Pesquisador diz que trotes mais violentos estão associados a pessoas mais preconceituosas

Vítima de estupro adquiriu doença autoimune que geralmente acomete quem passa por trauma
12/01/2015 17:44 | Da Redação Fotos: Maurício de Souza

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O sociólogo Antonio Ribeiro Almeida Jr. (ao microfone) fala à CPI que investiga as violações dos direitos humanos nas universidades. <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-01-2015/fg166898.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga violações dos direitos humanos no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados 'trotes'<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-01-2015/fg166897.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Adriano Diogo ouve depoimento<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-01-2015/fg166895.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Adriano Diogo e Antonio Ribeiro Almeida <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-01-2015/fg166899.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

O sociólogo Antonio Ribeiro Almeida Jr. falou à CPI que investiga as violações dos direitos humanos nas universidades. A Comissão ouviu também o depoimento de uma aluna da Esalq, vítima de estupro.

O trote, um ritual de passagem usado no passado para acolher e igualar pessoas a um determinado grupo foi totalmente deturpado por alguns veteranos das universidades paulistas, que, a pretexto de aplicar trotes, impõem superioridade com sadismo e malevolência.

A explicação foi dada pelo professor da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz, de Piracicaba), Antonio Ribeiro Almeida Jr., que depôs, na tarde desta sexta-feira, 9/1, a essa CPI, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT).

Ribeiro, que realiza pesquisa sobre esse assunto desde 2002, classifica duas categorias de instituições: a primeira, em que o trote ocorre de maneira eventual, ou seja, um aluno humilha e provoca o outro, ocasionando situações graves em que pessoas ficam feridas ou humilhadas; e a segunda, em que o trote se torna recorrente, violento e faz parte da cultura da instituição, envolvendo docentes, alunos e funcionários. O sociólogo chamou a este último tipo, de instituição trotista. Para entrar em grupos desta instituição, as pessoas têm de ser testadas, humilhadas e violentadas e mesmo assim permanecer em silêncio.

"Cortina de fumaça"

Em suas pesquisas, Ribeiro elaborou um questionário para saber sobre a aceitação do trote. Numa primeira escala, perguntava se o aluno aceitava ou não o trote e se achava isso incomum ou se desconhecia. Numa segunda escala, questionava sobre tolerância ao trote. "Os que aceitam as práticas trotistas são os mais preconceituosos; essa correlação é bastante forte", concluiu, após os resultados. Para ele, mesmo os trotes leves funcionam como uma "cortina de fumaça" para os mais violentos.

Relatou o de um aluno que passou pelo trote "pasta cu", que consiste na aplicação de dentifrício no ânus. A vítima fez boletim de ocorrência, acusou o presidente do centro acadêmico da época, e foi aberta sindicância. Qual a surpresa de todos, ao ver que, no ano seguinte, esse mesmo agressor estava sendo premiado pelo então reitor da USP, Adolpho José Melfi (1994 a 1997 e eleito novamente em 2001) com menção honrosa por ter promovido trote solidário na USP.

O sociólogo esclareceu que comparecia à CPI para denunciar trotes violentos e contribuir para que as universidades se afastem de qualquer atividade cultural ou solidária que remeta ao universo do trote. "O trote leve funciona como uma cortina de fumaça para os mais violentos". Ele lembrou que em 1997, um aluno da Esalq suicidou-se, jogando-se nos trilhos do Metrô. A psicóloga desse aluno relatou, à época, que a principal queixa do estudante era sobre os trotes que sofria nessa instituição.

Caso impune na Esalq

Em outubro de 2002, uma estudante de apenas 18 anos foi estuprada por oito colegas na república Senzala, em Piracicaba, interior de São Paulo. Passados mais de doze anos, somente nesta sexta-feira, 9/1, a estudante da Esalq, acompanhada dos pais, resolveu falar sobre o caso.

