Fome de participação da sociedade

OPINIÃO - Ary Fossen*
24/04/2003 19:12

Compartilhar:


Poucos programas de combate às desigualdades sociais teriam tanto potencial para reunir o apoio, a contribuição e a solidariedade de toda a nação quanto o Fome Zero. Contudo, passados quase quatro meses do início do governo, o que representa mais de 10% do mandato, as trapalhadas relacionadas à condução do programa conseguiram a proeza de produzir o resultado inverso, tornando quase impossível encontrar alguém que não tenha críticas às poucas ações desenvolvidas e às muitas planejadas.

Não obter o apoio da sociedade à proposta já é um sinal de algo muito grave, pois se houve algo que não faltou em momento algum foram as iniciativas - muitas delas frustradas pela incompetência, falta de tato, burocratismo e arrogância de quem dirige o programa. Transformar o que poderia ser uma grande corrente nacional de solidariedade em uma fonte de críticas, anedotas e piadas já ultrapassa, portanto, a simples incompetência para se transformar em desastre.

Contudo é importante que se pense no que vem dando errado -- afinal, a nobreza da proposta exige que todos se esforcem no sentido de detectar os erros e corrigir os rumos. Pouco importa se para os gestores do programa a condução das coisas é um feudo a ser preservado e defendido de qualquer invasor de boa vontade, os objetivos estão acima destas picuinhas para todos aqueles que realmente se preocupam com a questão do combate à pobreza.

O primeiro erro do programa é de concepção, formulado nas pranchetas de marqueteiros mais do que na mesa de pessoas que realmente têm atuação reconhecida na área, o Fome Zero padece daquela irrealidade que costuma emanar das ações publicitárias. A maior parte dos demais enganos que foram sendo cometidos ao longo do projeto se relaciona diretamente a este engano, mas os erros de origem não teriam sido tão graves se não tivessem sido potencializados pela mentalidade estreita dos que os conduziram depois.

O espírito de ação marqueteira, desconectada da realidade, transparece claramente na absoluta falta de previsão sobre como a sociedade, que prontamente se prontificou a colaborar, teria canais de participação. Só quando a grita contra a inexistência destes mecanismos tornou-se grande demais é que se inventou, às pressas, alguns meios de participação.

Enquanto já se tinham campanhas divulgando o programa sendo preparadas, nem se tinha uma conta bancária na qual os interessados pudessem fazer seus depósitos, não havia estrutura nenhuma para arrecadar as doações em espécie e até hoje - já com plena campanha publicitária em andamento - não se tem uma programação adequada para a utilização destes recursos.

A primeira impressão que se tem deste grande erro original é que o governo duvidava da solidariedade do povo brasileiro. Apelava a este sentimento como uma grande cortina de fumaça escondendo a inação do governo, mas que, fora a impressão altamente emocional de que o governo estaria fazendo alguma coisa, não teria outros efeitos.

Ao julgar que a sociedade não se sensibilizaria com a campanha, os integrantes do governo dão ao público a impressão de que eles próprios pouco se importam de fato com os objetivos do programa e com o sofrimento dos famintos, daí o descaso com a recepção da sociedade à idéia, muito acima das expectativas petistas.

O segundo erro estrutural deriva também do primeiro, agravado igualmente pela conduta dos coordenadores do programa em preservar seus territórios e seus empregos. Da origem marqueteira o Fome Zero traz o absoluto desconhecimento de como funciona a área social do governo e o descaso com as questões operacionais e os resultados e programas já existentes. A idéia de que se iria dar continuidade a programas premiados e bem sucedidos do governo anterior é certamente um conceito indigesto quando se analisa apenas o efeito publicitário da proposta, portanto era necessário desconsiderar tudo isto, se é que algum dia algum dos marqueteiros estudou a questão.

Já da cabeça dura de amanuense encantado com as viagens e a súbita notoriedade adquirida sem esforço vem a outra fonte de desastres do Fome Zero, que agravou uma proposta que originalmente já não tinha muita solidez. Qualquer pessoa ou entidade que pretendesse colaborar, sugerir, recomendar, aperfeiçoar, enfim, contribuir com o programa, era vista não como uma parceiria, mas como um rival a querer dividir o espaço na mídia. Tal espírito mesquinho, de apegar-se ao projeto com unhas e dentes, não aceitando qualquer contribuição, certamente não é o tipo de mentalidade adequado à condução de um programa cuja meta é justamente a de catalisar a solidariedade e o espírito nobre da sociedade. Enquanto perdurar esta mentalidade, dificilmente o Fome Zero conseguirá estar à altura de sua tarefa, para infortúnio de todos os que dele precisam com urgência - nas palavras do presidente Lula: "Quem tem fome, tem pressa".

* Ary Fossen é deputado estadual, 2º vice-presidente da Assembléia Legislativa e representante do PSDB na Comissão Parlamentar de Representação que acompanha a implantação do Fome Zero em São Paulo.

alesp