Uma lição da democracia grega

Opinião
12/05/2005 18:18

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A Grécia Clássica, em especial Atenas, é usualmente utilizada como um exemplo da democracia mais perfeita que já existiu em seu funcionamento interno. Com a ressalva da exclusão da maioria das mulheres e dos escravos, hoje em dia certamente inaceitável, todos os cidadãos tinham o direito de votar e propor leis, as quais eram deliberadas pela assembléia de todos os cidadãos.

Contudo é muito relevante para a discussão que quero propor que se destaque que as leis propostas na Assembléia eram antes avaliadas pela Boulê. Este conselho formado por 500 membros, 50 de cada um dos demos " divisões da cidade que substitui as tribos " tinha a função de avaliar se as leis propostas não feriam legislação anterior e superior.

Os gregos tinham duas palavras para designar leis. Uma delas era "nomoi" ou seja, as leis fundamentais. De certa forma "nomoi" equivaliam às nossas leis constitucionais, os princípios fundamentais que não podem ser violados pelas leis comuns. A outra era psephisma " usualmente traduzido como decreto, que era a lei comum, a qual podia ser livremente apresentada, desde que não violasse as leis e decretos anteriores.

Sempre que uma lei nova era apresentada devia ser enviada à boulê antes de ser votada pela Ecclesia " a assembléia de todos os cidadãos. A importância deste mecanismo é relevada pelo fato de que a instituição de um "paranomon" - indiciamento do autor de um decreto que desrespeita as leis superiores " é um dos mais documentados procedimentos da Ecclesia, atestando assim a importância desta observância da hierarquia das leis.

As comissões de Constituição e Justiça dos parlamentos modernos são descendentes diretos da Boulê em sua função de guardiãs da constitucionalidade e da legalidade dos projetos de lei. Não é por acaso ou por mera formalidade que qualquer disposição legal deve ser avaliada por estas comissões antes de ser julgada pelas demais, porque caso ela viole os princípios que estão acima dela certamente não será uma boa lei, a despeito de qualquer mérito que possa ter.

A democracia pressupõe um jogo no qual há regras claras, em parte imutáveis " no que se refere aos direitos inatos dos cidadãos, expressa nas cláusulas pétreas das constituições " e em parte só devendo ser modificados com muita dificuldade e após um extenso debate no qual a imensa maioria aprova a alteração " como no caso das propostas de emenda constitucional. Justamente pela sua importância, enquanto "regra do jogo", a legislação constitucional deve ser respeitada, sob o risco de criar-se uma situação caótica na qual regra nenhuma vale a não ser a força e assim retroagimos aos períodos anteriores ao Estado de Direito.

A Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa de São Paulo " a qual tive a honra de presidir e de participar por diversos períodos " parece estar esquecendo daquela lição fundamental ensinada pelos gregos ao transformar-se em um fórum de discussão e aprovação das propostas não em função da sua constitucionalidade e legalidade, mas pelo mérito das propostas. Esta atitude é uma dupla violação do seu mecanismo, porque deixa de cumprir seu papel fundamental de julgar os projetos em sua essência legal e porque invade a competência do julgamento de mérito que cabe a outras comissões.

A avaliação da constitucionalidade e legalidade antecede qualquer julgamento de mérito, afinal partimos do princípio de que as leis constitucionais devem ser superiores. Assim uma lei, por melhor que seja em seu mérito, por mais necessária e benéfica, torna-se prejudicial na medida em que sua aplicação destrói o principio legal fundamental, desconectando a lei de sua ligação com o centro do qual emana a vontade do povo expressa pelo legislador e, portanto, gerando o caos onde as regras dissolvem-se em um emaranhado que não está mais sujeito a qualquer limite.

Há, também, necessidade de verificar se a proposta não tem vício de origem legislando sobre assunto que pertence à competência federal ou municipal. Por mais relevante que uma determinada questão seja é fundamental observar-se o princípio constitucional da juridicidade. Se há discordância em relação a este ou a qualquer outro princípio constitucional então que se lute para convencer a população a alterar a Constituição, por meio de seus representantes. Até isto ser feito a Constituição e as leis superiores precisam ser obedecidas e respeitadas.

O último lugar de onde se pode esperar que o caráter sagrado das normas constitucionais seja violado é justamente no legislativo. Assim a atitude da CCJ ao ignorar a sua função essencial e invadir as competências alheias é mais do que um desrespeito regimental " como se isto por si só não fosse uma falta grave " mas é um desrespeito às próprias bases sobre a qual a democracia está assentada.

*Ricardo Trípoli, advogado, é líder da bancada do PSDB na Assembléia Legislativa de São Paulo.

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