A iluminação pública em São Paulo no século XIX e o legislativo paulista


20/02/2004 19:28

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Em detalhe de imagem de Militão Augusto de Azevedo feita em 1862, vê-se a convivência das luminárias presas às residências com aquelas afixadas em postes de madeira (ao fundo)<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/Ilumina__Milit_o.1862.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Neste detalhe de foto de Militão Augusto de Azevedo de 1862, um lampião com poste metálico<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/Ilumina__.Milit_o.1.1862.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Preocupados com o aperfeiçoamento técnico da iluminação da cidade, os deputados paulistas eram subsidiados com informações técnicas atualizadas, como esta de 1855<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/hist/Ilumina__Capa_brochura.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Divisão de Acervo Histórico

Muitos já devem ter visto as imagens feitas de satélite da cidade de São Paulo e arredores, durante a noite, mostrando extensas manchas luminosas. Para os paulistanos do início do século XIX, estas cenas seriam inimagináveis. No ano de 1829, quando o governo da Província incumbiu a Câmara Municipal de encarregar-se da iluminação urbana, basta sabermos que havia 24 lampiões a azeite iluminando a Imperial Cidade de São Paulo, que já tinha então perto de 20 mil habitantes. O advogado Francisco de Assis Vieira Bueno contou em suas memórias que os lampiões eram muito distanciados uns dos outros e sua luz "difundia uma claridade mortiça, que só alumiava um pequeno espaço, projetando longas sombras movediças, quando o vento balançava os lampiões. As noites eram, pois, trevosas, quando não havia lua, acontecendo algumas vezes pisar-se em sapos, que, ocultos durante o dia nos quintais, de noite vinham para a rua tratar da vida, saindo pelos canos de esgotos das águas pluviais".

Criada pelo chamado Ato Adicional de 1834, competia à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, entre outras atribuições, legislar sobre os casos e a forma por que pode ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial; sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das câmaras; sobre a fixação das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários; sobre a repartição da contribuição direta pelos municípios da província, e sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais, e das contas da sua receita e despesa; sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais, e das contas da sua receita e despesa; sobre a criação, supressão e nomeação para os empregos municipais e provinciais, e estabelecimento dos seus ordenados. Ou seja, o Legislativo paulista tinha naquela época alto grau de ingerência na vida dos municípios, o que explica o elevado número de documentos referentes à capital e aos municípios paulistas conservados e disponíveis à consulta dos pesquisadores na Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.

Além disso, o fato de ser a capital da Província fazia com que a Assembléia Legislativa Provincial também se ocupasse em atuar na melhoria das condições da cidade, o que incluía a questão da iluminação pública.

Os mais antigos documentos referentes à iluminação pública encontrados nos arquivos do Legislativo paulista referem-se à iluminação do prédio da Cadeia da Cidade, situada no então largo de São Gonçalo (que foi incorporado à praça João Mendes). Eles nos informam, em meio a uma discussão fartamente documentada a respeito de excesso de consumo de azeite em sua iluminação, que, além de haver um lampião no Corpo da Guarda e outro no topo da escada, dois candeeiros na prisão forte, um no quarto do carcereiro, outro na prisão das mulheres, mais um na prisão de atenção, um na prisão grande e outro na enfermaria, existiam quatro lampiões nos cantos exteriores do prédio com três bicos e meio de azeite cada um. Cumpre esclarecer que esse azeite era retirado de peixes ou então de mamonas.

Décima urbana

A questão da iluminação das cidades desde cedo afligiu os deputados paulistas. A iluminação da cidade era tão precária que os próprios moradores das localidades, a pedido do fiscal encarregado pela Câmara, se incumbiam de acender alguns lampiões. Em 1840, o deputado José Antônio Pimenta Bueno, o futuro marquês de São Vicente, constatando que a Província de São Paulo necessitava de muitos melhoramentos, propôs que parte dos valores arrecadados com o imposto da Décima Urbana, uma espécie de Imposto Predial e Territorial Urbano, fosse destinada para a iluminação das cidades e vilas da província: "Tal serviço é do imediato interesse dos proprietários, concorre para a segurança, polícia, e comodidade deles, é recomendado para a civilização".

Essa preocupação foi acatada e transformou-se na Lei Provincial nº 9, de 9 de março de 1840, que, além disso, estabelecia que o governo exerceria "particular inspeção sobre a efetividade da iluminação acima decretada, e sua economia; podendo, no regulamento que a esse respeito organizar, arbitrar gratificações às pessoas que forem encarregadas dela; ou autorizar a arrematação desse serviço".

Com base na Lei nº 9, o presidente da Província, Manoel Machado Nunes, apresentou, em 17 de junho de 1840, um regulamento, preservado nos arquivos da Assembléia Legislativa, o qual estabelecia as diretrizes para a iluminação pública nas cidades de São Paulo e Santos, além de detalhar as condições para a arrematação do serviço de iluminação. Definia que São Paulo deveria ter 101 lampiões de quatro luzes, os quais seriam acesos "todas as noites desde o terceiro dia depois de lua cheia até o quarto depois de lua nova inclusive, e conservar-se-ão acesos desde a entrada da noite até a meia-noite, se mais cedo não sair a lua".

