O matadouro paulistano e o Legislativo paulista no século XIX

Divisão de Acervo Histórico
29/09/2004 16:09

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Em imagem de 1905 vê-se o Tendal do Largo da Glória (autor desconhecido).<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/MATADOURO.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> A estação de Vila Mariana da linha de carris de São Paulo a Santo Amaro (Arquivo da Eletropaulo).<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/MATADOUROVILA MARIANA.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Nesta imagem de 1912, de autoria de Aurélio Becherini, pode-se ver os carroceiros responsáveis pelo transporte da carne na cidade de São Paulo diante do prédio do Matadouro da Vila Clementino.<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/MATADOURO. CARROCEIROS.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

O ex-deputado provincial paulista José Luís de Almeida Nogueira, em uma de suas crônicas sobre a Academia de Direito de São Paulo reunidas em nove alentados volumes, nos conta que as refeições dos paulistanos eram assim feitas: entre oito e nove horas o almoço; entre 14 e 15, o jantar, e à noite a ceia. E detalhava a composição da mesa de uma república de estudantes, que classificava de modesta:

"Ao almoço, o clássico picadinho, ovos estrelados, arroz, chá de cartucho, pão e manteiga; ao jantar, sopa (que só então começava a generalizar-se), o pátrio feijão, arroz, um prato de ensopado e outro de carne frita ou assada. Por sobremesa, café. Nas repúblicas fidalgas serviam-se doces, a saber - melado, banana frita ou batata em calda [...]. Ceia: chá com pão e manteiga."

Aliás, Almeida Nogueira deixou a receita do "picadinho de estudante", tal como ele era preparado por volta de 1870, à moda de "Tia Silvana", e que vale a pena aqui reproduzirmos:

"Toma-se um quilo de alcatra ou filet, carne de 1a, lava-se, enxuga-se bem, bate-se, corta-se em pedacinhos pouco maiores que um dado; refoga-se com cebola picada; deita-se-lhe depois um copo de água quente, um bouquet de cebolas em rama, salsa e uma folha de louro; ajuntam-se alguns pedacinhos de toucinho fresco, sal e pimenta, e deixa-se ferver a fogo brando até que a carne fique bem cozida, tendo-se o cuidado de aumentar a água, sempre que venha a secar. Ajunte-se em tempo batata picada, que não deve ficar muito cozida. Nada de engrossar o caldo; ao contrário, deve ser abundante e bastante aquoso. Serve-se em prato de tampa."

Saúde pública

Almeida Nogueira conta que o caldo do picadinho era o melhor da festa: "Os estudantes mineiros comiam-no com farinha, e os rio-grandenses também; os fluminenses, com pão; e os paulistas e paulistanos, com arroz. Alguns bebiam-no com colher".

Por trás deste retrato de uma faceta da alimentação paulistana no século XIX figuravam as questões do abastecimento e a da saúde públicas e que tinham sua síntese na instituição do Matadouro. A este competia receber os animais, examiná-los e proceder ao seu abate e distribuir a carne para sua comercialização e consumo. A sua existência não pode, também, ser dissociada do crescimento populacional da Imperial Cidade de São Paulo, a qual, embora ainda abrigasse chácaras afastadas do Centro que criavam e abatiam seus próprios animais para consumo de carne, tinha de constituir uma estrutura capaz de dar conta de abastecer seus moradores e evitar problemas de saúde pública.

A Assembléia Provincial

As Assembléias Provinciais, por determinação da Constituição do Império do Brasil, reformada em 1834, tinham um rígido controle sobre a vida dos municípios. Aos corpos legislativos provinciais competia, entre outras atribuições, legislar sobre os casos e a forma por que podia ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial; sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das câmaras; sobre a fixação das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários. Este acúmulo de prerrogativas referentes aos municípios fazia com que as leis municipais, as chamadas "posturas", somente entrassem em vigor depois de aprovadas pela Assembléia Legislativa. Isto explica a razão pela qual há uma grande profusão de documentos referentes à história dos municípios na Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e que vale a pena ser consultada pelos pesquisadores e interessados no tema.

Além desse controle que tinha sobre a vida de todos os municípios, o fato de ser a Capital da Província fazia com que a Assembléia Legislativa Provincial também se ocupasse em atuar no melhoramento da Imperial Cidade de São Paulo, pelas razões que sua Câmara Municipal fazia questão de destacar, em um ofício enviado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo em 4 de março de 1875:

"Todas as províncias, mais ou menos, auxiliam as municipalidades de suas Capitais por motivos óbvios: é pelo estado de adiantamento, pelos melhoramentos que se observam na sede do governo provincial que se faz idéia do estado de prosperidade ou pobreza de uma província."

