Apuração de assédio moral, violência física e sexual na Medicina da USP (continuação)

Comissão quer esclarecer as violações dos direitos humanos na USP
12/11/2014 18:35 | Da Redação: Keiko Bailone e Joel Melo - Foto: Roberto Navarro

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Representante do Coletivo Feminista Geni faz depoimento de abuso sexual em trotes na FMUSP<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-11-2014/fg165981.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais (CDH), presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT) realizou, na terça-feira, 11/11, audiência pública sobre as denúncias de violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Os deputados presentes à reunião, de maneira unânime, declararam seu apoio à comissão de sindicância e repudiaram as ações praticadas na faculdade de medicina. Leci Brandão (PCdoB) disse estar estarrecida com as denúncias, e solidarizou-se com as vítimas.

Beth Sahão (PT), disse ter ficado emocionada com o relato dos alunos e elogiou a coragem de relatar as violências sofridas durante os trotes. "Deve ser muito doloroso falar sobre esse trauma, pois é como vivê-lo novamente cada vez que se fala no assunto", disse Beth que destacou a necessidade de se acompanhar de uma maneira muito próxima o que está acontecendo dentro da principal instituição de ensino no Estado de São Paulo.

A deputada disse que a bancada à qual pertence se esforça para conseguir no Orçamento um percentual maior para a USP, mas que esse esforço não deve ser confundido com a criação de uma elite de estudantes que se consideram melhores que os outros colegas de faculdade ou de qualquer outra, dentro ou fora da USP.

Também o deputado Marco Aurélio de Souza (PT) parabenizou os alunos pela coragem e disse que a USP é apenas uma das muitas caixinhas escuras que devem ser abertas para a população a fim de serem mais bem fiscalizadas.



Racismo, homofobia e violência

Mônica Mendes Gonçalves, aluna do primeiro ano da Faculdade de Saúde Pública da USP, depôs sobre racismo sofrido por ela, em 30/4/2014. Lembrou que foi impedida de entrar numa festa da FMUSP, pelo fato de ser uma "mulher preta", como se autodefiniu. "A faculdade é do outro lado da rua, mas lá, os negros não chegam a 2% do total de alunos, o que por si só já é algo grave", mencionou a estudante.

Felipe Sacalise, aluno do 3º ano de Medicina da USP, autor do pedido da audiência, falou sobre as agressões sofridas desde que iniciou sua militância frente ao Núcleo de Estudos de Gênero, Saúde e Sexualidade (NEGSS). Contou que foi agredido por professores e ridicularizado por alunos membros da Atlética. Ao se expor junto com os coletivos, sofreu humilhações. "Grupos secretos de homossexuais têm medo de expor sua orientação sexual por medo de represálias em sua vida profissional", afirmou o aluno.

O estudante Augusto Ribeiro Silva, do 4º ano da FMUSP, ex-membro da Atlética, contou como funciona a estrutura interna dessa associação de alunos. "Têm de honrar as tradições e vencer as competições, que são bem hostis. Os aspectos hierárquicos são muito fortes, ou seja, os veteranos têm forte influência até hoje. A cobrança sobre os diretores é opressora e faltas cometidas por eles são punidas com métodos violentos".

"Há dois cadáveres nessa história", relembrou, ao se referir principalmente ao caso do calouro Edison Tsung Chi Hsueh, na piscina da Atlética, há 14 anos. Desde então, segundo Augusto Ribeiro Silva, está proibido o uso dessa piscina na recepção aos calouros. "Mas, esse ritual continua na chácara onde os calouros são obrigados a entrar na piscina", contou.

Ao falar sobre a Atlética, Augusto deixou claro que a associação é colocada como "um clube de machos" e as mulheres desempenham papel inferior. "São médicos que quando entram nesse ambiente permissivo tornam-se monstros", finalizou. Os alunos que depuseram na audiência pública deixaram claro que os trotes na Faculdade de Medicina da USP acompanham os alunos durante toda a sua vida acadêmica. Os apelidos, por exemplo, seguem até durante a vida profissional.



Necessária intervenção

Maria Amélia Teles, coordenadora da Comissão da Verdade, também se disse estarrecida após ouvir os depoimentos das alunas do Coletivo Feminista Geni e indignou-se com as atitudes de cunho machista manifestadas por alguns membros da Atlética.

Amelinha pediu intervenção do Poder Público para apurar denúncias feitas nessa audiência, "porque essa instituição é que forma a elite do País". Reinaldo Murano, ex-preso político e ex-aluno da FMUSP, ressaltou a importância política destas denúncias.

Na opinião de Francisco Miraglia, representante da Associação dos Docentes da USP (Adusp), o apelo à direção da FMUSP não vai resolver "pelo simples fato de que até hoje o regime disciplinar dessa faculdade segue os ditames da ditadura".

Miraglia criticou a militarização dos campi da USP e disse que a Adusp é "totalmente contrária à violação dos direitos humanos de quem quer que seja, ou seja, docente versus funcionário ou docente versus aluno ou aluno versus aluno". Casos assim, se comprovados, afirmou, têm de ser punidos, "sob risco de a autoridade prevaricar sobre providência negligenciada".



Faculdade doente

O professor de Patologia Paulo Saldiva, que ocupa atualmente o cargo de presidente da comissão que investiga as denúncias de violações dos direitos humanos, disse que as ações praticadas pelos veteranos, principalmente os ligados à Atlética e ao Show Medicina, demonstram que a faculdade está doente e que precisa de ajuda externa para vencer essa doença.

O professor disse que no seu tempo de aluno pertenceu à Atlética, "mas eram outros tempos". Saldiva disse que a comissão que preside foi criada para investigar os casos de alcoolismo. Porém, devido à grande quantidade de denúncias sobre abuso de drogas lícitas e ilícitas e até controladas " "pois os médicos têm a chave do cofre" ", além dos muitos casos de violência física, homofobia, racismo e violência sexual, a comissão ampliou suas ações e pode identificar que há uma crise de valores na USP.

Saldiva, entretanto, acredita que a comissão vai criar condições para encorajar novas denúncias, graças principalmente, segundo ele, à qualidade dos professores que compõem a comissão. "Mesmo setores que se sentiram ameaçados cederam e se juntaram a nós", lembrou Saldiva, que recebeu uma carta da Associação Atlética apoiando a comissão e do Show Medicina reconhecendo abusos cometidos.

Uma das primeiras ações sugeridas pela comissão será a criação de uma ouvidoria profissional que dará mais segurança para as pessoas que se sentirem ameaçadas terem voz. O professor acredita que a comissão não vai fugir à sua responsabilidade e vai reiterar ao colegiado da USP o apoio à apuração dos fatos. "A comissão permanente saberá responder a esse desafio", garantiu Saldiva.

O professor de Clínica Médica da FMUSP Milton de Arruda Martins, que também é membro da comissão, falou da "necessidade de rever os valores da nossa instituição" e da criação de um novo pacto em que todos os direitos humanos sejam respeitados.

Arruda disse que todos os relatórios produzidos pela comissão de sindicância serão enviados para a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia e para o Ministério Público. O professor disse ainda uma faculdade que pretende formar pessoas que vão defender a vida não pode conviver com atos da natureza daqueles relatados e que espera que um novo protocolo de ações seja aprovado pela congregação.

alesp