O Viaduto do Chá e o Legislativo paulista

A historia do viaduto "cartão postal" da cidade de São Paulo
20/07/2004 16:18

Compartilhar:


Da Divisão de Acervo Histórico

acervo@al.sp.gov.br

Até o século XIX a cidade de São Paulo praticamente se circunscreveu entre os vales do Tamanduateí e Anhangabaú, cujas baixadas se conservavam alagadiças e intransponíveis, a não ser por pontes. Não existia ligação direta entre a região então conhecida como Piques - - hoje Praça da Bandeira - e a rua São João. Com o crescimento econômico, o aumento populacional conseqüente e a expansão da cidade em direção à Praça da República e adjacências, fazia-se necessária uma grande caminhada para ir do centro ao então bairro do Morro do Chá, assim chamado por conta das plantações de chá ali iniciadas pelo marechal José Arouche de Toledo Rendon.

Em 1877 o litógrafo francês Jules Martin expôs em seu escritório uma imagem mostrando uma ponte que era um prolongamento da rua Direita até a rua do Barão de Itapetininga. Esta simples mas extraordinária idéia foi apresentada em nome do engenheiro Alexandre G. Ferguson, em 1879, à Câmara Municipal da Imperial Cidade de São Paulo. Era mais que uma simples ponte: tinha 160 metros de extensão e 14 metros de largura, dando passagem a bondes, carroças e pedestres. Envolvia ainda, um total de 41 prédios de ambos os lados, para serem alugados a estabelecimentos comerciais.

A Câmara Municipal julgou ser necessário obter "poderes para desapropriação e criação de um imposto de pedágio" , enviando a proposta ao Legislativo Paulista em 27 de março de 1879. Transformada em projeto de lei, foi aprovada pela Assembléia, mas recebeu, em 4 de maio, o veto do Presidente da Província, Laurindo Abelardo de Brito, que assim o justificou:

"O projeto procura favorecer o plano de um importante melhoramento para a Capital da Província concedendo à respectiva Câmara Municipal autorização para contratar com Alexandre J. Ferguson, ou com quem melhores condições oferecer, a construção de um viaduto destinado a comunicar a rua Direita com a do Barão de Itapetininga no Morro do Chá, mas, autorizando para esse fim no artigo 3º a mesma Câmara a desapropriar prédios e terrenos precisos para a dita construção, deixa em dúvida se a Câmara faz as despesas da desapropriação à custa de seus cofres, o que é impossível, já que estes não suportam sem déficit os seus encargos ordinários, ou se à conta do concessionário é levado esse sacrifício, e, finalmente, a quem pertencem os prédios e terrenos desapropriados, de um outro modo, se à Câmara Municipal ou concessionário. Sendo incompleto nesta questão o projeto, não é possível afirmar se o mesmo consulta os interesses desta importante Cidade ou favorece uma pretensão individual. Por estas razões nego sanção."

Construção autorizada

No ano seguinte, o próprio Jules Martin a reapresentou, em 18 de fevereiro de 1880, contando com o apoio técnico do engenheiro E. Stévaux. Agora o enfoque central da propositura era o de autorizar o governo provincial a contratar, sem ônus para os cofres públicos, Jules Martin, ou quem oferecesse melhores condições. Desta vez recebeu a sanção do Presidente da Província e transformou-se na Lei Provincial nº 48, de 1880.

Com base nela foi assinado um contrato, em 26 de novembro de 1880, subscrito por Jules Martin e o Presidente da província Laurindo Abelardo de Brito. Nele ficava estabelecido que a contratação de Jules Martin para a construção do viaduto lhe dava um privilégio por 50 anos, além de poder pleitear isenção de impostos municipais e provinciais para a construção. O contrato definia ainda que as obras seriam iniciadas em um ano a partir da assinatura e concluídas em três anos.

Algumas características da obra foram definidas: o documento determinava que todas as casas erguidas no viaduto seriam de sobrado; a rua teria a largura de 14 metros, sendo três metros para cada um dos passeios, e de oito metros para a rua propriamente dita; definia que competia a Jules Martin a primeira arborização da referida rua, conservando distância de oito metros entre cada árvore e que o aterro teria a inclinação de 1½ de base por 1 de altura, e as edificações seriam feitas sobre pilares e arcadas partindo do terreno natural. Também afirmava que "desde que seja aberta a rua ao trânsito público, será ela entregue gratuitamente pelo concessionário à Câmara Municipal, a fim de custeá-la como de direito" e que Jules Martin não cobraria imposto algum de trânsito.

