Marco Aurélio Nogueira: a crise política reflete os problemas do capitalismo


06/01/2003 14:08

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"A globalização produz sérios efeitos sobre o instituto da representação política. Com o firme aumento das informações (bem como da

velocidade com que elas circulam) e, simultaneamente,

com a diferenciação da sociedade e a complicação das identidades,

a vontade política já não tem mais facilidade para reunir os interesses multiplicados ou mobilizar cidadãos ativos -- isto é, indivíduos

empenhados em ponderar, refletir e acima de tudo

intervir conscientemente no processo mesmo de tomada de decisões."

DA REDAÇÃO

Quais os efeitos políticos imediatos para a democracia representativa da globalização e do delineamento de uma "sociedade da informação"? Tomando como base os fenômenos da crise do Estado e da massificação das sociedades contemporâneas, o que se pode esperar de novo na relação entre cidadãos e instituições políticas? Essas foram algumas das questões tratadas pelo Curso de Extensão Universitária promovido em novembro e dezembro de 2002 pelo Instituto do Legislativo Paulista.

Dada a importância do tema, o Diário Oficial do Poder Legislativo entrevistou o professor Marco Aurélio Nogueira, um dos coordenadores do curso. Livre-docente em Teoria Política e professor adjunto da UNESP, campus de Araraquara, Nogueira é autor dos livros As possibilidades da política, Idéias para a reforma democrática do Estado (Paz e Terra, 1998) e Em Defesa da Política (Editora Senac, 2001), dentre outros.

Pode-se dizer que a relação entre cidadãos e instituições políticas é marcada hoje pela desconfiança -- ou seja, que há uma crise de relacionamento entre eleitores e eleitos, entre representados e representantes?

Marco Aurélio Nogueira - Precisamos tentar entender o que se passa com a política e com o sistema político. Hoje em dia, o campo da política está complicado por dois blocos de problemas. Por um lado, temos a globalização da comunicação, a velocidade, a quantidade e a variedade das informações, as alterações estruturais na organização econômica e social, o surgimento de uma nova cultura mais individualista e mais voluntarista. Tudo isto desgasta a democracia representativa e problematiza a relação das pessoas com a política. Por outro lado, particularmente no Brasil, temos evoluído, nos últimos tempos, sem um correspondente esforço coletivo para valorizar a política e dignificar a atividade política. Passamos os anos 90 assistindo à afirmação de um padrão meio tecnocrático de governo, concentrado na estabilidade monetária, na redução do custo do Estado, no administrativo. Difundiu-se uma idéia de que a política "atrapalha", que os políticos e a luta política perturbam a racionalidade econômica, que a oposição e a crítica são armas destrutivas, e assim por diante.

Hoje, uma parte da sociedade se entrega à apatia e à indiferença, ao mesmo tempo em que outros se mexem freneticamente e criticam sem parar. O estado de espírito geral é moralista e meio niilista. Há pouco debate consistente, pouco envolvimento com os assuntos que dizem respeito à vida coletiva. Tudo parece sancionar um distanciamento entre a sociedade e o Estado. A política fica enredada nos interesses, no cálculo eleitoral, no marketing, na gestão. Tem dificuldades de mobilizar as pessoas.

Com isso, muitos políticos acabam por ser capturados pelo lado mais perverso da política, o da força, da fraude, da dissimulação, da corrupção. Não conseguem se atualizar nem se reformar como representantes ou como "classe política". Perdem crédito junto à população e ficam sem incentivos para melhorar. É como um círculo vicioso: o desprezo pela política é uma reação contra a crise da política e acaba por ajudar a prolongar esta crise.

Se existe de fato uma crise, quais os riscos de que ela acabe "respingando" no sistema representativo como um todo e abale as raízes da democracia representativa?

Marco Aurélio Nogueira - A crise é ampla, de vastas proporções. Não é exclusivamente brasileira. Tem a ver com o quadro mais geral de transição para uma nova forma de vida, de Estado e de organização social. É uma crise que reflete claramente os problemas de realização do capitalismo, não a sua vitória. No Brasil, ela é agravada pela reprodução da pobreza, pelos buracos negros que se espalham pelo país, pela dificuldade que temos tido, historicamente, de integrar a população aos benefícios do progresso e de domesticar os setores sociais mais retrógrados.

É uma época ruim e estranha para a democracia, no mundo todo. Por que seria diferente na América Latina ou no Brasil? Faltam-nos muitas condições, a começar de uma estrutura social mais justa e equilibrada. Além do mais, a cultura política latino-americana ainda está contagiada de caudilhismo, de elitismo predatório, de arrogância autoritária. E como as pessoas estão sendo conclamadas a se dedicar mais a seus próprios problemas e interesses do que aos problemas e interesses públicos, tendem a achar que a democracia é indiferente.

