Dia Mundial sem Carro: oportunidade de refletir sobre a humanização do trânsito


20/08/2004 15:02

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Engenheiro Eduardo José Daros, presidente da Associação Brasileira de Pedestres (Abraspe)<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/dia sem carroA.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Dia 22 de setembro é o Dia Mundial sem Carro. A data foi instituída em 1998 pelo Ministério do Meio Ambiente da França, e diversas entidades e associações têm se incumbido de divulgar a data pelo mundo e promover campanhas de adesão ao evento.

No Brasil, ocorrem um milhão de acidentes de trânsito por ano, com cerca de 350 mil feridos e 50 mil mortos, dos quais 40 a 50% são pedestres. São números alarmantes como esses que levam diversas entidades pelo mundo a se dedicarem à busca de alternativas ao transporte rodoviário e à humanização das relações entre pessoas e veículos.

Há 20 anos, o número de mortos em acidentes era de 20 mil, 9 mil deles pedestres (dados do Departamento Nacional de Trânsito - Denatran). O aumento da proporção de pessoas que andam a pé mortas em acidentes de trânsito mostra que algo tem que ser modificado no atual sistema, que submete a segurança das pessoas à fluidez do tráfego.

Entre mais de 300 artigos, o Código Nacional de Trânsito (Lei 9503/97) dedica aos pedestres não mais que seis (68, 69, 70, 71 e 254), nos quais se estabelecem seus direitos e deveres e as obrigações do poder público para a preservação de sua segurança, além de fixar punição em forma de multa para os casos de desobediência. Desses números depreende-se, sem dificuldade, que a legislação tem como foco o trânsito de veículos, conseqüência natural de traçados viários e planejamentos de transporte que sempre deram prioridade às rodas e não aos pés.

Falar de pedestres também é falar dos usuários dos transportes coletivos e dos espaços públicos: que fique claro que dia sem carro não é dia sem transporte. Pedestres e usuários de transportes públicos têm diversas feições, alguns com necessidades especiais, além de portadores de deficiências, mas todos com direito a tratamento digno no trânsito. A discussão sobre a segurança e conforto dos pedestres alcança diversas áreas, desde os sistemas viários até a filosofia reinante no meio social, que pode dar prioridade ao ser humano ou ao fluxo de veículos.

Quando se pensa em trânsito e sua briga diária com pedestres, pensa-se sempre em metrópoles, como a cidade de São Paulo, que, em razão de suas dimensões físicas e humanas, concentra evidentes problemas. Mas fora das metrópoles o perigo aos pedestres, se não igual, é até maior. As grandes cidades, por diversas razões, costumam ter o trânsito mais organizado (ainda que mais lento por diversas causas, como a quantidade de veículos, por exemplo), com espaços demarcados, faixas de travessia, semáforos, calçadas com medida padrão, enfim, com algum planejamento.

Nas cidades pequenas e na área rural, entretanto, muitas vezes a estrada é disputada entre veículos, até de grande porte, com pessoas a pé, que se espremem nas margens da via, engolindo poeira e correndo sérios riscos de atropelamento.

Em São Paulo se encontram freqüentemente, por sua vez, outros fatores de risco, como faixas de pedestres desgastadas, rebaixamento de calçada de um lado da rua sem o correspondente do lado oposto, travessia de pedestres que termina em obstáculos físicos como postes e caixas de telefone, além do mau estado geral de calçadas, piso inadequado e deficiência de iluminação pública.

Dia sem carro

Propostas de melhorias nas condições gerais das cidades para garantir não só segurança, mas também conforto às pessoas, respeitando seus limites e necessidades, levaram à fundação, em 5 de junho 1981, de uma organização: a Associação Brasileira de Pedestres (Abraspe), presidida pelo engenheiro Eduardo José Daros, que tem o objetivo de lutar pelos direitos dos que andam a pé, pela mudança de mentalidade que sujeita o pedestre aos veículos, denunciando irregularidades e divulgando propostas para uma convivência melhor no trânsito.

A instituição é filiada à Federação Internacional de Pedestres, organismo internacional que atua em diversos países. Daros conta que, especialmente nos países nórdicos, já há uma cultura mais voltada para o ser humano, com sistemas de trânsito e de transporte mais racionais.

Nascido em Ponta Grossa (PR), Eduardo José Daros é engenheiro civil formado pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Economia pela Universidade Stanford, na Califórnia (EUA). Foi perito da Organização das Nações Unidas no grupo da Comissão Econômica para a América Latina, fundador da Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (Geipot) e, hoje, presta consultoria na área de economia e planejamento de transportes.

