Manoel da Nóbrega, um fundador de cidades

Eleny Corina Heller
17/10/2002 16:14

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Nascido em Entre-Douro-e-Minho, Portugal, em 18 de outubro de 1517, Manoel da Nóbrega faleceu no mesmo dia e mês, no ano de 1570, no Rio de Janeiro. Bacharelou-se em direito canônico e filosofia pela Universidade de Coimbra.

Missão jesuítica no Brasil

Três anos depois, recebeu ordens na Companhia de Jesus. Ali foi designado para chefiar a primeira missão jesuítica ao Brasil. Em 1549 embarcou na armada de Tomé de Sousa, futuro governador-geral, de quem foi amigo e conselheiro, bem como de Mem de Sá. Prestou a ambos e à coroa portuguesa grande ajuda na colonização do Brasil. Colaborou na fundação de Salvador, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e também na luta contra os franceses. Convenceu os portugueses a não permanecer apenas no litoral, mas a vencer os obstáculos da serra do Mar e penetrar no sertão.

Fundação de São Paulo

Foi o primeiro a dar o exemplo, ao subir o planalto de Piratininga para fundar a cidade de São Paulo, em 25 de janeiro de 1554, com o apoio de José de Anchieta, João Ramalho, Tibiriçá e Caiubi. Nessa oportunidade, transferiu a Câmara Municipal de Santo André da Borda do Campo para junto do Pátio do Colégio. Em constantes viagens por toda a costa, de São Vicente a Pernambuco, soube aliar ao dinamismo um profundo tino político.

Expulsão dos franceses

Em contato com Mem de Sá, definiu uma política de expulsão dos franceses da Guanabara e fundou o Colégio do Rio de Janeiro, onde exerceu o cargo de primeiro reitor.

Obras publicadas

Escreveu Diálogos sobre a conversão do gentio, primeira obra em prosa da literatura brasileira, reeditada em 1954 por Serafim Leite, e Cartas do Brasil (1549-1570), reunidas por Vale Cabral (1886) e depois anotadas por Afrânio Peixoto em edição promovida pela Academia Brasileira de Letras (1931). Seus escritos foram posteriormente reunidos nas Obras Completas, publicadas em Coimbra em 1955.

Carta aos jesuítas de Portugal

[Versão livremente traduzida do português arcaico]

Baía, Agosto? de 1549 apud Leite, Serafim, S. I., Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, Vol. I.

"A informação que vos posso dar destas partes do Brasil, Pais e Irmãos caríssimos, é que esta terra tem mil léguas de costa, toda povoada de gente, que anda nua, tanto mulheres como homens, com exceção algumas partes muito longínquas de onde me encontro, onde as mulheres se vestem ao estilo das ciganas, com panos de algodão, em razão de a terra ser mais fria que esta, a qual é muito temperada. De tal forma que o inverno não é nem frio nem quente e o verão, embora seja mais quente, bem se pode suportá-lo; no entanto, a terra é muito úmida em razão das águas, que chove a todo tempo e muito amiúde. Por essa razão, os arvoredos e as plantas estão sempre verdes e por isto a terra é muito fresca. Em algumas partes é muito áspera, em razão dos montes e matagais que sempre estão verdes.

Há nela diversas frutas, de que os naturais se alimentam, embora não sejam tão boas como as das outras regiões as quais, creio, também cresceriam aqui, se aqui fossem plantadas. Porque vejo dar parreiras, uvas e ainda duas vezes por ano; mas são poucas, por causa das formigas que causam muitos danos, nestas e em outras cousas. Cidras, laranjas, limões, dão em muita abundância; e figos, tão bons como os de lá. O alimento comum na terra é uma raiz dura, que chamam de mandioca, da qual fazem uma farinha da qual todos comemos. E dá também o milho o qual, misturado com a farinha, produz um pão que não faz falta ao de trigo. Há muitos peixes e também muitos mariscos, dos quais os da terra se mantêm, muita caça de floresta e gansos, que são criados pelos índios. Bois, vacas, ovelhas, cabras e galinhas dão também na terra, e os há em muita quantidade.

