Fevereiro de 1836, na qual era aprovado o Compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Nele, definia-se que a Santa Casa seria administrada por uma Mesa, que tinha entre seus componentes o Mordomo do Hospital dos Lázaros, a quem competia zelar pela sua administração econômica e regularidade. O compromisso também estabelecia que todas as esmolas recolhidas pelos Esmoleres da Santa Casa seriam aplicadas para a manutenção do Hospital dos Lázaros. Também aqui é importante observar que não havia na época uma rede pública de saúde e que este serviço era prestado à população dos municípios por instituições religiosas, como a Santa Casa, ou laicas - daí a destinação de recursos por meio do Orçamento da Província ou, então, pela concessão de loterias para tais entidades, além de sua manutenção, como se viu acima, pela caridade pública.

Na mensagem apresentada pelo Presidente da Província, Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, à Assembléia Legislativa Provincial, em 7 de janeiro de 1837, no capítulo referente à saúde pública, tratava-se do flagelo das moléstias que acometiam São Paulo. Peixoto assim se referiu à hanseníase:

"Parece, contudo, conveniente acautelar o progresso do mal de Lázaro, que vai grassando principalmente nas Vilas do Norte (como eram chamadas as cidades que ficavam no caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro), nas quais as pessoas infectadas vivem mendigando pelas estradas e em continuada e perigosa comunicação com os povos. Alguns enfermos têm sido remetidos para o Hospital que a Santa Casa de Misericórdia desta cidade mantém, quando se dá o caso de haver algum juiz da paz zeloso do bem público, mas quase todos têm fugido e se dirigido para os mesmos lugares, nos quais não são mais inquietados e seguem a vida errante a que estão habituados. Outros, porém, que possuem pequenos meios de subsistência, não se querem sujeitar a uma vida resguardada de comunicação com o povo".

Fracasso do projeto

Em atenção ao alerta dado pelo Presidente da Província, a Assembléia Provincial, por sua Comissão de Constituição, Justiça e Força Policial, composta pelos deputados Antônio Mariano de Azevedo Marques, Antônio Dias de Toledo e Rodrigo Antônio Monteiro de Barros, apresentou um projeto de lei, de nº 33 de 1837, no qual se autorizava o Presidente da Província a construir Hospitais de Lázaros "nos pontos mais centrais de cada uma das estradas do interior da Província, e um pouco fora das povoações", solicitando os "indispensáveis socorros pecuniários" das Associações Religiosas de Caridade e de entidades filantrópicas particulares. O projeto nº 33/1837 também determinava que, construídos os hospitais, as autoridades policiais de todos os municípios tinham a obrigação de remeterem os doentes, os quais seriam tratados às suas custas, para os que tivessem mais recursos, ou, então, com os recursos das rendas do hospital para os pobres. Também estabelecia que os escravos seriam "tratados à custa dos senhores, ainda que estes lhe tenham conferido a liberdade". Por fim, em seu quarto e último artigo, determinava-se que: "Fica recomendado às ditas autoridades o emprego de toda a delicadeza, doçura e caridade, para que a dita remessa se faça com o menor vexame dos pacientes e com o segredo e cautelas que exigirem os mesmos".

Em seu discurso de encerramento da sessão legislativa de 1837, feito em 11 de março de 1837, o presidente da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, o Senador e Deputado Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, anunciou a aprovação do projeto nº 33/1837. No entanto, ele acabou não sendo sancionado, muito provavelmente em razão de os recursos para a sua construção não serem provenientes do Orçamento e também, o que talvez fosse a principal causa, pela determinação de que competia aos senhores de escravos as custas do tratamento dos escravos enfermos. Neste último caso, dado o fato de que não havia cura para a hanseníase, era prática corrente os escravos serem libertos pelos seus senhores para que estes não arcassem com as custas.

Visitando São Paulo naquela época, o viajante norte-americano Daniel Parish Kidder informou que, em 1839, havia 26 pacientes no Hospital dos Lázaros paulistano. Kidder também dizia que os hansenianos não suportavam o isolamento e as precárias condições vividas no Hospital e que, por isso, ameaçavam sempre dali fugir para viver da caridade pública à beira dos caminhos.

De 1848 a 1933

Em 1848, a Assembléia autorizou, através da Lei nº 8, de 18 de Setembro, a concessão de subsídios aos doentes pobres que fossem remetidos a Itapetininga para ali serem tratados. Em 1851, realizou-se um censo na Província que constatou a existência de 849 hansenianos, dos quais poucos aceitavam o confinamento. Em 1855, a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo aceitou um oferecimento da recém-constituída Irmandade de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista para cuidar do Hospital dos Lázaros, mediante um auxílio a ser concedido pela Santa Casa, além da utilização do prédio, até que a Irmandade construísse o seu próprio edifício. Neste mesmo ano, a Assembléia Provincial, por intermédio da Lei nº 27, de 18 de abril, autorizou o Governo a edificar um "lazareto para duzentos morféticos mendigos na fazenda nacional de Santana, ou onde entender melhor" e, em 1857, aprovou a planta apresentada para a edificação e chegou a destinar recursos para as obras. Tudo isso, no entanto, não foi além do papel e nada se fez, mantendo-se a precária situação do Hospital dos Lázaros.

Em 1848, a Assembléia Provincial, através da Lei Provincial nº 12, de 18 de setembro, impôs ao Hospital de Lázaros de Itu a obrigação de receber os hansenianos de outros municípios, até como forma de desafogar o da Imperial Cidade de São Paulo.