Nossa democracia não evoluiu tanto quanto esperávamos depois da democratização iniciada em 1985. A institucionalidade política do país (o sistema de partidos, o sistema eleitoral, as rotinas governamentais e legislativas) ficou parada no tempo e a participação social, ainda que tenha crescido expressivamente, não avançou em termos políticos, permanecendo muito presa ao campo dos interesses particulares, sem produzir maior pressão ou "vontade coletiva". Democracia, além do mais, não é apenas participação ou vontade de participar das pessoas. É também institucionalidade e cultura, educação para a cidadania. Trata-se de um processo que aproxima governantes e governados, que fixa opiniões e procedimentos políticos específicos, com os quais pode-se dar a "mágica" que promove a conversão dos interesses particulares em interesse coletivo. Tudo isto ainda falta na democracia brasileira, que é mais normativa e formal que substantiva.

É uma crise grave, mas não me parece que seja invencível, definitiva ou catastrófica. Nela, tanto há elementos deletérios e ameaçadores quanto elementos que se abrem para uma reconstrução positiva da humanidade (uma unificação dela em níveis superiores). O fundamental é tentar imaginar como esses elementos se combinarão, quais deles prevalecerão e em que ritmo.

A crise, portanto, respinga efetivamente na democracia representativa, e não poderia ser diferente. A democracia, porém, é uma força. E, como tal, mantém-se como parâmetro, mesmo quando não está muito bem.

Basta olhar para o Brasil. O eleitorado brasileiro, que cresceu muito nas últimas décadas, tem evoluído politicamente num sentido bem positivo. No passado recente, por exemplo na época da ditadura, foi-se descobrindo o valor do voto como forma de protesto e manifestação de descontentamento. Hoje, já se vê o voto como um instrumento de construção democrática e de escolha entre opções. As últimas eleições foram uma prova cabal disso.

Uma possível solução poderia estar em uma ênfase cada vez maior no caráter participativo da democracia, mais do que no aspecto meramente representativo?

Marco Aurélio Nogueira - A idéia de participação política é inerente à democracia. Na verdade, não existe um muro separando a democracia representativa da democracia participativa. Desde há muito tempo ser democrata é participar das decisões de interesse coletivo. O que se deve discutir, e sempre se tem discutido, é a amplitude e o caráter desta participação. Uma forma mais restrita ou minimalista de democracia pode reduzir a participação ao momento eleitoral, ao voto, limitando assim o envolvimento dos cidadãos com o processo decisório mais abrangente. Do mesmo modo, uma ênfase unilateral na participação pode levar ao desprezo pela representação, com suas instituições e seus procedimentos. Em ambos os casos, algo seria perdido. A democracia de massas - que me parece ser a que mais se adapta às sociedades contemporâneas e às necessidades de transformação social - é uma aposta nas possibilidades de integração e composição entre representação e participação. É uma construção complexa, difícil, de longo prazo, que sempre dependerá de articulações entre invenção institucional e educação para a cidadania, voto e luta social, e assim por diante.

Na prática, como poderia se dar essa ênfase na democracia participativa e quais os mecanismos de que ela pode se servir para se tornar mais efetiva?

Marco Aurélio Nogueira - Hoje, a ênfase que se dá à democracia participativa precisa ser bem analisada. Nem sempre que se fala em participação se está falando de participação propriamente política -- isto é, voltada para uma interferência ativa e consciente nas coisas públicas. A participação pode se dar tendo em vista a mera defesa de interesses particulares, a obtenção de vantagens diante dos governos ou dos poderes públicos. Pode ser pensada como ação voluntária, filantrópica. E pode, também, ser concebida como um recurso "gerencial" -- quer dizer, ficar concentrada na gestão de serviços, no desenho dos orçamentos ou na viabilização de determinadas políticas públicas. Se quisermos mesmo nos beneficiar de uma ênfase na democracia participativa, precisamos ir além destes planos e estruturar uma idéia de participação que se desdobre na construção de uma convivência coletiva superior, na qual todos são responsáveis e ativos.

Considerando a recente política brasileira e o fenômeno da globalização, que sentido pode ser dado atualmente à democracia participativa?

Marco Aurélio Nogueira - A globalização tem uma face dúplice. Como movimento que reflete as tentativas de acomodação do capitalismo - que traduz, digamos assim, uma nova fase de acumulação do capital -, ela se mostra como neoliberalismo e tende a projetar uma idéia de participação bastante concentrada na viabilização dos interesses individuais e das liberdades tipicamente liberais (livre-concorrência, liberdade de mercado, livre acesso à propriedade, etc.). O incentivo para que as pessoas participem e auxiliem os governos a governar, por exemplo, pode ter uma tradução liberal e se inserir neste campo.

Mas a globalização também contém um elemento de unificação em escala planetária. Ela unifica e ao mesmo tempo fraciona, fragmenta, diversifica. Com isso, cria novos desafios e abre novas possibilidades de ação política para os diversos interesses sociais, grupais, comunitários, étnicos, nacionais. Nesta sua face de unificação-fragmentação, a globalização se revela como um novo espaço de atuação para os movimentos preocupados com a construção de uma nova ordem social no mundo. A idéia de participação que vem daqui tem uma dimensão muito mais política, ou ético-política, se preferirmos. Dedica-se não apenas a defender interesses ou a chegar ao governo, mas a desenhar éticas alternativas.