Daros conta que a associação começou por causa de um incidente. Quando morava no Rio de Janeiro, sentiu-se constrangido a passar pela rua com o carrinho de bebê em que estava sua filha de poucos meses, numa avenida movimentada, por conta de um carro estacionado sobre a calçada, expondo os pedestres a risco de atropelamento. Depois, já morando em São Paulo, no Pacaembu, o crescimento do sistema viário, com grandes avenidas que cortavam bairros ao meio, fez com que refletisse sobre os longos trajetos que o pedestre devia fazer para poder alcançar o outro lado de vias expressas que "esqueceram" que tem gente que anda a pé.

Junto de arquitetos e outros especialistas, a Abraspe começou como um grupo de pressão, escrevendo cartas às autoridades, fazendo denúncias. Mas logo Daros percebeu que esse não era o caminho. Seria preciso procurar soluções, copiar aquelas que em outros lugares deram certo e procurar encaminhar as sugestões junto aos técnicos.

Responsabilidade legal

Segundo Daros, a legislação brasileira já evoluiu bastante, especialmente ao reconhecer que andar a pé é uma forma de transporte. Ele explica: "Antes, a via pública era somente a área de trânsito de veículos, excluído todo o resto. Agora, a lei prevê que estão incluídas as calçadas, de muro a muro. Assim, quem transita na calçada a pé está fazendo uso de um meio de transporte, e está inserido nas normas de trânsito."

Há, inclusive, a previsão de punição para o pedestre, caso descumpra qualquer dos seis incisos do artigo 254 do Código Nacional de Trânsito. A infração é considerada leve e a penalidade é multa de 50% do valor previsto para a infração considerada leve.

Como multar o pedestre? O presidente da Abraspe não acredita na via punitiva, mas no investimento em educação e mudança de comportamento. Ele sabe que são medidas de longo prazo, e que é preciso a boa vontade não só do Poder Público, mas também do pedestre. Um dos grandes problemas nos sistemas de transporte de massa é o comodismo, que faz com que o usuário prefira um trajeto pior e mais longo a um que exija baldeações.

Para Daros, todos sabem que hoje é inviável ter um bom sistema de transporte público sem coordenar diversos tipos de alternativas, como metrô, ônibus e trens. Mas a racionalização do uso é a palavra-chave: nos corredores, por exemplo, ele acha que se deve adotar um sistema de "metronização", ou seja, criar trajetos em que os veículos constituam comboios de ônibus, com um itinerário pré-determinado do corredor, não do veículo. Seria como um metrô sobre pneus - o que, por sinal, já funciona em Curitiba com excelentes resultados.

Calçadão é solução?

Para Eduardo Daros, calçadões não resolvem. Em diversos países europeus, os centros históricos são fechados aos veículos, por razões que vão desde a segurança do patrimônio, preservação contra poluição até o problema de largura de vielas medievais, que muitas vezes mal permitem a passagem de uma lambreta. Porém, em São Paulo, Daros acredita que o calçadão foi um exagero. Feito para melhorar o centro da cidade, acabou por criar problemas para diversas atividades, especialmente pelo impedimento do trânsito à noite: o público motorizado acabou por deixar de freqüentar locais aos quais o acesso de veículos ficou restrito por causa do calçadão.

A Abraspe acredita em soluções práticas: não é possível eliminar veículos motorizados particulares, mas é possível que o trânsito seja fluido e organizado. É possível haver transporte público de boa qualidade, confortável e acessível a todos; reduzir os riscos de andar a pé, com sinalização adequada e que leve em conta a diferença de velocidade do veículo e do pedestre. Tudo depende de boa vontade, tanto dos órgãos públicos das três esferas de governo, quanto da população. Do governo, espera-se investimentos e bom senso. Da população, educação do motorista e do pedestre.

O dia 22 de setembro não é só um dia para tentar deixar o carro em casa, é um dia de reflexão para aqueles envolvidos em melhorar a relação entre o homem e o transporte. Nesse dia, a Abraspe deve reunir técnicos, associados e especialistas no assunto na sede do Instituto de Engenharia, conhecer o que há de experiências novas e bem-sucedidas e continuar tentando sensibilizar as autoridades para a necessidade de adotar práticas que melhorem cada vez mais a convivência entre motoristas e pedestres.

