Balanço - 1º Semestre 2012 - Ditadura militar volta a ser discutida pela sociedade

Comissão da Verdade e o resgate da história contemporânea brasileira.
02/07/2012 20:35 | Victor Bin - do ILP

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Adriano Diogo e Barros Munhoz<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2012/fg115998.JPG' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Paulo Abrão<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2012/fg115999.JPG' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Auditório<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2012/fg116000.JPG' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Auditório<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2012/fg116001.JPG' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Seminário realizado sob a responsabildiade do Instituto do Legislativo Paulista



A Assembleia Legislativa de São Paulo foi a primeira a instalar uma Comissão da Verdade no Brasil, antes mesmo da nacional, em 1º/3/2012. A comissão paulista tem por objetivo auxiliar a nacional na apuração dos fatos dos regimes de exceção no governo Eurico Gaspar Dutra (1946/1951), e na ditadura militar.

Um período que cobriu 21 anos da história do país ainda carece de explicações. A ditadura militar, que durou de 1964 a 1985, acabou. Muitas perguntas, principalmente as dos parentes dos desaparecidos desse período, permanecem sem resposta. Até agora. No ano passado foi sancionada a Lei 12.528 que cria a Comissão Nacional da Verdade, e, a partir desta, outras comissões, nos âmbitos estaduais e municipais " e também eventos e seminários que trazem o assunto "ditadura militar" à sociedade para ser debatido ", esclarecerão acontecimentos desse período.

As comissões da Verdade são mecanismos que contribuem para apurar violações e abusos aos direitos humanos e são usados para revelar e esclarecer o passado histórico dos países em que são implantadas. Escutam tanto as vítimas desses abusos quanto quem praticou os atos violentos. Documentos, de ambos os lados, também são utilizados para traçar o perfil histórico com a maior veracidade possível.

Seu poder é apenas fiscalizador, ou seja, não punitivo. Mas isso não impede que o relatório final e os documentos consultados sejam usados pelo Poder Judiciário em ações civis ou penais contra os torturadores. Esse documento mostrará à sociedade, em detalhes, as formas e os métodos que foram usados para infringir os direitos humanos, e apresentará recomendações que deverão ser tomadas para que esses abusos não se repitam.

Até hoje, 39 países formaram comissões em todo o mundo " a primeira no ano de 1974, em Uganda. O motivo de o Brasil ter feito a sua 38 anos depois da nação africana, é difícil de explicar. O secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, arrisca a resposta: "A ditadura brasileira foi muito violenta ao impor uma cultura do medo. É por causa disso que, tardiamente, quase trinta anos após iniciado o processo de redemocratização, temos condições de instalar uma Comissão da Verdade", afirma.

De acordo com a lei brasileira que instaura a Comissão, ela será formada por sete membros "de reconhecida idoneidade e conduta ética", e terá dois anos para apurar o que ocorreu não só no período militar, mas também durante o governo do general Eurico Gaspar Dutra, de 1946 a 1951. São esses os membros: Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ); José Carlos Dias, advogado e ex-ministro da Justiça; Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada; Cláudio Fonteles; ex-procurador-geral da República; Paulo Sérgio Pinheiro, sociólogo; Maria Rita Kehl, psicanalista; e José Paulo Cavalcanti Filho, advogado.

No Estado de São Paulo outras duas comissões foram criadas pelo Poder Público: a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (deputado sequestrado, torturado e morto durante a ditadura militar " ainda dado como desaparecido), pela Assembleia Legislativa, e a Comissão Municipal da Verdade Vladmir Herzog (jornalista torturado e morto pelos militares), pela Câmara Municipal.

A primeira, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT), terá outros quatro deputados, Marcos Zerbini (PSDB), André Soares (DEM), Ed Thomas (PSB) e Ulysses Tassinari (PV), com duração inicial de dois anos, prorrogada enquanto a Comissão Nacional estiver em vigor, e a segunda, sob o comando do vereador Ítalo Cardoso (PT) e outros seis vereadores, com 180 dias de funcionamento, prorrogado até o final da legislatura (2011-2015). Ambas nasceram para colaborarem com a Nacional na apuração de documentos e depoimentos dos envolvidos. Todo o material coletado será enviado também ao Acervo Nacional.

De acordo com Abrão, o país nunca se preocupou em resgatar informações sobre períodos complexos. "Nunca sistematizamos informações sobre a escravidão, a dizimação dos povos indígenas, a guerra do Paraguai", e defende a iniciativa de implantar a Comissão. "É a primeira vez na história que é criado um órgão de Estado para sistematizar um conjunto de violações. Amparados nas Constituições de 1946 e 1988 que asseguram o direito à informação, manifestações e resistência", diz.



