Carlos Drummond de Andrade - Técnica e psicologia da composição*


29/10/2002 19:08

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DA REDAÇÃO

Quando, em 1948, foi publicado o livro Poesia até agora, Carlos Drummond de Andrade, nos primeiros versos dos Novos poemas, revelaria:

Aprendi novas palavras

e tornei outras mais belas.

apontando com eles características que teria incorporado à sua obra nessa fase.

As raízes dessa poesia, cujo exemplo mais importante está em "Aliança", poderão ser encontradas, nos seus primeiros livros, em poemas como "Sol de vidro", e, em outros, numa certa adjetivação perdida neste ou naquele verso. Mas a técnica empregada só começa a se estruturar em composições de A rosa do povo: "O elefante", "Campo, chinês e sono" e "Áporo", este principalmente.

Carlos Drummond de Andrade passara a adotar, no tratamento da linguagem, aquela conceituação que legara às gerações pós-modernistas nestes versos:

Não faças versos sobre acontecimentos.

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Penetra surdamente no reino das palavras.

Sem dúvida, uma das fontes em que a geração de 45 encontrou o sumo de sua técnica poética.

Em "Aliança", com efeito, acha-se o leitor diante de um poeta em certo sentido diferente, pela integração, em sua poesia, de novos processos encantatórios: recursos semânticos, palavras de significado abstrato, adjetivação rara. Sem mudar a organização rítmica, trazia uma nova contribuição: a ambiguidade da linguagem.

Deitado no chão. Estátua

enrodilhada, viaja

ou dorme, enquanto componho

o que já se si repele

arte de composição.

...................................

...Enquanto prossigo

tecendo fios de nada

moldando potes de pura

água, loucas estruturas

do vago mais vago, vago.

Oh que duro duro duro

ofício de se exprimir!

A poética de então é bem diversa daquela esboçada em Alguma poesia, no poema "Explicação", que Drummond, assim se pode dizer, já condenara quanto ao conteúdo ao comentar as transformações havidas desde Sentimento do mundo, e que, vinte anos depois, expurgava de sua consideração de artesão.

Não teria havido, em verdade, um golpe repentino, um despertar outro poeta, diferente do que fora na véspera. Houve, sim, uma evolução, quase livro a livro.

Os conceitos encontrados no poema "Explicação", cuja síntese é a afirmativa de seu verso

às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota.

já haviam sido negados em "O lutador", quando, na sua procura da palavra, diz:

Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.

Ser-lhes-ei escravo

de rara humildade.

Passo a passo, o poeta chega àquela convicção externada em "Procura de poesia":

Chega mais perto e contempla as palavras

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra.

E descoberta mais essa face da tessitura poética, ele passa a se realizar com palavras de melodia até então incomum na sua poesia, sem a mesma rudeza das imagens, ocultando, hermeticamente, o que antes teria dito - pois era outra a linguagem - com maior clareza.

*Emanuel de Moraes in Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp. XIX-XXI.



VIDA VIDINHA

A solteirona e seu pé de begônia

a solteirona e seu gato cinzento

a solteirona e seu bolo de amêndoas

a solteirona e sua renda de bilro

a solteirona e seu jornal de modas

a solteirona e seu livro de missa

a solteirona e seu armário fechado

a solteirona e sua janela

a solteirona e seu olhar vazio

a solteirona e seus bandós grisalhos

a solteirona e seu bandolim

a solteirona e seu noivo-retrato

a solteirona e seu tempo infinito

a solteirona e seu travesseiro

ardente, molhado

de soluços.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, em um volume. 7ª ed. - Aparecida, Editora Nova Aguilar, 1992, pp.608-609.

alesp