Embora a Décima Urbana tenha sido abolida em 1845, os recursos para a iluminação pública das cidades continuaram a vir, doravante, do imposto de armazéns. A Lei Provincial nº 35, de 16 de março de 1846, definiu que a iluminação pública da Imperial Cidade de São Paulo fosse feita por meio de arrematação anual. Todavia, tal disposição foi alterada, em 1847, permitindo-se a contratação de particulares. A partir daí, esse serviço foi feito por particulares, autorizados por leis especiais da Assembléia Legislativa até o ano de 1863, quando se celebrou o contrato com a Companhia de Gás.

Até então, os lampiões da iluminação pública eram afixados nas paredes das residências. Assim Francisco de Assis Vieira Bueno os descrevia: "Uma enorme geringonça de ferro, pregada na parede de uma esquina, estendia por cima da rua um longo braço em cuja extremidade estava pendurado um lampião". Com as reclamações dos moradores sobre danos causados às paredes de suas casas pelos lampiões, bem como "por facilitar a subida de ladrões pelos ferros para as janelas", a partir de 1840 a Câmara Municipal de São Paulo determinou que os lampiões fossem colocados em postes de "canela legítima" nas calçadas.

Nova tecnologia

No ano de 1847, o fabricante Affonso Milliet, que já era o responsável pela iluminação pública de Santos, apresentou uma proposta, submetida à Assembléia Legislativa Provincial, de melhoria dos lampiões da cidade de São Paulo. Milliet propunha-se a aumentar em mais 20 os 140 lampiões então existentes, "mandando acender ao anoitecer e apagar ao amanhecer, excetuando somente o tempo em que a lua aparecer". Mas o ponto mais importante da proposta de Milliet era a mudança de tecnologia, passando o combustível de azeite para "gás hidrogênio líquido", em lampiões de quatro orifícios, reversíveis para azeite, a qual era assim por ele justificada:

"Além de ser a intensidade da luz maior é projetada mais longe, sobretudo a igualdade constante desta luz desde o momento em que se acende até o apagar-se e o não existir, como na iluminação por azeite, o grande inconveniente de produzir fumaça e não só de escurecer todo o interior dos lampiões, como até, às vezes, de derramar azeite na rua; todas essas vantagens asseguram à iluminação pelo gás uma superioridade decisiva sobre o atual modo de iluminação".

Convencidos da necessidade da mudança, os deputados provinciais paulistas aprovaram a proposta de Milliet e autorizaram um contrato de cinco anos de duração. Em 1852 foi sucedido pelo engenheiro H. Bastide, o qual permaneceu à frente do serviço até 1854, tendo neste período aumentado o número de lampiões na Imperial Cidade de São Paulo para 200. Bastide foi sucedido por Hermann Günther, o qual não conseguiu concluir seu contrato, rescindindo-o por não poder cuidar da iluminação com a verba que lhe fora concedida. Posta em concorrência, a iluminação da capital foi arrematada por Antônio Salustiano de Castro, o qual havia, meses antes de sua contratação, ocorrida em 1855, enviado "30 globos de vidro azul com bicos de seis orifícios para serem colocados na praça do Palácio e lugares mais freqüentados". No contrato conservado em nossos arquivos são interessantes as cláusulas referentes aos períodos em que a iluminação deveria ser acesa, revelando os requintes de sua formulação:

"(...) 3ª - A iluminação estará toda acesa meia hora depois de findo o crepúsculo do Sol, ou da Lua, pagando o empresário a multa de 200 réis por cada um lampião que depois deste prazo for encontrado apagado por mais de uma hora, e o duplo quando apagado por toda a noite, exceto por tempestade, ou avaria nos lampiões, que por esse motivo não se possam conservar acesos e não caiba no possível serem logo reparados.

4ª - Nas noites dos meses de novembro, dezembro e janeiro, em que não houver lua, a iluminação será conservada acesa, desde a hora indicada no artigo antecedente até as três horas e meia da madrugada; nos meses de outubro, fevereiro e abril até as quatro horas; nos de agosto, setembro e março até as quatro e meia, e nos meses de maio, junho e julho até as cinco horas. Excetuar-se-ão os três lampiões do Palácio do Governo, que se conservarão acesos toda a noite ainda mesmo que haja lua.

5ª - Nas noites que houver lua os lampiões se acenderão depois do crepúsculo dela, como dispõe o art. 3º, conservando-se acesas até as horas mencionadas para os diferentes meses, e indicadas na condição 4ª.

6ª - O empresário será obrigado a acender os lampiões desde a lua nova até ao quarto crescente, quando ela estiver encoberta por nuvens espessas, que possam impedir a apreciação de sua luz, continuando outrossim a acendê-los até que o ocaso da lua se aproxime da hora em que têm de ser apagados conforme a condição 4ª.

7ª - Depois da lua cheia a iluminação terá começo quando do ocaso do sol ao nascimento da lua haja mais de três quartos de hora, o que deverá ser regulado pelas folhinhas e Almanaque do Império. (...)"

