Especial Getúlio Vargas - Agosto de 1954: 60 anos de uma tragédia brasileira


29/08/2014 16:04 | (*) Antônio Sérgio Ribeiro

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Agenda do presidente no dia de sua morte <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164876.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Fila para visitação do corpo de Getúlio <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164877.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Juscelino Kubitschek em companhia de Amaral Peixoto no velório<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164878.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Comoção marca a despedida ao presidente Vargas<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164879.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Corpo do presidente Vargas<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164880.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Diário Oficial da União Luto Nacional de 8 dias<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164881.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Palácio do Catete, na manhã de 24 de agosto bandeira a meio pau<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164882.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Público lota dependências do Palácio do Catete<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2014/fg164883.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Terça-feira - 24 de agosto de 1954

Desde a noite anterior, era grande a movimentação no Palácio do Catete, que permaneceu todo iluminado com suas janelas abertas; mais de 100 automóveis entraram e saíram da sede do governo em poucas horas.

O general Zenóbio da Costa, em companhia do marechal Mascarenhas de Moraes e do general Odylio Denys, chegou à sede do governo nos primeiros minutos daquela terça-feira. O ministro da Guerra, primeiramente, conferenciou com o chefe da Casa Militar, general Caiado de Castro, e, a seguir, os três oficiais do Exército foram recebidos pelo presidente Getúlio Vargas, que estava acompanhado do ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, convocado um pouco antes e chegado em companhia de dois filhos.

Zenóbio deu ciência da gravidade da situação, "que já não podia ser debelada por parte das Forças Armadas do Exército, contra as quais já se encontravam os chefes militares de mar e ar e certo número dos de terra"

Getúlio disse que no decorrer do dia convocaria o seu ministério para tomar uma deliberação. Nesse momento, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), marechal Mascarenhas de Moraes, propôs ao presidente que a reunião fosse imediatamente realizada, apesar do adiantado da hora. Aceita a sugestão, foi providenciada a convocação dos ministros, que, em uma hora, começaram a chegar ao palácio.

Em Niterói, o governador do Estado do Rio, Ernani do Amaral Peixoto, genro do presidente, recebeu um telefonema de Benjamim Vargas dizendo: "A coisa está se agravando aqui". Ao chegar sua esposa, Alzira, disse-lhe: "Vamos voltar imediatamente para o Rio". Ela ainda protestou: "Mas estou acabando de chegar de lá e não há nada". Amaral Peixoto, precavido, tinha mandado segurar a barca e, à uma hora da manhã, chegaram ao Catete. O governador fluminense subiu ao gabinete do presidente, que, naquele exato momento, assinava um papel. Pensou que fosse algum documento lido na reunião, mas depois soube-se que se tratava da "Carta Testamento". Logo depois, o ajudante de ordens avisou que os ministros já haviam chegado. Getúlio levantou-se com a maior calma e disse: "Vamos descer".

Às duas horas da madrugada, com a presença de todos os titulares - exceto o ministro Vicente Ráo, das Relações Exteriores, que se encontrava doente em São Paulo -, teve início, no salão de banquetes do segundo andar, a histórica reunião ministerial presidida por Getúlio, que se sentou na cabeceira, tendo à sua direita Alzira Vargas do Amaral Peixoto, na quina da mesa, seguindo-se no sentido anti-horário os ministros Oswaldo Aranha, da Fazenda, Guillobel, da Marinha, Epaminondas, da Aeronáutica, Apolônio Sales, da Agricultura, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Mascarenhas de Moraes, por determinação especial do presidente, Hugo de Faria, interino do Trabalho, José Américo de Almeida, da Viação e Obras, Mário Pinotti, da Saúde, Edgar Santos, da Educação e Cultura, Zenóbio da Costa, da Guerra, e Tancredo Neves, da Justiça. Em pé, à esquerda do presidente, o governador Ernani do Amaral Peixoto, e à sua direita, um pouco mais afastados, ficaram Maneco Vargas, Jango Goulart, Benjamin Vargas, os deputados Danton Coelho, Euclydes Aranha e Augusto do Amaral Peixoto, o vice líder do governo, general Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar (que chegou depois, porque estava tomando medidas de segurança), e, ao fundo, bem de frente para o presidente, estava Lourival Fontes, chefe do Gabinete Civil. Outros auxiliares e amigos também entraram durante a realização da reunião.