Discussões sobre a Verdade



Desde que a Comissão foi instaurada, debates, seminários, livros e encontros, são cada vez mais frequentes para levar a conhecimento das pessoas o que foi a ditadura e como ela agiu. Alguns livros recém-lançados trazem novas informações sobre a época. Entre eles estão Memórias de uma guerra suja, livro que traz depoimentos, até então desconhecidos, do delegado Cláudio Guerra sobre como o órgão de repressão Doi-Codi/SP funcionava, e o Mata! " O major Curió e as guerrilhas do Araguaia, que mostra os bastidores da guerrilha no norte do país, graças ao acervo pessoal do major.

A Assembleia Legislativa também deu sua contribuição através do Seminário Direito à Verdade: Informação, Memória e Cidadania, promovido pelo Instituto do Legislativo Paulista (ILP), a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva e seus parceiros: o Núcleo de Preservação da Memória Política, o Memorial da Resistência do Estado de São Paulo e o Arquivo Público do Estado de São Paulo, e com apoio de outros órgãos, que contou com mais de 200 inscritos.

Autoridades de diversos lugares do país compareceram ao seminário. Os temas abordados foram: as políticas de acesso à informação e cidadania; outras fontes para a Comissão da Verdade; iniciativas da sociedade civil na preservação e acesso à informação; e mobilização das instituições oficiais em defesa da preservação da memória. Esses quatro temas interligam-se para dar um panorama da situação das instituições, públicas e privadas, e de seus acervos. E que elas podem ajudar as comissões em suas investigações com material complementar.

Pedro Ferreira de Moura Filho, do Arquivo Público do Estado de Pernambuco " o 2° maior acervo do Deops do país, atrás apenas de São Paulo ", falou no seminário que muitas informações referentes à época dos militares foi obtida por cruzamento de dados do Acervo Público, do Instituto Médico Legal (IML), e dos registros de presos das penitenciárias " o que não foi feito antes.

Ferreira diz que os documentos do Acervo estavam em condições inadequadas e estão mais bem organizados e digitalizados atualmente. Mas falta gente especializada para continuar a triagem e organização dos documentos. "É complicado encontrar alguém que conheça os arquivos, a história da realidade política do país. Alguns professores de história inclusive não têm domínio técnico do assunto. Isso dificulta quando se arruma alguém para trabalhar", disse durante o seminário.



Outros problemas



Os palestrantes também tocaram em outros problemas. Lauro Ávila Pereira, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, diz que faltam no país espaços para a preservação de memórias desse período. "Uma coisa que nosso país é carente são os sítios de memória. Não há espaços físicos para a preservação da memória, institucionalizados. O mais conhecido em São Paulo é o Memorial da Resistência", afirma.

Já Sebastião Neto, primeiro-secretário do grupo Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP), fala de uma preservação que é esquecida pelas entidades, mas também é importante para entender aquele período: a memória oral. A IIEP tem um projeto chamado Memória da Oposição Sindical Metalúrgica " SP, que resgata documentos e depoimentos de metalúrgicos e outras pessoas que também se mobilizavam contra a ditadura.

Neto diz que os documentos e relatos mais procurados da época são os dos estudantes e militantes, mas afirma que há três outras classes também importantes que devem ser igualmente preservados: a classe trabalhadora operária, que de acordo com ele "não tem muito tratamento à memória"; os movimentos que começavam nos bairros, com as mães e parentes dos militantes desaparecidos e estudantes, que "se perde mais rápido, por terem poucos documentos"; e a memória das lutas e movimentos de resistência iniciados em áreas rurais.

Ele afirma que as informações, mesmo que preservadas, precisam ser levadas à população. "A gente tem que ir às pessoas. Levar essas informações à população, à molecada, aos estudantes." E completa: "Temos que fazer um esforço muito grande à memória popular, pois as pessoas (daquela época) com idade mais avançada começam a morrer." Por exemplo, foi graças aos relatos das pessoas (história oral) e não aos documentos, que os torturadores da Argentina foram condenados à prisão perpétua.

O Memorial da Resistência de São Paulo tem um espaço em que há gravações de ex-presos políticos que falam como era ser preso no Dops. Elas foram muito importantes para a construção do espaço " que contém uma cela em iguais condições as da época militar. Ivan Seixas, membro da diretoria do Núcleo de Preservação da Memória Política, que também participou do seminário como mediador, defende que "não podemos esperar "abrir os arquivos", devemos dar uma importância maior a esses depoimentos. A verdade não vai aparecer pelos documentos, nós é que temos que ir atrás dela."

O reflexo dessas discussões começa a gerar frutos. O produtor cultural Rogério Wagner da Silva Leite, 44, assistiu ao seminário e disse que o evento foi "uma chance de conhecer melhor as políticas que serão discutidas e implementadas pelas comissões", além de ter suas perguntas respondidas: "A palestra do Paulo Abrão foi histórica para mim, pela primeira vez ouvi respostas a minhas indagações e anseios sobre a Anistia (lei de 1979 que impede que militares e militantes sejam punidos judicialmente pelos atos que ocorreram durante o regime militar)."

