A CASERNA DE FHC - OPINIÃO

Renato Simões*
17/08/2001 16:05

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Dezesseis anos nos separam da ditadura militar que, de 1964 a 1985, abateu-se sobre o país. Uma Constituição, proclamada pelos seus autores como "cidadã", está em vigor desde 1988. Um sistema de informações de trágica memória, o Serviço Nacional de Informações (SNI), organizado em torno da Doutrina de Segurança Nacional do regime militar, foi substituído por uma Agência Nacional de Informações. Os ministérios militares foram extintos, substituídos por um Ministério da Defesa encabeçado por um civil. O Brasil tornou-se um dos primeiros países a editar um Programa Nacional de Direitos Humanos, em atendimento a orientações da Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, realizada em 1992 em Viena.

Tudo parece indicar que ao menos os direitos civis e políticos estejam em plena vigência no país. Mas a divulgação, no começo de agosto, pela imprensa nacional, de documentos sigilosos das Forças Armadas apreendidos no Pará pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal, dando conta da existência de estruturas e práticas militares típicas da antiga e nefasta comunidade de informações, colocam em xeque algumas das bases da propaganda governamental em matéria de direitos humanos.

Trata-se de uma peça de terror explícito, que nos traz à memória idéias e valores que muitos julgaram fazer parte de um passado que, embora nunca venha a ser esquecido, todos - ou a maioria - pretendemos superar. Os documentos secretos indicam a existência de uma rede de informantes extra-oficiais, contratados a soldo das Forças Armadas com dinheiro público, que devem identificar, pesquisar e colaborar para derrotar novos "inimigos internos", apresentados nesses textos como "forças adversas". Entidades democráticas e movimentos sociais nacionais se enquadrariam nesta tipificação. Contra elas, vale tudo, como "arranhar direitos do cidadão" através do "arbítrio necessário" ou utilização da "mentira útil".

Aliás, a mesma "mentira útil" apresentada fartamente nos textos trazidos à luz quando se trata de caracterizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como bandos armados vinculados ao crime organizado. Não é suficiente que as cortes superiores de Justiça tenham sólidas decisões que impedem a caracterização do MST como "bando ou quadrilha", como definidos no Código Penal. As estruturas secretas das Forças Armadas se julgam no direito de debater até a "eliminação" desses adversários para defender princípios alheios ao nosso ordenamento institucional.

A repercussão no Congresso Nacional foi pronta, com iniciativas de parlamentares junto às Comissões de Direitos Humanos, de Relações Exteriores e Defesa Nacional, e de Controle das Atividades da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Mas as respostas evasivas das autoridades militares e o silêncio incômodo mas já esperado do presidente da República deixam a sociedade democrática perplexa com a continuidade dos "tempos de chumbo" na caserna do Exército Nacional, cujo chefe supremo é o mesmo que assinou o Programa Nacional de Direitos Humanos.

A memória da ditadura permanece entre nós a inspirar uma profunda indignação com a violação dos direitos humanos fundamentais. As práticas denunciadas nesses documentos secretos devem ser imediatamente coibidas, nunca mais toleradas e seus responsáveis punidos e apresentados à opinião pública. O presidente FHC deve ao menos essa satisfação ao país que ele abandonou às forças livres do mercado e às forças obscuras da reação. O Estado brasileiro não pode ser conivente com mais esse sintoma de barbárie.

Renato Simões é deputado estadual (PT/SP) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo

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