Getúlio Vargas abriu a reunião e expôs em largos traços a situação, concedendo depois a palavra aos ministros militares, que deram sua opinião. Falaram em seguida os ministros civis, tecendo muitos comentários, muitas declarações de solidariedade e de preocupação pela segurança pessoal do presidente e de sua família, porém, sem que se tenha emitido uma opinião conclusiva, à exceção do ministro José Américo, que aconselhou a fórmula honrosa de uma licença, que seria aceita, e de Osvaldo Aranha, que, tal como os três militares, lealmente se pronunciou pela renúncia, reiterando, entretanto, o seu irrestrito apoio, caso o presidente resolvesse resistir.

Depois, o presidente concedeu a palavra ao marechal Mascarenhas de Moraes, que informou ter se reunido, na tarde anterior, com os três chefes de estado-maior, e que assim podia fazer o seguinte quadro fiel da situação das três Forças Armadas: A Aeronáutica estava reunida, sob a orientação do brigadeiro Eduardo Gomes, e sugeria a renúncia presidencial. A Marinha também estava unida com o ministro ligado aos seus almirantes, que desejavam a renúncia presidencial.

Testemunha da reunião, o ministro da Marinha almirante Renato Guillobel, o único integrante do ministério que permaneceu do primeiro ao último dia no governo Vargas, em seu livro de memórias narrou para a posteridade o seguinte:

"... O presidente estava perfeitamente calmo e senhor de si, como sempre. Em certa ocasião, vi-o tirar de uma pasta que carregava um documento que entregou, "creio" que a um dos seus Oficiais de Gabinete. Dizem que era a famosa carta com a qual se despedia da Nação. Não o posso afirmar.

Após algumas palavras, disse que queria auscultar a opinião dos Ministros e a ouviu de alguns Ministros civis. Chegada minha vez, disse-lhe mais ou menos textualmente: "Presidente, a Marinha não vai se rebelar contra o Governo nem vai sair à rua para isto; até agora se mantém dentro da disciplina e da ordem. Mas devo dizer lealmente a V. Exa. que, embora eu esteja decidido a acompanha-lo na decisão que tomar, a maioria dos Chefes da Marinha estão contra o Governo e eu não o desejo iludir". A seguir, tomou a palavra o Ministro da Guerra, que disse que não poderia agir porque a Marinha estava revoltada; era mais uma falsidade. Isso me indignou e eu levantei-me para protestar e dizer ao Presidente: "A verdade Senhor Presidente, é que mais uma vez V. Exa. está sendo traído por seus Generais." Tendo o Ministro da Guerra feito menção de levantar-se, repeti minhas palavras ao Presidente, mas a meu lado o Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, me puxava pelo dólmã para conter-me, gesto muito louvável, mas, creio que desnecessário, porque eu não tinha nenhuma intenção de provocar qualquer conflito, nem tampouco de retratar-me."

No Exército, embora sob a ação forte do general Zenóbio, os oficiais de postos menos elevados estavam agitados. Não se poderia contar com boa parte deles.

O ministro da Guerra protestou contra a fidelidade das informações do seu chefe de Estado-Maior, general Fiúza de Castro, ao que o marechal Mascarenhas retorquiu que eram verdadeiras. E ainda afirmou que a resistência levaria à guerra civil.

Alzira Vargas não aguentou e afirmou que tinha feito vários contatos com oficiais do Exército leais e que todos afirmaram que poderiam contar com o apoio necessário para a defesa do governo do presidente Getúlio Vargas. E não satisfeita indagou aos ministros da Aeronáutica e da Marinha, se esse apoio também não poderia vir de suas armas.

O presidente pediu a opinião do general Caiado, que opinou pela resistência armada, quando o general Zenóbio respondeu-lhe: "Neste caso, com a devida permissão do presidente, eu lhe darei o comando da infantaria, que vai resistir...".

O general Caiado, herói da Segunda Guerra Mundial, quando comandou justamente 1º Regimento de Infantaria da FEB (Regimento Sampaio), respondeu aceitando o alvitre.

O deputado Danton Coelho interferiu, intempestivamente, adjetivando a senhora genitora do ministro Zenóbio e, em alto e bom som, declarou: "Todo esse movimento não é contra o presidente e sim contra o senhor, general, pois o Exército não ficou satisfeito com sua nomeação para ministro da Guerra!".

O titular da Guerra protestou, de modo veemente, ante tal assertiva. Danton, respondendo, o chamou de traidor. Ainda em pleno debate, o general Zenóbio foi várias vezes interpelado, não só pelo presidente, como também por Alzira, sobre as possibilidades de resistência, respondendo sempre que "estava pronto para resistir, embora sem certeza de êxito, pois contava apenas com parte do Exército".