O Matadouro

Quando a Assembléia Legislativa Provincial iniciou o seu funcionamento, em 1835, a Imperial Cidade de São Paulo já possuía uma matadouro, que ficava situado na rua Santo Amaro, nas proximidades da rua Jacareí. Mas já naquela época revelava-se insuficiente para as necessidades da Cidade. Tanto era assim que o deputado provincial paulista Francisco José de Lima, em 1840, propôs um projeto de lei para a construção de um novo matadouro.

No entanto, a iniciativa não prosperou, pois, como assinalou o deputado Joaquim Octávio Nébias em parecer dado pela Comissão de Constituição e Justiça em 10 de fevereiro de 1841, era necessário que o projeto fosse precedido por proposta da Câmara Municipal de São Paulo, o que não ocorrera então.

Tal solicitação acabou apresentada à Assembléia Legislativa Provincial pela Câmara Municipal em 1845, acompanhada de um orçamento para a construção de um novo prédio feito pelo engenheiro civil Carl Abraham Bresser. Nela afirmava-se ser a "construção de um Matadouro Público de suma necessidade, visto o mau estado e impropriedade do local que existe atualmente, o que informa pelo imediato exame".

Carência

Além de informar a carência de recursos próprios para a construção do edifício, indicava a existência de um local que a Câmara Municipal considerava ideal para tal: "do lado além do Córrego junto ao curtume do Capitão Joaquim Rodrigues". Concluía o documento, preservado nos arquivos do Legislativo Paulista, com um apelo aos deputados paulistas: "que sem o socorro dos Cofres Provinciais não é possível que o Município consiga um Matadouro, como deve existir na Capital d'uma Província já tão civilizada como esta".

Foi somente em 1848, através da Lei Provincial nº 5, de 6 de Setembro, que se concedeu à Câmara Municipal um empréstimo de dez contos de réis para a construção do Matadouro pelo projeto elaborado pelo engenheiro Bresser. Esta iniciativa se deu em razão do reconhecimento do Legislativo Paulista da "necessidade de se fazer um matadouro público decente, o qual, no sentido higiênico, não só livre a Cidade dos miasmas que atualmente sofre com o velho matadouro, mas também onde o gado tratado, morto, e cortado com as regras próprias ofereça um alimento sadio, e a carne fique livre da asquerosa vista que tem atualmente, por ser mal sangrada, pisada, e suja; e igualmente convém que tal estabelecimento mostre e prove o zelo da municipalidade, e que esta Assembléia olha para os interesses da Capital da Província", como afirmava o parecer assinado pelas Comissões reunidas de Obras Públicas e Fazenda, datado de 19 de agosto de 1848.

Aprovado o empréstimo, a Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo mandou colocar em hasta pública a construção do Matadouro, a qual foi arrematada por Achilles Martin d'Estadens, pela quantia de doze contos oitocentos e trinta e quatro mil réis. Celebrado o contrato em 30 de abril de 1851, iniciou-se a obra, a qual foi concluída em 1852.

Localização problemática

O novo Matadouro foi edificado em uma baixada, na Liberdade entre as ruas Pitangui [hoje não mais existente] e Humaitá, nas cabeceiras do córrego Anhangabaú (fundo da avenida 23 de Maio), não muito longe do antigo prédio, o qual foi leiloado em 1853 e arrematado por Vicente de Sousa Queiroz, o futuro Barão de Limeira, e posteriormente doado em 1877 à Província para construção de uma escola.

A localização do novo Matadouro revelou-se, com o passar dos anos, problemática. O aumento da população paulistana provocou, como conseqüência, um crescimento no abate dos animais, o que tornou insuficiente o espaço para a demanda. Como afirmava um ofício de 14 de Abril de 1886, dirigido pela Câmara Municipal à Assembléia Provincial, o Matadouro "não se presta a esse mister visto o crescido número de reses que diariamente ali se abatem e a ser de espaço acanhado e além disso traz para a Cidade os resíduos do mesmo". Estes eram despejados no rio Anhangabaú, poluindo-o e exalando, em determinadas horas, um cheiro insuportável. Em 1º de março de 1870 um grupo de seis médicos, à frente o doutor Alfredo Ellis, futuro parlamentar paulista, reiterando o posicionamento anterior de outros nove, enviou um abaixo-assinado, guardado entre os papéis da Divisão de Acervo Histórico, à Assembléia Legislativa Provincial pedindo a mudança do Matadouro. No documento afirmavam que o sangue do matadouro que percorria o rio Anhangabaú era um "foco de doenças miasmáticas", além de ser a causa de "muitas moléstias de fígado, baço, estômago".

