UM TAPINHA NÃO DÓI, DESTRÓI!!! - OPINIÃO

Arnaldo Jardim*
20/02/2001 17:04

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Eles gritam "cachorra". Elas respondem "au, au". E num desfilar de músculos, coxas, bíceps, seios e quadris, os nus ganham a tela e fazem subir o Ibope de uma determinada rede de TV.

Zap... A outra emissora responde no mesmo tom: a miss Brasil diz ter achado na cirurgia plástica a resposta para conseguir se transformar em miss Universo. E o cirurgião, de abdome protuberante, desfila sua mulher (não seria um objeto?) mostrando as maravilhas das cirurgias que ele realizou.

Zap...Num outro canal a ex-Balão Mágico, Simony, cujas canções embalaram os sonhos infantis de milhares de pessoas neste país, exibe sua gravidez e faz apologia ao seu marido, hóspede do Carandiru, o rapper Afro-X.

A mesma Simony, por ironia do destino, é também notícia que rouba os preciosos minutos dessa esplendorosa demonstração de serviços prestados à cultura, por nossa televisão. Os plantões do jornalismo da emissora revelam rebelião simultânea em dezenas de presídios do Estado de São Paulo (a maior da história) e ela está entre os reféns, já que visitava seu amado.

A violência real invadiu a violência virtual, disfarçada de fantasia e entretenimento, nas telas da TV. E o funk se fez fúnebre e as imagens de presidiários nus, capitulados e encostados à parede, me remeteram aos homens e mulheres seminus que cantavam o funk da cachorrona.

Sem querer, a TV pode ter prestado um serviço a si própria e à sociedade, na medida em que fantasia e realidade cruamente se encontraram desnudando o apodrecimento do tecido social.

Afinal, que sociedade queremos deixar para nossas gerações futuras: uma sociedade onde o crime determina a música que devemos dançar?; uma sociedade que faz da mulher um amontoado de carne, ossos e silicones amoldados conforme os ditames estéticos de não se sabe quem?; uma sociedade que crê ser absolutamente natural e normal uma artista fazer a apologia de um presidiário e querer nos convencer de que o seu amado é um injustiçado?; uma sociedade nivelada por baixo, contaminada por valores oriundos de uma exclusão social absurda?

Que isso nos sirva de lição. Não adianta fugir do problema. Não adianta apenas migrar da escola pública para a particular; da casa para o apartamento; dos condomínios regulares para os condomínios fechados; dos carros comuns para os carros blindados. A cada solução individual, aprofunda-se a falta de solução coletiva e a exclusão já não bate à nossa porta; ela entra pela tela da TV e não adianta trocar de canal.

Se não enfrentarmos e vencermos o desafio de acabar com a miséria e de promover uma profunda transformação econômica, social e educacional, estaremos definitivamente condenados a viver no fosso que nós mesmos construímos.

alesp