Nesse momento, o chefe de polícia, coronel Paulo Torres, que se encontrava na varanda ao lado do salão, ouvindo os acalorados debates, chamou o governador Amaral Peixoto e disse: "Se o presidente der a ordem, eu prendo esses generais, porque eles não têm comando. A informação que eu tenho é de que o pessoal da Vila está muito firme ao lado do presidente".

Admitida a falta de apoio militar ao presidente, passou-se a cogitar da renúncia ou da resistência armada e, finalmente, de uma terceira hipótese: o licenciamento do presidente da República.

Diante das vacilações dos seus ministros e dos incidentes que estavam tumultuando aquele conselho, o presidente Getúlio Vargas, desassombradamente, tomou a palavra e encerrou definitivamente os debates nos seguintes termos: "Não me interessam a minha segurança e a de minha família, e sim a situação do país. Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida entrarei com um pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver".

Em seguida, retirou-se sob grande salva de palmas, abraçando sua filha Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Ao sair, determinou ao governador fluminense: "O senhor redija uma nota sobre isso", a qual foi feita juntamente com Tancredo e Osvaldo Aranha. Enquanto isso, os auxiliares de governo esvaziavam as gavetas e embalavam todos os documentos para serem transferidos para outro local.

Um envelope fechado e uma nota oficial

Eram 4h20, estava finda a reunião e aparentemente superada a gravíssima crise nacional, sem derramamento de sangue, graças à decisão do presidente Vargas, que preferiu deixar o posto. O presidente chamou João Goulart e entregou um envelope fechado, sem nada escrito, e recomendou que fosse para o Rio Grande do Sul, para que ficasse afastado do torvelinho da capital do país e ainda disse-lhe que só lesse a carta quando chegasse ao Sul.

O marechal Mascarenhas observou que o ministro Zenóbio e o general Denys estavam visivelmente preocupados, provavelmente sobre a reação dos seus comandados quanto à aceitação do ato presidencial de simples licenciamento e não de renúncia.

A chamado do ministro Osvaldo Aranha, os três militares retornaram e permaneceram até as 5h10, quando foi entregue uma nota oficial, expressando a decisão do presidente: "O presidente da República reuniu hoje o ministério para exame da situação político-militar criada no país. Ouvidos os ministros, cada um de per si, foram debatidos longamente os diversos aspectos da crise, e as suas graves consequências. Deliberou o presidente Getúlio Vargas, com integral solidariedade dos seus ministros, entrar em licença, passando o governo ao seu substituto legal, desde que seja mantida a ordem, respeitados os poderes constitucionais e honrados os compromissos solenemente assumidos perante a nação pelos oficiais-generais de nossas Forças Armadas. Em caso contrário, persistirá inabalável no seu propósito de defender as suas prerrogativas constitucionais com sacrifício, se necessário, de sua própria vida".

A imprensa, acreditada no palácio, recebeu a nota do chefe do gabinete civil, Lourival Fontes, que foi lida pelo jornalista Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que lá se encontrava.

Enquanto realizava a reunião ministerial, Café Filho declarou aos jornalistas, em sua residência, que ignorava toda e qualquer informação a respeito da renúncia do presidente.

Nas imediações do Catete, grande era a movimentação de populares, a maioria contrária Getúlio Vargas, e de carros que chegavam e entravam pelos portões do Palácio, apesar das ruas próximas estarem interditadas.

Ainda no meio da reunião, a "rádio Tupi" conseguiu romper a censura existente, sendo a primeira a divulgar a falsa notícia de que o presidente Getúlio Vargas havia renunciado. Taxistas comemoraram a divulgação da informação. Nesse momento, Café Filho, de pijama, recebeu os primeiros abraços em sua residência de precipitados amigos e dos puxa-sacos de sempre.

O brigadeiro Nero Moura, ex-ministro da Aeronáutica, tentou às 4 horas chegar ao palácio, mas foi barrado por tropas militares ainda na rua do Catete. Melhor sorte teve o prefeito do Distrito Federal, coronel Dulcídio Cardoso, que conseguiu entrar na sede do governo logo depois.

O brigadeiro Eduardo Gomes estava no Quartel General aguardando os acontecimentos. A "rádio Globo" começou também a transmitir falsas notícias de renúncia, intercaladas com marchas militares. A divulgação da renúncia pelas emissoras de rádio foi recebida por foguetes em vários pontos da cidade.