Diante de fenômenos como a crise do Estado, a massificação e a individualização das sociedades contemporâneas e, especialmente, o crescente delineamento da "sociedade da informação", quais os limites e as virtudes da democracia representativa?

Marco Aurélio Nogueira - A democracia representativa destina-se a criar condições para que sociedades complexas (diferenciadas socialmente, com muitos interesses e expectativas) consigam se governar com taxas menores de exclusão -- ou seja, incorporando os diversos grupos e indivíduos ao processo de tomada de decisões. Ela se viabiliza mediante uma série de regras de procedimento e de um constante processo de educação política dos membros da sociedade. Está longe de ser um sistema perfeito e seguramente é um arranjo que se reproduz com base em equilíbrios muito delicados. Seu grande protagonista é o cidadão politicamente educado, seus grandes instrumentos são o debate democrático, a opinião pública e o voto, com os quais se constroem opções e se fazem escolhas. Quanto mais, portanto, o eleitor se preparar politicamente (quando mais educação política ele tiver, quando mais souber acompanhar o processo político, analisando os fatos e superpondo o raciocínio crítico às imagens veiculadas), mais o voto poderá se converter num recurso político da sociedade para controlar seus governantes, fiscalizá-los e apoiá-los. Além do mais, participando como eleitor, o cidadão envolve-se mais nas questões de sua comunidade e torna-se, assim, mais co-responsável pelo que nela ocorre. Ajuda a agregar forças e energias ao governar.

Esta é a grande virtude da democracia representativa e ela me parece estar sobrevivendo aos tempos, ainda que de modo imperfeito.

Passou a faltar, à política, maior poder de sedução e maior capacidade de atrair os cidadãos para a esfera pública, para o desempenho de funções dedicadas a objetivar controles democráticos e decisões "gerais", válidas para todos. A "espetacularização" das disputas reforça esta tendência.

Temos, hoje, mais dificuldade para compatibilizar demandas e recursos, equacionar e dar tratamento adequado aos problemas sociais, pois estão sendo questionados justamente os fóruns e os atores vocacionados para alcançar níveis superiores de totalização e síntese, para selecionar a "demanda societal" e dispô-la de um modo "razoável", passível de ser atendido pelos governos. Isso quer dizer que as casas legislativas perderam parte de sua operacionalidade e tendem a se voltar para âmbitos tópicos, a estreitar-se em amplitude e envergadura, a concentrar-se no local, no pessoal, no "comunitário".

A globalização produz crise porque desequilibra precisamente o espaço da mediação, no qual indivíduos singulares se tornam membros de uma comunidade, vontades particulares dão origem a vontades gerais, sociedades se convertem em Estado. Como a dinâmica dos processos políticos tornou-se mais rica e complexa, fica visível a confusão de tarefas e papéis no interior dos sistemas políticos, quadro que se complica ainda mais com a explosão de novos atores políticos (os movimentos sociais), a politização dos grupos profissionais e da burocracia, a transformação das demandas especificamente políticas. A complexidade crescente, especialmente no que traz de "fracionamento societal", sobrecarrega os processos e procedimentos da representação e da decisão política. Em boa medida, tais processos e procedimentos ficam "atrasados" em relação à complexidade, condenando a política à instabilidade, à flutuação, ao risco não mais calculado e pondo em questão a própria teoria democrática.

Neste ponto, a democracia representativa mostra seus limites e passa a requerer uma reforma que a revigore e revitalize.

Trazendo a conversa para o Brasil pós-eleições, qual o papel dos partidos políticos na definição do que deve ser mudado?

Marco Aurélio Nogueira - O papel dos partidos continua sendo central, mesmo que estejamos hoje obrigados a reconhecer que os partidos talvez não tenham mais como reproduzir o padrão "heróico" de antes, quando tendiam a organizar e a estruturar todo o campo da política. Hoje, há muitos outros protagonistas políticos e os partidos precisam se mostrar cada vez mais competentes para atuar como vetores de articulação e agregação de todo este universo. Além do mais, os partidos também sofrem os efeitos da maior fragmentação social, dos problemas de reprodução das classes sociais, das fortes mudanças que se registram na base das sociedades capitalistas contemporâneas.

Porém, creio ser possível dizer que as coisas tenderão a ficar piores sem partidos políticos, até mesmo porque ainda não se descobriu um modo mais eficiente e viável de organizar interesses, pessoas, votos e idéias numa perspectiva que se projete no Estado em sentido amplo, e particularmente na conquista do poder político e do governo da sociedade. Como organizar uma agenda de mudanças para o país? O processamento das propostas e a organização de consensos consistentes dependerão muito da capacidade que tiver o Poder Legislativo de entrar em sintonia com a sociedade, e para isso os partidos são recursos fundamentais. Qualquer reforma política que não leve tal fato em conta e não se esforce para fortalecer os partidos me parece fadada ao fracasso.

alesp