Antes, a pedido do deputado Adriano Diogo, ela contou sobre seu histórico familiar. Entrou na Esalq aos 17 anos. A voz corrente é sempre a mesma: o trote é a única maneira de se fazer amigos, se enturmar. E assim foi. Entrou para um universo em que o álcool é corriqueiro, cultural e há um grande incentivo para isso. A aluna exemplificou com a frase: "o estudante que chega bêbado para assistir às aulas é aclamado como herói".

Em uma tarde de outubro, foi convidada para um grupo de estudos na Senzala. Lá se encontravam oito meninos de várias repúblicas. Ela era a única menina. A cerveja rolava solta. "Depois de um determinado momento, apaguei". Acordei toda molhada, a porta estava aberta... saí, já era madrugada, fui andando para a república onde morava", narrou.

Na manhã seguinte, soube que sua avó havia falecido e foi para a cidade onde se realizaria o velório. Quando voltou, começou o pesadelo. "Falavam que eu havia transado com oito meninos... as meninas com quem eu morava fizeram uma reunião e pediram para eu sair da casa sob a alegação de que me chamavam de vagabunda; na Esalq comentava-se o caso, inclusive os professores; as pessoas olhavam, davam risadinhas; um e-mail passou a circular, contando detalhes... consultei um psicólogo indicado pela direção da escola, mas, soube depois, o que expunha nas sessões tornava-se público".

A aluna recorda-se de estar tão atordoada que acabou saindo da casa. Pensou, mas não abandonou a Esalq. Voltou a estudar, viajando de sua cidade para Piracicaba todos os dias. Passou a ignorar os comentários e tocou a vida, com o incentivo dos pais.

Acometida por doença autoimune

Na opinião dos pais, não há dúvidas de que a filha foi dopada com alguma droga. Colocaram algo na bebida dela, "pois ela apagou", contaram. Procuraram o prefeito da Cidade Universitária de Piracicaba, que foi omisso. A direção fez uma reunião com os meninos, mas não passou de uma bronquinha do tipo "menino feio, não faça mais isso".

Os pais relataram que após o ocorrido, a estudante tornou-se apática, deprimida e até hoje leva uma vida bem restrita por conta de uma doença autoimune, a colangite esclerosante, rara e que acomete geralmente homens na faixa etária de 43 anos, que tenham sofrido um grande trauma.

Além dos gastos para o tratamento, os pais lamentam o fato de a única filha, já formada, não poder exercer plenamente sua profissão devido à doença.

Durante a sessão desta CPI, os pais entregaram ao presidente Adriano Diogo um papel, manuscrito, contendo os apelidos dos estudantes que estiveram na república Senzala naquela tarde: De Pé, da república Arado; Torre, da Fazendinha; Aeromoça, da Kantagalo; Kitota e Furão, da Senzala; Mirtino e Xota da Jacarepaguá e Croas, da Pau a Pique. Ao se confrontar com fotos de dois deles, o Aeromoça e o Xota num site da Internet, a estudante os reconheceu .



Os trotes na Esalq

A estudante contou sobre alguns trotes da Esalq. O do chapéu acontece na primeira semana de aula. O aluno escreve o nome no chapéu e se apresenta a um veterano. O ritual para essa apresentação é feita de joelhos e o calouro atribui a sim mesmo uma série de adjetivos pejorativos enquanto refere-se ao veterano com nomes os mais elogiosos possíveis. Quanto mais o calouro se apresenta, mais assinaturas ganha.

O "ralo monstro" acontece à noite nos quintais das repúblicas. Os meninos são separados das meninas. Todos são obrigados a praticar exercícios físicos, mas os meninos apanham muito com ripa de estrado de cama. São obrigados a fazer flexão nus, com o nariz no ânus do colega da frente. Enquanto isso, tomam cerveja e "reforço", uma mistura de vômito e comida estragada. Depois, os meninos são abandonados nus em algum canavial, longe e têm de voltar à noite, nus e bêbados. Esse ritual começa na semana de recepção e termina em 13 de Maio, quando se comemora a libertação dos escravos.

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