Empréstimo

Fundada nos pareceres médicos, a Assembléia Provincial Paulista aprovou a Resolução nº 57, de 10 de Abril de 1871, que autorizou a Câmara Municipal da Capital a contrair um empréstimo de cinqüenta contos para realizar a mudança do Matadouro Público "para sítio mais conveniente". No entanto, a iniciativa não produziu resultados imediatos, tendo a Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo leiloado prédios e terrenos seus na rua do Carmo e no Campo das Perdizes, em 1879 e 1884, respectivamente, para aplicar o resultado na construção no novo Matadouro. Neste último ano foi aberto um concurso para o projeto da edificação, que foi vencido pelo engenheiro Alberto Kuhlmann, ficando em segundo lugar Ramos de Azevedo. Assinado o contrato em 27 de Maio de 1885, o Matadouro foi inaugurado em 5 de janeiro de 1887, localizando-se na Vila Clementino, defronte o largo Senador Raul Cardoso. Em junho desse mesmo ano foi desativado o velho Matadouro da rua Humaitá.

Em 1885, por meio da Lei nº 89, de 9 de Abril, a Assembléia Legislativa Provincial autorizou o Governo a conceder à Companhia Carris de São Paulo a Santo Amaro a construção de um ramal, com tração a vapor, de sua estação central de Vila Mariana para o novo Matadouro. Tal ramal também foi construído pelo engenheiro Kuhlmann. Os seus veículos penetravam nos pavilhões do Matadouro, recolhiam a carne e a transportavam para o Tendal, localizado no então largo da Glória, mais tarde largo São Paulo. A linha partia de uma estação existente na rua Vergueiro, próxima à rua São Joaquim, seguia por esta até a Vila Mariana, depois continuava até o Jabaquara, Vila do Encontro, e terminando em Santo Amaro, na parte final da atual avenida Adolfo Pinheiro e foi um importante pólo de desenvolvimento e expansão para o sul da cidade.

No mesmo ano da inauguração do novo Matadouro, a Assembléia Legislativa Provincial discutiu e aprovou dois dispositivos legais a ele referentes: a Resolução nº 103, de 12 de abril de 1887, que definia o seu regulamento, e a Lei nº 90, de 6 de abril, que criou empregados para o Matadouro Público e fixou seus vencimentos. Por meio de tais dispositivos estruturou-se o funcionamento administrativo e os seus serviços, dividindo-se seu pessoal entre empregados e operários, num total de 50 cargos. Os primeiros dividiam-se em diretor, médico, escrivão, amanuense, porteiro e um mestre geral de matança das oficinas, destacando-se, sobretudo, as atividades dos dois primeiros. Já os operários, que deveriam ter mais de 15 e menos de 50 anos de idade, ter a "necessária robustez e aptidão" e serem "bem comportados", dividiam-se em "especialidades": matança de bovinos, suínos, ovinos ou caprinos, fusão de sebo e preparo das tripas. Os operários eram subordinados ao mestre geral da matança e das oficinas.

Cotidiano

O memorialista Pedro Massarolo, em obra sobre o bairro de Vila Mariana, nos conta como era o cotidiano do Matadouro Público:

"As boiadas para o corte vinham umas do Ipiranga e outras da Lapa. [...] A passagem das boiadas pelo bairro era sempre um acontecimento. Os bois já cansados pela viagem de trem, vinham pela estrada espavoridos como uma avalancha. O povo, ao grito 'a boiada', corria e se escondia atrás do primeiro cercado que encontrasse à frente ou entrava na primeira porta que achasse aberta. No meio da boiada eram comuns bois bravos e muitos casos houve de acidentes com populares. Vinham eles num tropel e em meio à poeira os boiadeiros a cavalo de um para outro lado esporeando os animais, gritando e branindo os chicotes. Este espetáculo dava a impressão de uma legião de demônios saídos do inferno. [...] Ao lado do Matadouro, pouco tempo depois foi construído também o curtume, de onde saía um córrego de água [o córrego do Sapateiro] sempre tinta de sangue. Nas imediações e sobre o prédio do Matadouro havia sempre muitos urubus. Como se pode imaginar, em toda aquela área sentia-se o mau cheiro proveniente do Matadouro e do Curtume. [...]

O largo em frente ao Matadouro era bem grande. No meio dele uma paineira e em um dos lagos um bambual. Alguns botequins e ambulantes faziam seu comércio. Ali se reuniam operários do Matadouro e do Curtume com suas roupas com marcas de sangue, facas de trabalho na cintura. Não eram figuras agradáveis à vista. Marchantes, tripeiros, carroceiros e mesmo mulheres e crianças. Cachorros então, havia ali bandos deles."

O novo Matadouro Público funcionou na Vila Clementino durante 40 anos e o prédio atualmente abriga a Cinemateca Brasileira.

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