A Assembleia Legislativa de São Paulo acaba de constituir a CPI do Trabalho Escravo, que propus em 2011. Estou certo de que novamente teremos a coragem de ser vanguarda no enfrentamento desse crime bárbaro e silencioso. Foi assim na aprovação unânime da Lei Paulista contra o Trabalho Escravo, apresentada como exemplo mundial de boa prática legislativa na última reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU. No âmbito nacional, a PEC do Trabalho Escravo está parada há 15 anos e a CPI feita sobre o tema terminou sem sequer apresentar um relatório final. Infelizmente, há setores de nossa sociedade - e de nossa fauna política - que têm se especializado em arrumar justificativas para a tentativa de construir um Brasil em que uns são mais iguais que os outros. Vivemos um embate no Congresso Nacional para desidratar o conceito de trabalho escravo na nossa legislação. Elementos como jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho não mais caracterizariam trabalho escravo, o que existiria apenas mediante comprovação de violência e coação. Voltaríamos ao Brasil Colônia. Pode parecer um pequeno movimento na legislação, mas seu efeito é devastador. Mudar esse conceito significa acabar com 126 anos de avanços desde a Lei Áurea. As comprovações necessárias para punir quem escraviza trabalhadores seriam tão distantes da realidade que o sistema brasileiro de combate a esse crime passaria a ser inócuo. Em São Paulo, há uma lei, agora reproduzida em outros estados, que pune financeiramente quem explora trabalho escravo, cassando a inscrição no ICMS e impedindo o funcionamento das empresas autuadas por 10 anos. Caso a definição de trabalho escravo mude, será quase impossível responsabilizar donos de oficinas de costura que escravizam pessoas e empresas que lucram a partir da redução de custos que esse crime proporciona. Em sã consciência, nenhum político defende em público a escravidão, mas a militância pelo afrouxamento no conceito demonstra a crença de que alguns são "menos humanos". É a mesma lógica que racionaliza a existência absurda do trabalho infantil na nossa sociedade. Descobriu-se recentemente que parte do carvão usado em São Paulo vem marcado pelo trabalho infantil, por um mecanismo que rouba a infância e o futuro de muitos para fazer o lucro de poucos. É triste ter de fazer leis com penas financeiras para garantir que um ser humano não se sinta no direito de vilipendiar a dignidade alheia. Mas a verdade é que esse caminho tem se mostrado efetivo. Aprovamos por unanimidade na Assembleia Legislativa de São Paulo o projeto de lei 1186/2011 que aumenta de um salário mínimo para até R$ 40 mil as multas para quem explorar crianças e adolescentes no Estado. A iniciativa, que tem apoio da Fundação Abrinq - Save the Children e de especialistas no tema, aguarda a sanção do governador Geraldo Alckmin. Vivemos um tempo de aceitação da exploração de quem é considerado menos digno de proteção. Não podemos permitir que se institucionalize no Brasil a crença de que temos duas classes diferentes de seres humanos: os nascidos para mandar e os nascidos para sofrer. * Carlos Bezerra Jr., 45, é médico, deputado estadual pelo PSDB e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos. Autor da CPI do Trabalho Escravo, da lei paulista contra a escravidão e da lei que aumenta multa aplicada em casos de trabalho infantil.