Em 1856, o engenheiro Achilles Martin d'Estadens propôs novamente a iluminação a gás para a cidade. Afirmando ter comprado da Sociedade Cormier et Cie., "proprietária do segredo e brevet de invenção", o engenheiro se propunha a iluminar a cidade com gás hidrogênio puro, como já ocorria em algumas cidades francesas. Para tanto enviou um parecer, de autoria de M.-A. Baudin, à Assembléia Legislativa Provincial sobre a superioridade de seu sistema sobre o de gás extraído do carvão de pedra, tanto pelo seu preço como por não oferecer riscos de explosão, além de não provocar sujidades. É interessante destacar que, entre as determinações da Lei Provincial nº 25, de 25 de abril de 1856, que autorizou a contratação do engenheiro, estabelecia-se que a iluminação deveria ser acionada "desde o escurecer até o amanhecer, tanto nas noites de escuro com nas de lua", não podendo o número de lampiões ser inferior a 300, demonstrando-se desse modo o crescimento de São Paulo, não se podendo contar com apenas a lua para iluminar a cidade. No entanto, a iniciativa acabou não prosperando e Sebastião Félix de Castro acabou efetivamente assumindo a manutenção da iluminação nos moldes em que vinha se dando.

Abaixo-assinados

Entre os documentos existentes na Divisão de Acervo Histórico referentes à questão da iluminação na Imperial Cidade de São Paulo estão diversos abaixo-assinados de moradores solicitando a benfeitoria, como este, datado de 1862, e que também retrata as condições de vida de então:

"Damaso Nogueira de Sá, morador na Freguesia de Sta. Ifigênia, vem respeitosamente pedir a esta ilustre Assembléia Legislativa Provincial que autorize ao governo da Província a mandar colocar lampiões desde o tanque do Arouche até defronte do largo da Igreja, medida esta que exige uma pronta satisfação pelas considerações que o suplicante passa a expender:

A concorrência dos trabalhadores da estrada de ferro e o grande número de tropeiros que transitam continuamente por aqueles lugares fazem aparecer constantes desordens, que causam sérias perturbações, em detrimento não só dos cidadãos pacíficos, que moram nos ditos lugares, mas ainda de todas as pessoas, que por aí passam, aproveitando-se, os malfeitores, das trevas da noite para cometerem impunes os seus desacatos.

Além disso, e é uma razão não menos atendível, em tempo de noites de escuro pessoas por várias vezes têm-se precipitado no tanque, não podendo desviarem-se do perigo, por não poderem enxergá-lo; e como todos este inconvenientes têm de desaparecer completamente, ou ao menos de diminuírem-se de um modo considerável com a execução da medida requerida".

Em 1863, a cidade passou a ser iluminada com querosene até 1872, quando, a 31 de março deste ano, inaugurou-se a iluminação a gás, distribuído pelo maquinário instalado no prédio do Gasômetro. A cerimônia de inauguração contou com a presença de D. Pedro II. Para este ato iluminaram-se, com arcos especiais, a frente da antiga catedral da Sé e do Palácio do Governo no Pátio do Colégio e acenderam-se os então 550 lampiões de gás de toda a cidade.

As necessidades de expansão da iluminação corriam pari passu com o crescimento da cidade. Em 26 de janeiro de 1881, ilustres paulistanos, como Frederico José Cardoso de A. Abranches, José Joaquim Cardoso de Mello, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Joaquim Eugênio Lima enviavam à Assembléia Legislativa Provincial documento solicitando a iluminação de várias ruas da capital. Ei-lo:

"Os abaixo-assinados, moradores na extrema da rua de S. João da freguesia de Sta. Efigenia e bairro do Arouche, privados de um dos melhoramentos de que gozam moradores de outras ruas em idênticas circunstâncias, requerem a esta ilustrada Assembléia concessão de igual vantagem.

Desejam os peticionários o prolongamento da iluminação pública até o fim da referida rua, e da que desta vai ter ao largo do Arouche, também habitada, e por onde passa a linha de bondes.

Ninguém ignora o admirável incremento que ultimamente tem tido esta parte da capital, e o núcleo imenso de população que já conta, com proporções sempre crescentes, tanto assim que a empresa de ferrocarril entendeu de vantagem estender por ela sua linha de bonde, passando pela dita rua de S. João, na parte justamente em que não há ainda iluminação.

Sendo certo que semelhante benefício aproveita somente aos habitantes de tais ruas, mas a toda a população, em razão das relações comerciais e de família que se estabelecem nestes casos, julgam os suplicantes de toda justiça e eqüidade a sua pretensão.

Pedem portanto a esta ilustre Assembléia autorização ao exmo. governo para mandar colocar os lampiões necessários nos lugares indicados".

No final do século XIX começaram a ser acesas as primeiras luminárias elétricas, cujas primeiras tentativas eram conhecidas na capital desde 1868. Elas conviveram durante décadas com os lampiões a gás.

acervo@al.sp.gov.br

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