Opinião - Tecendo o amanhã


15/05/2009 19:07

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Um dito popular versa sobre a justa medida da honestidade. É uma frase curta, que sintetiza séculos de sabedoria popular, como aliás todos os bons provérbios. Trata-se da máxima "a justiça começa em casa". Quem não é íntegro no próprio lar, não o será na rua, da porta para fora.

Vou tomar a liberdade de subverter o sentido de uma sentença tão óbvia quanto sábia. A frase "a justiça começa em casa" induz a um segundo significado, tão importante quanto o primeiro: a construção do estado de direito passa pela consolidação da dignidade de todos os cidadãos. Começamos a edificação de uma sociedade justa, participativa e livre garantindo o direito de moradia a todos, o que está consagrado em nossa Constituição.

O escritor iraniano Sadi, que viveu no século XIII e cujo livro "Jardim das Rosas" foi traduzido por Aurélio Buarque de Holanda, alerta-nos nessa obra, em um pequeno conto, de que a opressão começa pequena, assim como - acrescento - a injustiça. A cada imóvel sem registro formal que se constituiu em nossa cidade, nosso Estado, nosso País, mais avançaram a injustiça e a desigualdade.

A justiça social, portanto, nasce das casas, e como estamos a subverter o sentido das coisas, nada melhor que ir além e dizer que o teto é o alicerce da sociedade que queremos. As leis da física nos instruem que tetos não podem ser alicerces. Alicerces são estruturas maciças de alvenaria que sustentam edificações. Tetos encimam esses importantes elementos, mas o sentido figurado faz da palavra uma metonímia de "casa" e é o direito à moradia que alicerça o tão almejado estado pleno de direito.

O programa Cidade Legal, lançado em agosto de 2007 pelo governo de São Paulo, é um esforço rumo ao fortalecimento da justiça social. Consiste em convênios firmados entre o Estado e os municípios, para regularizar juridicamente a posse de imóveis populares. É uma das prioridades do governador José Serra para a pasta da Habitação, comandada pelo secretário Lair Krähenbühl.

Essa política de legitimação dos direitos de nossos concidadãos ganhou novo impulso com a "Lei de Emolumentos" (13.290/2008), cuja aprovação em dezembro pela Assembleia Legislativa garantiu a redução dos custos para registrar um imóvel de interesse social. O valor caiu de R$ 2.300,00, para R$ 192,60. Tive a honra de ser o coordenador dos esforços para viabilizar a aprovação da Lei dos Emolumentos.

O Cidade Legal já firmou convênio com mais de 150 municípios de São Paulo. As estimativas do governo estadual indicam que o programa está ajudando a regularizar moradias de 800 mil famílias. A iniciativa outorga a uma multidão de desfavorecidos a prerrogativa de legitimar um bem que, se já era deles de fato, ainda não o era de direito. A posse legal da propriedade habilita a nossos concidadãos o ingresso em um mundo que a eles estava até então vedado. Com a escritura de seus imóveis, essas famílias poderão negociar seus bens, legar aos descendentes um teto para se abrigar e, mesmo, a conseguir crédito para produzir ou consumir.

O brilhante jornalista Millôr Fernandes certa vez desabafou, com a ironia que lhe é peculiar: "cidadão, neste país em que não há qualquer cidadania, passou a significar só cidade grande". Temos ainda um amontoado de imóveis sem títulos de propriedades, que criam núcleos urbanos precários. Os donos dessas casas e apartamentos precisam ter oportunidades de deixar a periferia de nosso Estado de Direito. Empreendimentos como o Cidade Legal restauram a dignidade dessas pessoas em nosso Estado. O esforço do governo em tornar possível uma nova realidade social representa um avanço no sentido de construir uma cidadania plena.

A cada título de propriedade conquistado, um novo patamar de urbanidade, de respeito para com a população, se ergue, pavimentando assim novas conquistas que elevarão a qualidade de vida de nosso povo e nos aproximarão um pouco mais da justiça social. O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), em seu livro "A educação pela pedra", nos legou a obra-prima "Tecendo a manhã", cujo título parafraseio. Nele, o artista nos apresenta os galos como os artífices do amanhecer: "um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos". O poeta atribui, na liberdade de grande artista da palavra que ele era, o poder do amanhecer ao passo a passo de cada um desses cantos matinais. Invocando o poeta, teceremos um amanhã mais justo a cada título de propriedade que concedermos àqueles sem condições de fazê-lo.



*Jonas Donizette (PSB) é deputado estadual e vice-líder de Governo na Assembleia Legislativa.

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