Alzira, juntamente com seu marido Ernani do Amaral Peixoto e o ministro Osvaldo Aranha, foi até o quarto do presidente. Ela entrou e disse que os dois estavam ali para mostrar a nota. A resposta foi seca: "O que eles resolverem, está resolvido". Estava totalmente desinteressado. Alzira falou ainda a seu pai que "faria uma traquinagem", pois havia falado com oficiais leais na Vila Militar e eles haviam dito que "ficasse descansada, porque a Vila estava firme"; no que seu pai respondeu: "Não adianta, o Zenóbio já está convidado pelo Café para continuar no ministério". Ela, surpresa, indagou o porquê de ele não haver dito antes. Getúlio, com desdém, respondeu: "o que iria adiantar?"

O ministro da Guerra, quando retornou ao Palácio Duque de Caxias, convocou uma reunião com todos os generais para as 6h30, em seu gabinete. Lourival Fontes anunciou à imprensa: "Café tomará posse logo mais à tarde".

Com meia hora de atraso, teve início a reunião com os generais, e Zenóbio explicou a todos a decisão tomada. Ao ser indagado: "Mas depois dessa licença, o presidente volta?" - acredita-se que a pergunta tenha sido feita pelo general Fiúza de Castro; o ministro da Guerra respondeu: "Não, é claro que não!"

Presente como testemunha do fato, o general Moraes Âncora, ex-chefe de polícia e muito amigo do presidente, foi ao Catete e contou ao general Caiado de Castro, na presença de Bejo Vargas, que havia subido ao quarto do seu irmão Getúlio, e participado o grave ocorrido no ministério da Guerra, quando o presidente teria perguntado: "Então estou deposto?"; e Benjamin ainda acrescentou que "tinha sido intimado a depor no Galeão". O presidente, contrariado, disse: "Não, você não vai. Eles que venham ouvir você aqui. Eu ainda sou o presidente!"

Getúlio pediu para seu irmão descer e obter mais informações. Ele ficou sozinho até por volta das 7 horas, quando foi procurado pelo barbeiro, que veio perguntar se queria fazer a barba. Disse que não e dispensou-o dizendo que queria descansar um pouco mais. Pouco depois, deixou o quarto e foi até o gabinete de trabalho que ficava ao lado. Ainda de pijama, fora buscar o revólver que estava guardado no cofre do gabinete.

Ação decisiva

Às 8h35, exatamente, o presidente da República Getúlio Dornelles Vargas, de 72 anos, que havia governado o Brasil por quase duas décadas, colocou fim à sua vida com um disparo em seu coração. Dia 24 de agosto era data de aniversário do seu filho caçula, Getulinho, que havia falecido em São Paulo, em 1943, com apenas 23 anos, vítima de poliomielite.

O tiro foi ouvido por aqueles que estavam perto. A primeira pessoa a entrar no quarto do presidente foi sua esposa, dona Darcy (pronuncia-se Dárci), que dormia no quarto ao lado e entrou por uma porta interna. Ao ver o marido, que ainda vestia um pijama, com as pernas para fora da cama e com um revólver "Colt", calibre 32, carga dupla, com o cabo de madrepérola, na sua mão direita, mortalmente ferido, desesperada gritou: "Getúlio, por que fizeste isto?". Dona Darcy Sarmanho Vargas viveu nesse dia outro drama: sua irmã, Ada Motta, que residia no Rio Grande do Sul, ao ouvir a notícia da morte do cunhado presidente pelo rádio, sofreu um infarto fatal.

A seguir chegou o ajudante de ordens, major Hernani Fittipaldi, que estava na porta do elevador do 3º andar, ala residencial do Palácio. O general Caiado ao saber da triste ocorrência teve um desfalecimento.

Sua filha Alzira falava por telefone com oficiais de confiança da Vila Militar, que apoiavam o presidente, quando alguém a segurou pelos ombros e gritou: "Alzira, seu pai!". Ela saiu correndo em direção ao aposento presidencial, como todos que estavam no Palácio do Catete naquele exato momento. Quando chegou, ele estava agonizando, e ela, chorando, jogou-se sobre ele. Com ajuda do ministro da Justiça, Tancredo Neves, conseguiram colocar o corpo sobre a cama, no lado esquerdo do leito. Procuraram estancar o sangue, mas não conseguiram. Ele, ainda com vida, lançou uma olhar circunvagante às pessoas que estavam no quarto. Quando se deteve com os olhos em sua filha Alzira, sorrindo levemente e dando a impressão de experimentar um frison de emoção, ele morreu.