Márcia Santilone, socióloga e bibliotecária, também assistiu ao seminário, ela diz que "este tema deve ser amplamente discutido nas escolas. Embora a ditadura militar faça parte da história contemporânea do Brasil, os jovens pouco conhecem sobre este período." E fala que um assunto do encontro chamou mais a sua atenção: "a formação de uma rede de memória e que está preocupada com as questões da interoperabilidade dos sistemas de informação em que os documentos são digitalizados."



A Comissão está aí, e depois?



A rede que Márcia citou chama-se Rede Memorial, um grupo de 31 instituições, que tem por objetivo criar e sustentar uma política de digitalização dos acervos memoriais e de procedimentos para um espaço colaborativo. Se esta rede for implantada, os acervos de todas as instituições ficarão totalmente digitalizados e disponíveis na internet, além de terem seus acervos ligados uns aos outros " o benefício deste último item faz com que documentos de uma mesma temática, mas em acervos diferentes, de outros estados, inclusive, possam ser achados mais facilmente em um mesmo banco de dados.

A rede foi criada em 2011 e este ano teve seu segundo encontro, o II Fórum da Rede Memorial. O seu documento principal, a Carta do Recife (disponível na internet), contém seis compromissos para digitalizar acervos memoriais. São eles: compromisso com o acesso aberto (público e gratuito); o compartilhamento das informações e da tecnologia; a acessibilidade; a captura e o tratamento de imagens; os padrões de metadatados e de arquitetura da informação dos repositórios digitais (descrição do documento para achá-lo no banco de dados); e as normas de preservação digital.

Há mais de 20 anos, Carlos Dias, hoje diretor do Acervo Histórico da Assembleia, tinha essas preocupações com a digitalização do acervo. Quando teve que escolher, nos anos 1990, entre microfilmar (fotografar documentos) ou digitalizar, ficou com a segunda opção. Se ele era o responsável por higienizar e preservar o acervo físico, fazer uma segunda cópia para ficar guardada seria perda de tempo. A prioridade era disponibilizá-los para o público. Isso fez a Casa ter um avanço significativo nessa área. Graças a essa iniciativa, mais de 80% de seu acervo é digitalizado e está, pouco a pouco, disponível na internet, através do site da Assembleia. Dias fala que, mesmo hoje, os prédios públicos não se preocupam em preservar seus documentos. "Não há nos prédios públicos espaço concebido a acervos públicos. Nem nos prédios novos, dos últimos 10 anos", relata.

Os documentos que antes da digitalização eram vistos por 240 pessoas/ano, hoje, na internet, já foram vistos por quase 3 milhões de pessoas, desde que foram disponibilizados, em 2011, com uma frequência de 2500 folhas de documentos/dia. Esse acervo traz um retrato da sociedade paulista de diversas épocas, desde o Império até os dias de hoje, e pode servir de complemento às comissões da verdade. A formulação das leis, discursos de deputados a favor e contra o regime militar e seus depoimentos sobre temas da sociedade estão "muito bem documentadas", de acordo com Dias.

Quando questionado sobre possíveis destruições de documentos por conta da Lei de Acesso à Informação " que faz com que órgãos públicos disponibilizem seus documentos para consulta pública e retira o sigilo eterno de alguns deles ", o diretor do Acervo diz que a desorganização dos documentos faz que muitos deles, que deveriam ter sido destruídos, tenham sobrevivido. "Eu sinto que isso acontece. Ao revirar os órgãos públicos, graças a Lei de Acesso à Informação, eu creio que aqui ou ali aparecerá alguma coisa sim", diz, otimista.



A marca "sigilo" impede acesso



Pessoas que precisam desses documentos, professores, pesquisadores, estudantes, têm dificuldade em obtê-los. Até mesmo os mais simples. O historiador, professor e jornalista Moacir Assunção, fala das dificuldades para conseguí-los. "Vi casos em que estudantes pediram o orçamento de prefeituras e câmaras e ouviram que não podiam ser liberados porque eram "documentos sigilosos". Onde já se viu isso?" Ele diz que o estado brasileiro sempre tentou proteger a si e seus representantes. "É uma marca de nossa cultura política."

Autor de um livro recente sobre a Guerra do Paraguai, o historiador precisou ir até o Paraguai para conseguir alguns documentos para seu trabalho. O motivo: os documentos brasileiros estão sob sigilo. "Há uma série de dificuldades que, espero, sejam diminuídas pela Lei de Acesso. Temas sensíveis como guerra do Paraguai, que pesquiso, formação de fronteiras e ditadura militar são mais complicados."

Ele espera que a Comissão da Verdade possa responsabilizar os torturadores de alguma forma. Em seu texto, As bombas contra o Estadão, o jornalista escreve que "é claro e cristalino que a Comissão da Verdade vai investigar crimes de agentes do Estado, até porque os "do outro lado" já morreram sob torturas horríveis que deveriam envergonhar e enojar qualquer ser humano que se preze" e termina com a lição: "um antigo ditado chinês diz que um povo que não conhece seu passado está fadado a repeti-lo."

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