FuncionAL - Com vocês, Antônio


07/07/2017 19:20 | Manuela Sá

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Antônio Braz Filho - arquivo pessoal<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2017/fg205085.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Para além de tijolos e concreto, um lugar se estabelece a partir das pessoas que escrevem sua história. É sob a perspectiva do indivíduo, suas experiências e marcas, que esse espaço se reconhece e se redimensiona, dando contorno a universos particulares e coletivos. E permitindo que seus traços arquitetônicos se misturem às contradições e vivências daqueles que o ocupam.

Nesse imaginário coletivo, nem sempre é possível dizer onde começa um e acaba o outro. A história da Assembleia é, portanto, a história das pessoas que por lá passaram. Que lá ainda estão. Nada mais legítimo, portanto, que a Casa do Povo tenha suas linhas escritas por sua gente.

Por isso, a Assembleia Legislativa de São Paulo inaugura hoje um espaço destinado aos seus personagens. Às pessoas que contribuíram por meio de seu trabalho e que, por que não dizer, foram fundamentais na construção do maior Legislativo do País.

Sejam bem-vindos à FuncionAL!

Antônio Braz Filho

Todo ano, há uns oito pelo menos, afirmam os mais chegados, ele diz que "é o último". Lá se foram 97. Dono de uma vitalidade e de um humor que colocam em xeque sua idade e a própria história, Antônio Braz Filho é do tipo que flerta com a vida com a leveza de quem já entendeu como ela funciona e com o deboche de quem, à sua maneira, aprendeu a domesticá-la. Coleciona ofícios, pessoas, endereços e detém uma memória que dá conta de nomes, sobrenomes e caminhos interior afora.

Mineiro de Jacutinga, desembarcou em São Paulo com pouco mais de vinte anos. Para nunca mais voltar. Aqui construiu casa, família, sonhos. E chegou à Assembleia Legislativa de São Paulo no dia 9 de agosto de 1965, em meio à Ditadura Militar.

À frente do volante de um Dodge Dart, conduziu autoridades e um futuro que sua infância cercada de toda sorte de dificuldades não permitiria vislumbrar. "Fiz minha vida ali. A Assembleia me trouxe a chance de acompanhar, do lado de dentro, a melhor e a pior parte da política. Não há jeito melhor de conhecer as pessoas do que dar poder a elas."

Infância em Jacutinga

Filho de uma família de cinco crianças, Nico, como era conhecido, cresceu com banhos de rio, panelas de polenta, trabalho na lavoura e uma dúzia de mazelas características da falta de dinheiro e juízo do pai. "Meu avô tinha uma manada de burros e meu pai ia até a cidade para negociar os animais. Numa das vezes, ele voltou sem os burros e sem o dinheiro. Ficamos sem nada".

Perdeu o pai aos quinze anos, que se suicidou após "beber" o salário dos funcionários da fazenda que administrava, e assumiu, ao lado da mãe e dos avós, a tarefa de cuidar da casa e dos irmãos. Deixou a escola no quarto ano primário, sabendo ler e escrever. "O resto eu aprendi com a vida mesmo".

Permaneceu ao lado da família até os 18 anos, quando decidiu se alistar no Exército. Ali, viu a sorte lhe sorrir, de fato, pela primeira vez, quando a dias de embarcar para a Itália, onde lutaria ao lado dos americanos, foi avisado de que a guerra chegara ao fim. "Escapei na última hora", atesta.

Oi, São Paulo

Deixou a farda rumo a Londrina, onde pretendia arrendar "um pedaço de chão". Mas seu destino final foi a Estação da Luz. Ele fincava pé na cidade pela primeira vez e, embora ainda não soubesse, aqui permaneceria pelos próximos setenta anos.

A "locomotiva do País" abria suas portas para o mineiro cheio de vontade. Em alguns dias, o filho da Dona Silvina e do Seo Antônio já era funcionário da então maior fábrica de borracha do mundo, a Goodyear. O encontro com os americanos tinha sido apenas postergado. "Eles gostavam de gente forte e eu era grandão. Tinha que fazer, em oito horas, dez pneus. Mas eu fazia 28. Fui juntando meu dinheiro".

Os americanos, que "gostavam de gente forte", não eram tão afeitos a paralisações. Uma greve geral dos funcionários determinava, cinco anos depois, o fim da sua história com o Tio Sam. "Me mandaram embora porque achavam que eu era comunista".