Em 1864, inspirado em um semelhante que havia sido aprovado para o lazareto de Itu, a Assembléia Provincial examinou e aprovou uma proposta de regulamento para o Asilo de Morféticos de Campinas e que se transformou na Resolução nº 41, de 4 de Abril de 1865. É interessante ver algumas de suas determinações, por meio das quais se pode perceber a rotina de funcionamento destes estabelecimentos, inclusive o da Capital. O Regulamento do Asilo de Campinas determinava que a sua direção fosse confiada ao presidente da Câmara Municipal ou outra pessoa por este nomeada, que recebia o cargo de Zelador.

A administração da instituição caberia ao ecônomo, cargo laico que correspondia ao mordomo das irmandades religiosas. Ao ecônomo cabia visitar o Asilo diariamente e distribuir, com ajuda dos próprios hansenianos, "as rações conforme as ordens do zelador, a quem obedecerá em tudo". O regulamento definia que as "rações" seriam compostas de lenha, carne seca, farinha de mandioca, feijão, toucinho, açúcar redondo, erva mate e fumo, além de serem fornecidos aos doentes "esteiras, cobertores, vestuário de pouco valor, bem como medicamentos, louça e o vasilhame indispensável". Cabia também ao ecônomo fazer "diligência de instruir os morféticos na doutrina cristã". Aos doentes bem comportados o regulamento previa uma melhoria nas rações e a possibilidade de cultivarem hortaliças no terreno do Asilo.

Penas disciplinares

Por outro lado, aos "morféticos insubordinados" o zelador podia impor "penas disciplinares à sua discrição" e, em último caso, expulsá-los do Asilo, "dando-lhes os meios de subsistência até transporem as raias do município". Ao zelador também competia nomear um esmoleiro, que tinha como obrigação "solicitar semanalmente de casa em cãs na cidade as esmolas para a manutenção do Asilo".

Em um parecer, conservado nos arquivos do Legislativo Paulista, sobre o estado e necessidades do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, do Hospício dos Alienados e do Hospital dos Lázaros, datado de 28 de Janeiro de 1870, os médicos Gustavo Balduíno de Moura e Câmara, Luís Lopes Baptista dos Anjos e Pedro Ramos Borges de Lemos assim descriam a situação do lazareto paulistano:

"A fundação destes estabelecimentos, data da Idade Média, que são principalmente dedicados ao curativo de lepras, com o nome de Lazaretos, e sob a invocação de São Lázaro. A Capital de São Paulo devia fundar um Hospital para esse fim, visto como é imenso o número de afetados dessa terrível enfermidade. Há na estrada do Pary uma casa velha, entregue a três homens e cinco mulheres contaminados desse mal. Se a isso se quiser chamar Hospital, então teremos Hospitais por todas as estradas onde se encontram acampamentos extensos ocupados por essa pobre gente. Montado para esse fim um edifício espaçoso estamos certos que seria logo [...] desses infelizes, se o tratamento fosse usado de acordo com os preceitos de moralidade, caridade e princípios práticos da ciência médica especial. Nada mais há que dizer e fazemos votos para que se humanize a sorte dessa gente e se [...] os recursos que a ciência aconselha em casos tais."

Em 1869, a Assembléia Legislativa Provincial, por meio da Resolução nº 63, de 3 de Agosto, concedeu a realização de uma loteria para a fundação de um lazareto em Sorocaba, o qual ficaria a cargo da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba.

Loteria

Assembléia Provincial estabeleceu, através da Lei nº 80, de 3 de abril de 1876, uma loteria em benefício do Hospital de Lázaros da Capital.

Mas a situação não conseguiu ser solucionada. Em 1878, em seu relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial, o chefe de polícia, Joaquim de Toledo Pisa e Almeida, fez um desalentador retrato da gestão do Hospital dos Lázaros pela Irmandade de Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, o que fez com que no ano seguinte o Hospital voltasse às mãos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

No entanto, a mudança de administração não lhe propiciou uma melhoria significativa. Em 1884, a Santa Casa pensou em transferi-lo para seu novo hospital, em Santa Cecília, mas acabou ficando na rua João Teodoro e sofrendo alguns melhoramentos em sua estrutura. Ali permaneceu até março de 1904, quando, premido pelo intenso povoamento que se deu à sua volta foi demolido e os seus internos transferidos para uma chácara que a Santa Casa adquirira no Bairro do Guapira (no Jaçanã). Aí permaneceu até agosto de 1928, quando seus então 400 pacientes foram transferidos para o Leprosário de Santo Ângelo. Este lazareto foi construído a partir de uma campanha desencadeada pela Associação Protetora dos Morféticos de São Paulo, presidida por Mathilde Melchert da Fonseca de Macedo Soares, esposa de José Carlos de Macedo Soares, então mordomo dos Lázaros da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, também contando com o decisivo apoio do médico Emílio Ribas. A Associação comprou o terreno em Santo Ângelo (situado a quatro quilômetros da estação com o mesmo nome - hoje chamada de Jundiapeba, no município de Mogi das Cruzes - da então Estrada de Ferro Central do Brasil) e o doou à Santa Casa em 1917. Dois anos depois, com o apoio do governo estadual, iniciou-se a construção do edifício, que foi inaugurado, sob administração da Santa Casa, em 3 de Maio de 1928, recebendo os pacientes do Hospital do Guapira. Em 1933, por fim, o Leprosário de Santo Ângelo foi anexado à Inspetoria de Lepra do Estado de São Paulo.

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