Os gentios são de diversas castas, uns se autodenominam Goianazes e, outros, Carijós. Este é um gentio melhor que há nesta costa, aos quais, não há muitos anos, dois frades castelhanos foram ensinar; e também tomaram sua doutrina, que tinham já casas de recolhimento para mulheres como monjas, e outra de homens, como frades. E isto durou muito tempo, até que o demônio levou para lá uma nau de salteadores e cativaram muitos deles. Trabalhamos para recolher os assaltados e alguns deles já se encontram conosco para que os levemos às suas terras, com os quais irá um padre dos nossos.

Há outra casta de gentios que se chamam Gaimures, sendo gente que habita muitas florestas. Nenhuma comunicação têm com os cristãos, pelo qual se espantam quando nos vêem e dizem que somos muito seus irmãos, por quanto trazemos barbas, como eles. Barba essa que não trazem todos os outros, antes raspam até as pestanas, e fazem agulheiros nos beiços e narinas, e põem uns ossos neles, que os fazem parecer demônios; e assim alguns, principalmente os feiticeiros, trazem o rosto cheio deles. Esses gentios são como gigantes. Trazem um arco muito forte na mão e, na outra, um pau muito grosso, com o qual lutam com seus adversários e facilmente os despedaçam e fogem para as matas; e são muito temidos entre todos os demais.

Os que se comunicaram conosco, até agora, são de duas castas: uns se chamam Tupeniques e, os outros, Tupinambás. Estes têm casas de palmas muito grandes e nelas pousarão cinqüenta índios casados, com suas mulheres e filhos. Dormem em redes de algodão que se dobram sobre eles, próximos às fogueiras, que mantêm acesas tanto por causa do frio, porque andam nus, como também em razão dos demônios, que dizem fugir do fogo, razão pela qual levam tições quando saem à noite.

Essa gentilidade a nada adora, nem conhecem a Deus, somente aos trovões chamam Tupana, que é como quem diz coisa divina. E dessa forma não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus que chamá-lo Padre Tupana. Somente entre eles se fazem umas cerimônias da maneira seguinte. De certos em certos anos vêm uns feiticeiros, de terras longínquas, fingindo trazer santidade; e, ao tempo de sua chegada, os mandam limpar os caminhos e vão a recebê-los com danças e festas, segundo seu costume e, antes que cheguem ao lugar, andam as mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as falas que cometeram a seus maridos e umas às outras, e pedindo seu perdão. Em chegando o feiticeiro, com muita festa, ao lugar, entra-se em uma casa escura e colocam uma cabaça, que traz uma figura humana, na parte mais conveniente para seus enganos e, mudando sua própria voz como de criança, e junto à cabaça, lhes diz que não tratem de trabalhar, nem vão à roça, que o alimento crescerá por si e que nunca lhes faltará o que comer e que a casa virá por si; e que as setas irão ao mato para caçar para seu senhor e que haverão de matar muitos de seus adversários e cativarão muitos para seus comeres. E lhes promete longa vida, e que as velhas se tornarão moças, e as filhas que as dêem a quem quiserem, e outras coisas semelhantes lhes diz e promete, com o que os engana; da maneira que crêem haver dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas, nas quais acreditam. E acabando de falar o feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que parecem endemoninhados, como de certo o são, lançando-se à terra, espumando pelas bocas (...).

(...) Estes são os maiores adversários que temos aqui e fazem crer algumas vezes aos doentes que nós lhes metemos nos corpos colheres, tesouras e coisas semelhantes e que, com isto, os matamos.

(...) Dizem eles que São Tomás, a quem chamam Zomé, passou por aqui. Isto lhes foi transmitido oralmente por seus antepassados. E que suas pisadas estão marcadas ao longo de um rio. (...) Dizem também que, quando deixou essas pisadas, corria dos índios que o queriam flexar e, chegando ali, o rio se lhe abrira e passara pelo meio dele, sem se molhar, para a outra parte; e de lá se foi para a Índia.

Isto é o que em resumo, caríssimos Irmãos meus, posso informar-lhes sobre esta terra. Assim que tiver conhecimento de outras coisas que nela há, não deixarei muito particularmente de fazê-lo".

Fontes: Enciclopédia Barsa. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, Vol. I, (1538/1553) Serafim Leite, S. I. - Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, São Paulo: 1956. Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549-1760) - Serafim Leite, S. I. Edições Brotéria, Lisboa - Livros de Portugal, Rio de Janeiro: 1953.

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