Um ato contra a intolerância


21/11/2003 19:50

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Comemoração do Dia da Consciência Negra<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/CulturaNegra2.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

DA REDAÇÃO

Os recentes ataques, pelo rádio e pela TV, desferidos às religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, não são apenas demonstrações de intolerância mas também de abuso de poder, ao fazerem uso de meios de comunicação de massa para desqualificarem outras crenças em seu próprio favor. Essa foi a tônica que permeou o debate promovido pela Comissão de Direitos Humanos nesta quinta-feira, 20/11.

O debate, sob a presidência do deputado Renato Simões (PT), ocorreu no Dia da Consciência Negra e trouxe à tona mais que manifestações de compreensão e de paz: os terreiros em que se realizam ritos afro-brasileiros não são considerados templos religiosos. Assim, também não gozam das isenções fiscais e incentivos governamentais, como concessão de terrenos para edificação de templos. Além disso, a descaracterização dos ritos de matriz africana como folclore e seu reconhecimento como religião é uma das reivindicações mais fortes de seus praticantes.

Com a presença dos deputados Nivaldo Santana (PCdoB), Ricardo Castilho, Padre Afonso Lobato (PV), Ítalo Cardoso (PT) e Rosmary Corrêa (PSDB), foram convidados ao debate o babalorixá Francisco de Oxum, a ialorixá Mameto Kindanda Lakata, o padre José Enes de Jesus e o teólogo Cesario Silva, presidente do Movimento Evangélico Progressista.

Antes de se pronunciar, pai Francisco de Oxum fez uma saudação ritual aos ancestrais, reverenciando-os, e deu a todos os presentes a bênção de Oxalá e Oxum. Louvou a atitude dos legislativos que agora começam a abrir as portas à promoção da igualdade e do respeito às diferenças de cor, de credo e de orientação sexual. Para ele, os ataques às religiões de matriz africana são preocupantes, e quando se fala em inclusão social, num estado de direito, deve-se ter em mente também o conforto espiritual e a crença das pessoas. "Vejo com muita tristeza que em nossas cabeças ainda não há conhecimento suficiente para saber que esses canais de TV, que são usados contra nós, são nossos!" disse, referindo-se ao fato de que se trata de concessões públicas.

O padre Enes discorreu sobre a matriz judaico-cristã da igreja católica e localizou as origens da intolerância religiosa na Idade Média, em especial com a expulsão dos mouros da Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabel. Citou, como marco da luta pela paz entre os povos, o Concílio Vaticano II, sob o pontificado do papa João XXIII.

Abraço

"Obrigada pelo dia de hoje, obrigada pelo presente dado ao povo negro, através de sua religião." Assim começou a bênção da mãe-de-santo Mameto, que reverenciou os ancestrais, a humanidade e a natureza. Mameto convidou os presentes a demonstrarem sua afeição abraçando-se uns aos outros.

Cesário Silva, teólogo da Assembléia de Deus, manifestou-se contrário à intolerância religiosa, pois o país estabelece, em sua constituição, que há liberdade de culto religioso. "Temos, isso sim, que ser intolerantes contra qualquer ato de injustiça, contra o império da comunicação, do poder econômico, do poder eclesiástico e do poder político que sirvam à opressão dos povos."

Aberta a palavra para o debate com os convidados, diversas pessoas se manifestaram. Entre elas, a mais contundente foi a ialorixá Donekika de Bessen, do Conselho Nacional de Ialorixás e ativista do Movimento Negro, que exigiu, sob aplausos, garantias de profissão de sua fé em igualdade com outras religiões, relatando as perseguições sofridas e as dificuldades de se estabelecer casas religiosas de matriz africana. Donekika cobrou dos representantes das religiões cristãs ações concretas que visem a coibir ataques à fé nos orixás professada por uma parcela tão grande da população. A mãe-de-santo lembrou que a religião é fator de união cultural e de auto-estima do povo negro, e propõe uma política de concessão de terrenos para estabelecimento de templos.

Outra ialorixá, Mona Nikumbe, leu manifesto do Movimento de Religiosidade de Matriz Africana do Conselho da Comunidade Negra, acusando a "desterritorialização" do povo negro como uma das ações mais contundentes para apagar a cultura africana do Brasil. O manifesto propôs ainda a criação do Fórum de Religiosidade de Matriz Africana, para a criação e defesa da implantação de políticas públicas de inclusão e de enfrentamento dos ataques contra sua fé, defendendo que sejam considerados crime de racismo.

A inércia do Estado na questão das religiões foi também criticada duramente pelo babalorixá Flávio de Iansã, membro do Conen, que se declarou indignado com o silêncio do governo e dos órgãos reguladores dos meios de comunicação diante do uso da TV laica para incitação à intolerância religiosa. O deputado Sebastião Arcanjo (PT) propõs ação na justiça contra a Rede Record e, segundo Flávio, deve ser firmado Termo de Ajustamento de Conduta que obrigará a emissdora a ceder espaço em sua programação para inserções de mensagens das religiões de origem africana.

Chegando ao evento, o professor Hédio Silva Junior fez uma retrospectiva sobre a perseguição aos cultos negros e o oficioso estabelecimento de uma religião oficial desde o Império. Demonstrando que racismo e intolerância são fruto da exploração econômica, a serviço da qual a religião católica esteve durante séculos, Hédio propõe a "transigência" religiosa, termo que, para ele se aplica melhor ao que se pretende, já que "tolerância" remete à condescendência em suportar o que é negativo. Como o estado laico pressupõe que não há religião pior nem melhor, mas que sua prática deve ser livre, o grande desafio é o de exercer os direitos de prática da fé. Ele defendeu, também, as ações afirmativas e a política de reparações.

alesp