Sempre se ocupando de dois trabalhos, Antônio chegou a montar um posto de gasolina, fazer entregas com carreto e ser motorista de praça. Mas foi na Imigração que viu sua sorte mudar novamente. Lá, na sede responsável por acolher os estrangeiros que desembarcavam no Brasil, conheceu Leônidas Ferreira, então diretor. "Ele concorreu a deputado estadual e trabalhei com ele na campanha como motorista. Ele ganhou e me levou para trabalhar na Assembleia."

A Casa

Ali, no Parque Don Pedro II, quase no ponto em que a Ipiranga cruza com a avenida São João e onde ensaiou seus primeiros passos desajeitados na Paulicéia, o menino Nico se tornou o "Braz", mais novo motorista da Presidência e homem de confiança de nomes que até então ele seguia com os olhos afoitos pelos jornais.

Então sede da Assembleia, o Palácio das Indústrias abrigou diversos Poderes, mas também deu conta dos sonhos e das pretensões do Seo Braz, que transformou as incertezas da infância em oportunidades e se "vingou" da vida trabalhando.

Foram milhares de quilômetros rodados. Não há cidade de São Paulo que escape à sua memória. "Às vezes, pegávamos a estrada de madrugada, cheia de cerração. E o deputado perguntava: "Braz, você tá enxergando a estrada"? E eu dizia: "O senhor está? Eu também não". E descia a serra com Deus, as almas e a Virgem Maria."

A sorte lhe sorriria novamente, pela terceira vez, com a chegada da Dona Diva, sua companheira de vida há sessenta e três anos. "Fui seu primeiro e único namorado". Com ela, teve o Flávio, filho único do casal.

Ao lado do deputado Francisco Franco, o "Chiquito", então presidente da Casa, acompanhou a construção do Palácio 9 de Julho, futura e atual sede da Casa. "Íamos com frequência inspecionar o canteiro de obras. Vi aquele lugar subir do zero e estive lá na sua inauguração".

Ao lado dele, rodou o Estado. Sua pontualidade e destreza ao volante lhe conferiram novas oportunidades. Atuou ao lado de Agnaldo Rodrigues de Carvalho Júnior e Nabi Abi Chedid, líderes do governo. E de figuras lendárias como Antônio Salim Curiati, atualmente o mais longevo parlamentar em atuação no Legislativo paulista.

Sua sorte mudou novamente quando Roberto Costa de Abreu Sodré, com quem já havia trabalhado durante seu mandato de deputado estadual, foi nomeado, pelo regime militar, governador de São Paulo. "Quando ele me viu, no dia da posse, ao lado dos outros motoristas, gritou de longe: "você vai trabalhar com a Maria"."

O governo

A Maria, no caso, era a Dona Maria do Carmo Mellão de Abreu Sodré, primeira-dama do Estado e conhecida por abandonar o "papel decorativo" de esposa do governador para assumir seu gosto e vocação pela política e pelos debates.

Ao longo dos quatro anos em que esteve à frente do Ford Galaxie Landau, Braz ampliou, além de sua coleção de quilômetros, seu repertório de histórias. "Tive a chance de levar as maiores autoridades do mundo e de conhecer pessoas que nunca imaginei."

Entre as personalidades que ocuparam o banco de trás do Seo Braz constam nomes como a rainha Elizabeth, a primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, o rei da Bélgica e a imperatriz Michiko, do Japão. O fim do governo Sodré, em 1971, culminou com o retorno à Assembleia, onde permaneceu até se aposentar. Quase vinte anos depois.

Os motivos

A sorte lhe sorriu mais tantas outras vezes depois. Talvez de forma mais contundente, como ele diz, em três ocasiões em especial. Isso porque de todos os papéis que desempenhou, nenhum lhe confere mais orgulho do que o de avô. "Carreguei esses três caboclos pra cima e pra baixo. Ensinei os três a dirigir e sempre fui o primeiro a chegar na porta da escola para buscá-los."

Leitor assíduo de jornal e debatedor da cena política nacional, Braz segue arriscando palpites e comparecendo impreterivelmente a cada dois anos às urnas, prática que conserva há oito décadas. Leva consigo as memórias de uma trajetória que cruzou gerações e a experiência de quem assistiu à história do banco da frente.

Mas de todas as experiências vividas ali, tão perto do poder, talvez nenhuma tenha sido mais importante do que ver o filho, advogado formado, subir a rampa da Assembleia como funcionário concursado. "Motorista não entrava pela porta da frente. Ele entrou. Sabe lá o que é ter um filho doutor?"

alesp