O médico Flávio Miguez de Melo, colega de turma de Lutero, que o assistia, estava sentado ao lado dele com um aparelho de pressão, balançando a cabeça, quis dizer que era inútil. Apesar disso, uma ambulância do SAMDU foi chamada com urgência ao Palácio, mas o médico Rodolfo Samuel Moreira, que foi atendê-lo, já o encontrou morto.

O governador Amaral Peixoto conseguiu tirar sua esposa do lado do pai, que, ainda muita abalada, foi colocada em uma poltrona. Nesse momento, observou em cima do criado-mudo um envelope em branco, ao abri-lo constatou que era um documento de despedida. Nessa hora, chegou ao quarto Osvaldo Aranha, que fora avisado da morte do presidente por Benjamim Vargas. Amaral Peixoto entregou a Osvaldo a carta. Uma ligação foi feita para a "rádio Nacional". O ministro da Fazenda tentou lê-la, mas não conseguiu, pois começou a chorar copiosamente. Seu filho Euclides, emocionado, terminou por ele.

Na PRE-8, seu diretor Victor Costa determinou que fosse realizada a gravação em acetato. A Carta Testamento, que ficaria na memória de milhões de brasileiros, principalmente por sua frase final - "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida para entrar na História" -, seria novamente colocada no ar mais duas vezes, até a emissora ser invadida por integrantes da Aeronáutica, que proibiram a sua divulgação.

A Amaral Peixoto coube providenciar as questões legais. O coronel Paulo Torres, chefe de polícia, juntamente com o diretor Jessé de Paiva, do Instituo Medico Legal, resolveu dispensar a autópsia do corpo em virtude dos exames pericial e cadavérico realizados no local pelos peritos Carlos Eboli e Antônio Carlos Vilanova, este também diretor do Gabinete de Exames Periciais, e da carta testamento deixada pelo presidente e por ele assinada de próprio punho. Também examinaram o corpo os médicos legistas do IML Jessé de Paiva e Nilton Salles, que atestou a morte do presidente para que fosse lavrado o atestado de óbito, na qual constou como causa mortis: ferimento penetrante da região pré-cordial por projétil de arma de fogo, com lesões dos órgãos torácicos e hemorragia interna.

Antes da chegada dos peritos do IML, o corpo do presidente foi vestido com um fraque preto e uma camisa de linho branca por cima do pijama. Eles foram obrigados a despir a parte superior do corpo para realizar sua triste missão. Em virtude do velório e da posterior transladação, foi necessário embalsamar o corpo do chefe da nação, trabalho que foi realizado pelo doutor Gene Netto e auxiliares. Uma equipe do Museu Nacional de Belas Artes, sob a direção do professor Oswaldo Teixeira e constituída pelo escultor Fiory Gama e Walter Feder, procedeu à moldagem do rosto do presidente para uma máscara mortuária, o que atrasou enormemente o início do velório, planejado para as 13 horas.

Finalmente, às 17 horas, o corpo de Getúlio Vargas, com o terço do ministro Apolônio Salles entre as mãos, que, forçadas pela tampa de vidro que o protegia no caixão, estavam esbranquiçadas, com um lenço passado sob o maxilar e atado sobre a cabeça, e com duas gotas de sangue coagulado no lado esquerdo da boca, desceu as escadarias para ser depositado no salão ministerial no 1º andar, onde em uma das paredes estava (e está até hoje) o quadro "A Pátria", de Pedro Bruno, de 1919, uma grande pintura, na qual uma família costura a bandeira nacional. (Ao contrário que erroneamente afirmam alguns pseudos historiadores, que seriam a esposa e as filhas de Benjamim Constant, é na realidade Flora Simas de Carvalho, apelidada de dona Iaiá, bordadeira de origem pernambucana, que vivia na Aldeia Imbui, na cidade fluminense de Niterói, e sua família). Essa bandeira do Brasil República seria a primeira a ser hasteada no país sob o novo regime de governo.

Comoção popular

Desde a divulgação da notícia da morte do presidente Getúlio Vargas, centenas de milhares de pessoas acorreram para o Palácio do Catete. O grande caixão negro, não podendo ser carregado em virtude do grande número de pessoas, desceu pelas mãos dos presentes que se acotovelavam nos degraus, passando sobre a cabeça de todos até chegar ao salão, onde foi colocado na eça. Quando descia o esquife, alguém tentou se agarrar a um grande lustre que iluminava a escadaria. Não aguentando o peso do pretenso Tarzan tupiniquim, veio a cair sobre várias pessoas, ferindo-as.