Saiba mais:

A Abraspe mantém o site www.pedestre.org.br. Ali, pode-se obter informações sobre a associação, sobre outras entidades e órgãos ligados aos transportes e ao trânsito e também sobre acessibilidade. Muito interessante ler, no mesmo site, a palestra de Eduardo J. Daros sobre acidentes de trânsito e comportamento humano, feita no I Encontro Nacional para Prevenção de Acidentes de Trânsito e Primeiros Socorros ao Acidentado, em 1988, na qual aborda riscos, soluções técnicas e educação para o trânsito.

Em Belo Horizonte, a ONG Rua Viva - Instituto da Mobilidade Sustentável, fundada em 1999, também mantém o site www.ruaviva.org.br, com informações e artigos a respeito do assunto.

O que diz o código Nacional de Trânsito sobre o pedestre

Art. 68. É assegurada ao pedestre a utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas e dos acostamentos das vias rurais para circulação, podendo a autoridade competente permitir a utilização de parte da calçada para outros fins, desde que não seja prejudicial ao fluxo de pedestres.

§ 1º O ciclista desmontado empurrando a bicicleta equipara-se ao pedestre em direitos e deveres.

§ 2º Nas áreas urbanas, quando não houver passeios ou quando não for possível a utilização destes, a circulação de pedestres na pista de rolamento será feita com prioridade sobre os veículos, pelos bordos da pista, em fila única, exceto em locais proibidos pela sinalização e nas situações em que a segurança ficar comprometida.

§ 3º Nas vias rurais, quando não houver acostamento ou quando não for possível a utilização dele, a circulação de pedestres, na pista de rolamento, será feita com prioridade sobre os veículos, pelos bordos da pista, em fila única, em sentido contrário ao deslocamento de veículos, exceto em locais proibidos pela sinalização e nas situações em que a segurança ficar comprometida.

§ 4º (VETADO)

§ 5º Nos trechos urbanos de vias rurais e nas obras de arte a serem construídas, deverá ser previsto passeio destinado à circulação dos pedestres, que não deverão, nessas condições, usar o acostamento.

§ 6º Onde houver obstrução da calçada ou da passagem para pedestres, o órgão ou entidade com circunscrição sobre a via deverá assegurar a devida sinalização e proteção para circulação de pedestres.

Art. 69. Para cruzar a pista de rolamento o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta, principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos, utilizando sempre as faixas ou passagens a ele destinadas sempre que estas existirem numa distância de até cinqüenta metros dele, observadas as seguintes disposições:

I - onde não houver faixa ou passagem, o cruzamento da via deverá ser feito em sentido perpendicular ao de seu eixo;

II - para atravessar uma passagem sinalizada para pedestres ou delimitada por marcas sobre a pista:

a) onde houver foco de pedestres, obedecer às indicações das luzes;

b) onde não houver foco de pedestres, aguardar que o semáforo ou o agente de trânsito interrompa o fluxo de veículos;

III - nas interseções e em suas proximidades, onde não existam faixas de travessia, os pedestres devem atravessar a via na continuação da calçada, observadas as seguintes normas:

a) não deverão adentrar na pista sem antes se certificar de que podem fazê-lo sem obstruir o trânsito de veículos;

b) uma vez iniciada a travessia de uma pista, os pedestres não deverão aumentar o seu percurso, demorar-se ou parar sobre ela sem necessidade.

Art. 70. Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto nos locais com sinalização semafórica, onde deverão ser respeitadas as disposições deste Código.

Parágrafo único. Nos locais em que houver sinalização semafórica de controle de passagem será dada preferência aos pedestres que não tenham concluído a travessia, mesmo em caso de mudança do semáforo liberando a passagem dos veículos.

Art. 71. O órgão ou entidade com circunscrição sobre a via manterá, obrigatoriamente, as faixas e passagens de pedestres em boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização.

Art. 254. É proibido ao pedestre:

I - permanecer ou andar nas pistas de rolamento, exceto para cruzá-las onde for permitido;

II - cruzar pistas de rolamento nos viadutos, pontes, ou túneis, salvo onde exista permissão;

III - atravessar a via dentro das áreas de cruzamento, salvo quando houver sinalização para esse fim;

IV - utilizar-se da via em agrupamentos capazes de perturbar o trânsito, ou para a prática de qualquer folguedo, esporte, desfiles e similares, salvo em casos especiais e com a devida licença da autoridade competente;

V - andar fora da faixa própria, passarela, passagem aérea ou subterrânea;

VI - desobedecer à sinalização de trânsito específica;

Infração - leve;

Penalidade - multa, em 50% (cinqüenta por cento) do valor da infração de natureza leve.

alesp