A sua última cláusula determinava que o contrato ficava dependendo de aprovação da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo. Em 17 de janeiro de 1881 Jules Martin oficiou à Assembléia solicitando aprovação, além de propor ampliação dos prazos de construção (de um para dois anos para o início das obras e de três para cinco anos para sua conclusão), o estabelecimento da isenção dos impostos municipais e provinciais por 50 anos e que a propriedade dos prédios e terrenos seriam de plena propriedade de Martin. Tal pleito foi atendido e resultou na Lei Provincial nº 73, de 17 de junho de 1881.

Propriedade

No entanto, a questão da propriedade, em razão de uma redação imprecisa, acabou gerando grande polêmica. A Lei nº 73 afirmava, em seu artigo 2º, que "findos os 50 anos da concessão, o Concessionário fica com a nua propriedade de todos os edifícios que construir". Jules Martin, em carta aos deputados da Assembléia Provincial, pleiteou a modificação do texto, pois via um paradoxo nesta formulação: "Como não poderia ter tido a pretensão de construir edifícios para outros os gozarem, ficando-lhe apenas depois do 50 anos da concessão, a propriedade sem o usufruto". Assim, Martin propunha que a expressão "nua propriedade" fosse substituída por "plena propriedade", o que acabou sendo concedido através da Lei Provincial nº 48, de 18 de Abril de 1882.

Três anos depois, novamente a Assembléia Legislativa, por meio da Lei Provincial nº 65, de 23 de março de 1885, promoveu algumas modificações no contrato de 1880. Devem ser destacadas três delas: a substituição do aterro por um viaduto de ferro; a volta do direito de cobrança de pedágio por parte de Jules Martin, "pela passagem de pessoas a pé, cavaleiros, carros, bondes e outros veículos" e a possibilidade de desapropriação do viaduto, depois de cinco anos, por utilidade pública, "pagando o capital despendido e mais a quantia que faltou para completar o juro de 8% ao ano, sobre o dito capital, caso a renda de pedágio tenha sido inferior a esta porcentagem nos anos anteriores" à desapropriação.

Foi constituída uma sociedade, a Companhia Paulista do Viaduto do Chá, para a construção da obra, iniciada em 1889. O Viaduto foi inaugurado em 6 de novembro de 1892. Logo, porém, o encanto da população com a novidade foi substituído pelo descontentamento com o pagamento do pedágio de "três vinténs" para passar pelo viaduto. A opção pelo não pagamento obrigava o transeunte a dar uma longa volta para cruzar o vale do Anhangabaú. Logo se iniciou uma campanha na cidade pelo fim do pedágio. Em 5 de junho de 1893 o Congresso Legislativo do Estado de São Paulo (nome que o Legislativo paulista teve, abrigando Câmara e Senado, de 1891 a 1930) recebeu um livro de 157 páginas, conservado pela Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, no qual 3.636 paulistanos pediam o fim do pedágio e a encampação do Viaduto do Chá:



"Certos do vasto horizonte que descortina vossa largueza de vistas na realização do progresso, não só material, como intelectual e moral do Estado de S. Paulo, vimos os Cidadãos, adiante assinados, chamar vossa esclarecida atenção para uma medida do mais elevado alcance, e que tem sido insistentemente reclamada, já pela imprensa, já pelo povo em geral.

É essa medida a encampação do Viaduto do Chá. Essa monumental ponte, sem competidora na América do Sul, concorre já para o desenvolvimento de uma das zonas mais importantes desta Capital, como sejam os Distritos da Consolação e de Sta. Ifigênia.

O pedágio, porém, que, com todo o direito, cobra a Companhia Ferro Carril de S. Paulo, a qual dotou esta Cidade de tão momentoso melhoramento, tem sido um verdadeiro óbice às grandes proporções a que ainda pode chegar o adiantamento da referida zona.

Além deste motivo, por si só mais que suficiente para se dar a encampação do Viaduto, há a repugnância que nutre o povo pelo empecilho que, com o pagamento do pedágio, se põe à sua livre locomoção, repugnância que tem sido causa de sérios Conflitos, mormente em ocasiões de festas populares, cujos Concorrentes em grande parte passam violentamente, sem satisfazer a devida retribuição.

Cumpria a Câmara Municipal levar a efeito tal desideratum. Sendo-lhe isso impossível atualmente, à vista do melindroso estado de suas finanças, ao patriótico Congresso, de que é a parte mais considerável a ínclita Corporação a que nos dirigimos, é que Compete resolver a tal respeito.

Rogamos-vos, pois, que, tomando na devida Consideração este assunto, vos digneis votar uma lei, autorizando o Ilustre Cidadão que mui acertadamente preside os destinos deste Estado, a encampar o Viaduto do Chá".

No dia 30 de setembro de 1896, por lei municipal, o Viaduto do Chá foi encampado pela cidade de São Paulo, mediante ressarcimento aos antigos concessionários. O primitivo viaduto metálico foi demolido em 1938 para dar lugar ao atual Viaduto do Chá.

alesp