Ao chegar ao local do velório, irrompeu pela verdadeira multidão que se encontrava no Palácio do Catete o Hino Nacional Brasileiro, que foi repetido três vezes pelo emocionado coral improvisado. Às 17h30, teve início a visitação pública. Cenas pungentes foram vistas, choros, gritos e desmaios demonstrando o desespero do povo, na sua grande maioria gente humilde. A população que acompanhava os acontecimentos, principalmente pelo rádio, com a divulgação da notícia do suicídio do presidente, revoltada e exaltada, foi para as ruas protestar. Aglomerações foram se formando, populares irados iniciavam depredações, chegando a colocar fogo em peruas do jornal "O Globo", que havia feito uma cerrada campanha contra o Getúlio Vargas. Ameaçaram o prédio da Embaixada dos Estados Unidos, que só não foi invadida pela pronta ação de tropas do Exército.

Assim, as tropas, que o general Zenóbio dizia não poder contar, apareceram quase que por milagre. Entre 12 mil a 20 mil soldados foram destacados para proteger a cidade e garantir a ordem pública.

Em todo o Brasil, o povo, em estado de choque, saiu para prantear a memória de Getúlio Vargas. O comércio, por meio da Federação do Comércio, fechou suas portas em sinal de luto, bem como as escolas, repartições públicas, clubes, fabricas. A bandeira nacional foi hasteada no país inteiro a meio pau, em sinal de luto.

Em São Paulo, a população seguiu em passeata com retratos do presidente morto em direção ao prédio da Assembleia Legislativa do Estado, no Parque D. Pedro, onde a polícia, atônita com a multidão, reagiu com tiros e com bomba de gás lacrimogêneo; diversas pessoas saíram feridas. O pior ocorreu em Porto Alegre, onde a população da capital gaúcha invadiu e incendiou diversos prédios, como a "rádio Farroupilha" e o jornal "Diário de Notícias", ambos dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, que também tinha feito uma dura campanha contra Getúlio Vargas. A redação do jornal "Estado do Rio Grande do Sul", órgão do Partido Libertador, de oposição ao governo, também não escapou da fúria da população, bem como o Consulado dos Estados Unidos e uma boate chamada "América"

O vice-presidente, ainda de madrugada, não conseguindo dormir, retirou-se para a casa do médico Raimundo de Britto, seu amigo particular. Cansado, Café Filho foi dormir à base de tranquilizantes; de manhã ao acordar, ainda meio tonto, foi informado de que várias pessoas queriam falar-lhe. O anfitrião, sabedor de que o amigo era hipertenso, não quis informar de pronto da tragédia que tinha se abatido sobre o Brasil. Quando entrou abruptamente no quarto, o general Renato Onofre Pinto Aleixo, senador pelo PSD da Bahia, chorando, participou a triste notícia.

Logo depois, o general Caiado telefonou ao novo presidente para informar oficialmente o fato, com as seguintes palavras: "Sentindo-se traído, o presidente suicidou-se". Informou ainda que a família havia dispensado as honras oficiais.

No período da tarde, Café Filho foi para o Palácio das Laranjeiras, que era só utilizado para receber visitantes oficiais. O imóvel, administrado pelo Itamaraty, estava mal cuidado e cheirava a mofo. O sucessor ligou para o Palácio do Catete e transmitiu seus pêsames para o governador Amaral Peixoto, solicitando que ele fosse a seu encontro. Respondeu que era impossível naquele momento e designou seu colega de farda, o subchefe da Casa Militar, comandante Lúcio Meira, para representá-lo. Desconfiado de que Café quisesse visitar o corpo, Amaral Peixoto foi categórico para Meira: que o vice não viesse, pois poderia ser afrontado não só por membros da família, mas principalmente pelos amigos do presidente morto.

Não tendo outra opção, Café então mandou levar ao Catete uma coroa de flores com os seguintes dizeres: "Homenagem de Café Filho ao seu companheiro de 1950".

O seu primeiro ato legal como novo presidente do Brasil foi assinar o Decreto nº 36.114, que determinou luto oficial por oito dias em todo o território nacional.

A Carta Testamento do Presidente Getúlio Vargas

"Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço ea resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História".

(*) Antônio Sérgio Ribeiro, advogado, pesquisador e funcionário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

alesp